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EuPTHUHu1645-37942012000100002

EuPTHUHu1645-37942012000100002

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN1645-3794
ano2012
Issue0001
Article number00002

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"É Pena Seres Mulato!": Ensaio sobre relações raciais

"É pena seres mulato!"1 O texto constitui uma peça de uma investigação empírica mais ampla ainda em curso, essencialmente assente em discursos de senso comum sobre relações raciais em Moçambique. Não é viável, neste contexto, desenvolver o enquadramento teórico e metodológico da investigação que, na essência, remete para o domínio do pensamento social e, neste âmbito, centra-se na teoria e conceito de representações sociais na perspectiva de Serge Moscovici (Moscovici, 2000; Ribeiro, 2008). O estudo é suportado por uma metodologia de recolha e tratamento de dados eminentemente qualitativa: entrevistas semi- directivas (80 realizadas nas cidades de Maputo e Matola)2, observação participante, registos escritos diversificados3. O trabalho de campo decorreu entre abril e agosto de 2010 e janeiro e abril de 2011.

As mestiçagens constituem um dos factores estruturantes do tecido social moçambicano. O fenómeno remete tanto para a longa duração, quanto para o envolvimento de parcelas significativas da população. Destaco as miscigenações inter-étnicas espoletadas pelos estados e impérios africanos anteriores à ocupação colonial efectiva; o impacto da presença multissecular de migrações do Índico (árabes e indianos, entre outros) que se foram fixando na extensa zona costeira de Moçambique, legando a marca islâmica que foi avançando do litoral para o interior, em particular na região norte; a presença de europeus cuja dominação colonial efectiva, iniciada em finais do século XIX, acelerou continuamente as tendências de miscigenação anteriores, reforçando a componente cristã; são ainda de ter em conta os sistemas de reprodução socioeconómicos tradicionais que subsistem e pautam a diversidade social moçambicana.

Todavia, por opção deliberada, esta pesquisa afunila esse conjunto vasto de fenómenos de miscigenação numa única dimensão, a da mestiçagem racial. Tal escolha sustenta-se no facto de as pertenças raciais constituírem referentes importantes (Cabecinhas, 2007), pois nunca foi indiferente, em Moçambique colonial ou pós-colonial, ser-se negro, "mulato", branco, "indiano" ou chinês.

Nesse sentido, trata-se de uma sociedade marcadamente racializada, mas sem que essa característica dos diferentes segmentos sociais gere tensões raciais particularmente salientes.

Moçambique, como outras sociedades da periferia do sistema-mundo, tem a particularidade de a fragmentação racial ser um fenómeno das elites e das classes médias (onde pontificam a elite negra e sobretudo as diversas minorias raciais, entre brancos4, mestiços, "indianos" ou chineses), não das classes baixas (homogeneamente negras). Como as situações de potencial tensão racial tendem a concentrar-se nas classes médias e nas elites e como estas pesam pouco na estrutura social e demográfica, o mesmo acontece com as tensões raciais.

De resto, em particular entre as pessoas desfavorecidas negras, as avaliações sobre as minorias raciais são tendencialmente positivas. A razão essencial tem a ver com o problema do desemprego ser muito sensível, sendo que as minorias raciais (brancos, "indianos", chineses) surgem invariavelmente conotadas com a criação de postos de trabalho. Embora essa situação não constitua, em si, obstáculo à existência de tensões raciais em grande parte circunscritas ao mundo laboral, a verdade é que, na actualidade ou no passado, globalmente o contexto social moçambicano tem sido favorável à afirmação de minorias raciais.

O contributo de estudos sobre relações raciais é o de permitir perceber se se trata de uma tendência que se sedimentará ou se, pelo contrário, a racialização da sociedade moçambicana ganhará contornos diferentes no futuro. Neste momento não parece possível lançar hipóteses consistentes que respondam com segurança a essa questão.

Mestiço, misto ou mulato No pensamento de senso comum moçambicano, entre a categorização dos negros (o extremo endógeno) e a categorização dos brancos (o extremo exógeno), reconhece- se a existência de um segmento mestiço autónomo em relação aos dois primeiros, uma espécie de fronteira. A predominância de tal representação social pode ser interpretada como sintoma de uma sociedade aberta ao mundo, mas que se demarca desse mundo pela delimitação simbólica das fronteiras da mestiçagem. Esta análise visa, precisamente, caracterizar o espaço da mestiçagem na sociedade moçambicana.

Estando em causa o elemento mestiço ou misto, a ideia remete para o conjunto de indivíduos que possuem uma qualquer ascendência alienígena que, em algum momento, se cruzou com os autóctones e/ou com outros grupos raciais minoritários. Em tecidos sociais marcados por uma forte, secular e diversificada imigração, como é o caso, a categoria revela-se demasiado imprecisa. Por isso mesmo, numa pesquisa empírica sobre relações raciais a transformação dos termos "mestiço" ou "misto" em conceitos com os quais se possa operar é difícil, posto que tais termos não são particularmente eficazes para o senso comum. Em vez deles, emergem categorias raciais mais precisas que se tornam mais apelativas para os indivíduos. Através delas a noção de mestiçagem racial assume tipificações concretas, no sentido de se constituírem "objectos de atitude" (segundo Eagly & Chaiken [1993], aquilo que é avaliado pelos indivíduos entre um extremo positivo e um extremo negativo). Com elas os indivíduos operam com muito maior facilidade (cf. McGarty, 1999). É assim que o referente "mulato" é o que melhor permite operacionalizar a noção de mestiçagem racial. Tratarei, portanto, das representações sociais dos "mulatos" moçambicanos (cf. Moscovici, 2000 [1984]; Moscovici & Vignaux, 2000 [1994]; Ribeiro, 2008).

A melhor forma de se categorizar o objecto de atitude "mulato" é associá-lo a outros segmentos raciais próximos, concretamente aos "monhés", "baneanes" ou "canecos" (os ditos "indianos"). Face a um arco-íris de cores de pele que permitiria, em Moçambique, constituir uma fronteira ampla e de muito difícil definição entre o negro e o branco, torna-se inviável o recurso a categorizações rígidas. O caminho mais seguro é o de se avançar usando como suporte o conceito de tipo ideal (ou ideal-tipo) proposto por Max Weber (1997 [1909-1913], pp. 38-41). Isso implica que se parta de abstracções do que se pode entender por "mulato" (ou "monhé", por contraposição), tipificações que depois têm de ser mitigadas à medida que nos aproximamos da realidade empírica propriamente dita.

De um episódio quotidiano ocorrido na cidade de Maputo (2010) registei uma expressão sintomática: "Quem lixou esse "mulato" foi um "monhé" ".

Com isso pretendo sublinhar que uma das mais simples definições do "mulato" é a de não ser "monhé" e vice-versa. Os dois termos são profusamente utilizados nos discursos de senso comum em Moçambique sem se sobreporem. A nível cognitivo constituem categorias do pensamento social por se apresentarem como mutuamente exclusivas. O que pode ser discutível é o leque de atributos de cada uma dessas categorias. Se a cor de pele "intermédia" (nem negra, nem branca) não deixa de ser tida em conta nas avaliações de senso comum, ela é sempre ponderada pela saliência conferida a outros atributos. Neles destacam-se os comportamentos e atitudes considerados dominantes em cada segmento, sobretudo os conotados com crenças e práticas religiosas. O "monhé" é associado à religião islâmica ou hindu e tido como originário ou descendente de gentes do Índico. O "mulato" é representado como um (sub)produto cristão do Ocidente. Para além da componente exógena/imigrante nos dois casos, é ao "mulato" que, entre os negros, é reconhecida uma mais óbvia miscigenação com africanos negros. Portanto, na perspectiva da maioria, não sendo nenhum dos dois como "nós negros", os "mulatos" tendem a ser representados mais como "nossos" e os "monhés" muito mais como "outros" ou exógenos.

Quando acontece existir uma componente católica em segmentos originários do Índico, no geral são designados por "canecos", embora este segmento quase nunca seja referenciado pelas pessoas desfavorecidas, ou seja, trata-se de uma tipificação que funciona sobretudo no interior dos mestiços. Neste caso, se a ascendência é conotada com a Índia, trata-se da antiga Índia Portuguesa (Goa, Damão e Diu), o que lhes confere uma forte ligação à matriz cultural portuguesa colonial. Daí a que a mestiçagem esteja na génese dos "canecos" por cruzarem um tipo racial "tipicamente" indiano com uma matriz cultural muito identificada com a portuguesa, traduzindo-se, para além do catolicismo, no uso da língua portuguesa como idioma materno e em hábitos de vida próximos do tipo português.

Logo, os "canecos", quando são reconhecidos enquanto tal, são, ainda assim, mais próximos dos "mulatos" ' no sentido de partilharem, de alguma forma, a "moçambicanidade" ' do que os islâmicos ou hindus "monhés", estes com maior facilidade excluídos da "moçambicanidade".

De qualquer modo, a complexidade dos fluxos imigratórios, em especial os de longa duração, tornam relativamente fluidas as categorias raciais referidas.

Para citar outro dado, parte do segmento "mulato" tem ascendência branca, mas árabe ou chinesa (o caso do "misto-china" que, em poucas gerações, se torna mais "misto" ou "mulato" do que "china").

Em síntese, a distinção entre "mulatos" e "monhés" na sociedade moçambicana, mais do que da cor da pele, depende da matriz religiosa (cristãos/católicos versus islâmicos ou hindus) e da ascendência exógena (ocidente europeu versus Índico).

Registo ainda que em Moçambique é recorrente a hipótese, transformada com o tempo em crença, de a raiz histórica do termo "mulato" derivar da ancestral palavra "mula", resultado do cruzamento entre o nobre cavalo e o desprezível burro. Esse pressuposto conferiu, desde sempre, carga pejorativa ao objecto social visado porque aponta para a animalização de um determinado segmento social que remete, logo à partida, para a depreciação simbólica do negro em relação ao branco. Elementos suficientes para transformarem o termo "mulato" numa fórmula automática de invocação de uma depreciação racial primária ou, pelo menos, a palavra ficou conotada de raiz com uma intolerável grosseria no trato social.

O problema é que a opção pelos termos "mestiço" ou "misto", ainda que justificável, deixa de o ser enquanto termo categorizado com maior precisão no pensamento de senso comum. A esse nível o termo "mulato" é bem mais eficaz. Daí a minha opção.

O lugar do "mulato" nos discursos das elites Por paradoxal que possa parecer, os visados em geral não manifestam incómodos em autoclassificar-se como "mulatos", nem tal afiliação identitária alimenta autoconceitos negativos. Na perspectiva dos próprios, tende até a ocorrer o contrário. Uma das teses que recolhi em alguns discursos (quer em entrevistas formais, quer em situações de observação participante) indiciadoras do sentido de autodefesa dos membros desse segmento racial é a de sublinharem que "a tendência do mundo é a de o "mulato" predominar, mesmo nos países europeus". A frase funciona também como auto-reforço positivo precisamente por não se sustentar em evidências convincentes.

As referências, nos discursos dos mestiços/"mulatos" moçambicanos, ao "Brasil- mulato" constituem também fontes especulativas do seu auto-orgulho. Permitem a projecção vitoriosa do seu próprio grupo racial num outro espaço, longínquo, mais simbólico do que factual, que, por isso mesmo, permite supor que o segmento se afirmou de forma positiva "" e isso é supostamente reconhecido em todo o mundo. Detecta-se até, ao nível das representações do Brasil entre os mestiços/"mulatos" moçambicanos, uma tendência de longa duração. Ela prende-se com as expectativas positivas que esse outro hipotético modelo de sociedade de referência ' pela afirmação cultural do Brasil no mundo ' pode exercer sobre os equilíbrios raciais na sociedade moçambicana.

O desiderato manifestou-se de forma consequente no discurso de um dos membros da elite mestiça (ou "mulata") que aderiu à causa nacionalista e desempenhou cargos relevantes no regime pós-colonial, durante a governação de Samora Machel (1975-1986). Explicou o entrevistado que, ainda antes dos anos sessenta do século XX, quando se foi aproximando dos movimentos de esquerda antifascista portugueses que tiveram expressão residual na então colónia de Moçambique e, mais tarde, quando se identificou com a resistência anticolonial liderada pela FRELIMO, a ideia de uma sociedade moçambicana racialmente miscigenada seguindo o suposto modelo social do Brasil fazia para ele muito sentido num hipotético futuro pós-colonial do seu país africano. Sublinhou o impacto nele, ainda na época colonial, de alguns romances de Jorge Amado5, lidos então na clandestinidade. No entanto, essa expectativa acabou desvirtuada, segundo o entrevistado, pelo rumo que o processo de transição de Moçambique para a independência acabou por assumir em meados dos anos setenta, marcado pela fuga (não considerou que tivesse havido uma expulsão) em massa dos colonos brancos.

Se a diversidade racial ao nível da acção governativa ainda assim se manteve equilibrada na primeira década pós-colonial, tem vindo a transformar-se após a morte do primeiro presidente de Moçambique independente, Samora Machel, em 1986, sendo progressivamente mais ostensiva a tentação de domínio racial da maioria negra sobre as minorias raciais (mestiços, "indianos" ou brancos).

Considerou o entrevistado que isso tem implicado um maior fechamento racial no sentido da africanização do poder6 dentro das diversas instituições dependentes do poder político do Estado, embora a situação possa resultar tanto de intenções deliberadas que visam colocar negros em cargos de destaque, em detrimento de indivíduos pertencentes às minorias raciais, quanto da evolução da própria sociedade moçambicana que conta, cada vez mais, com um número crescente de quadros negros qualificados, muitos deles formados no estrangeiro.

As teses referidas, com a nota de se terem manifestado de forma clara e articulada no discurso do entrevistado acima citado, são, no entanto, do domínio público entre as minorias raciais, em especial entre mestiços e brancos. Constatei o facto ao longo do trabalho de campo nos mais diversos locais (cafés, restaurantes, ambientes familiares, ruas, festas, etc.). As variantes são diversas, umas mais radicais do que outras. Cito um exemplo: "Tu, com essa cor de pele [misto/mulato] foste director [do serviço público tal] com o Machel, mas agora isso seria impossível. Tinhas de ser negro!" (frase ouvida em conversa informal num dos cafés de Maputo, 2010).

Do material empírico resulta também evidente que existe em Moçambique um conhecimento estruturado, ao nível do pensamento social, sobre a evolução dos equilíbrios raciais. Ele pode ser sistematizado em três grandes momentos: (i)  época colonial, radicalmente dominada pelos brancos (até 1974-1975); (ii)  época de Samora Machel (1974/1975-1986), de alguma neutralidade racial, momento da história do país em que as pertenças raciais foram mais secundarizadas enquanto atributos de legitimação de posições de poder no aparelho de Estado e, por consequência, nas relações sociais; (iii)  actualidade pós-Machel, marcada pela crescente ambição de domínio racial por parte dos negros.

Esta é a tendência dos discursos dos mestiços/"mulatos". Todavia, se existe consenso nas avaliações sobre o período colonial dominado pelos brancos, consoante a cor da pele das elites entrevistadas detectam-se tendências divergentes nas avaliações das duas fases pós-coloniais. Se as avaliações dos brancos estão próximas das dos mestiços/"mulatos" (nas sociedades as minorias tendem a aproximar-se em determinados assuntos), a tendência das elites negras é diferente. Manifesta-se predominantemente no sentido de considerarem que os mais saudosistas da época de Samora Machel (1975-1986), no que tem a ver com a gestão das relações raciais pelo Estado7, são os brancos e mestiços moçambicanos precisamente porque o primeiro presidente de Moçambique manteve a sua situação de privilégio herdada da época colonial, contando que aderissem ao socialismo da FRELIMO.

Num ou noutro caso, membros da elite negra um pouco mais radicais sugerem a necessidade de uma segunda independência para o empowerment dos negros moçambicanos, uma vez que se considera que desde a constituição da FRELIMO e durante a primeira década pós-colonial o partido foi fortemente influenciado pela elite mestiça e branca, com destaque para os descendentes de goeses8. É desses sectores raciais minoritários, segundo esta perspectiva, que vêm as críticas mais radicais à governação de Joaquim Chissano (1986-2005) e de Armando Guebuza (desde 2005), sendo que estes dois presidentes da república chegam mesmo a ser denegridos precisamente por serem mais justos em termos raciais.

É plausível inferir que o distanciamento progressivo ou mesmo a ruptura com a matriz ideológica marxista-leninista-maoísta com que se entrou na era pós- colonial pode estar a implicar, em Moçambique, a racialização progressiva da ideologia oficial do Estado e, por essa via, da vida social. Trata-se de um fenómeno que permanece latente, sem que existam elementos seguros sobre a sua evolução futura.

Destaco, neste contexto, a título ilustrativo, uma outra entrevista também com alguém que tipifico como pertencente à elite pós-colonial, neste caso negro, com um percurso intelectual e político semelhante ao do entrevistado mestiço/ "mulato" anterior, que defendia que um dos problemas que dificulta a percepção da realidade moçambicana deriva de se julgar que a sociedade é racial ou culturalmente mista ou crioula (utilizou os termos como sinónimos). Na sua perspectiva, a realidade moçambicana que efectivamente conta é esmagadoramente negra, constituindo as teses das mestiçagens hipervalorizações das excepções que partem precisamente dos discursos dos mestiços. Classificou-as como uma espécie de ficção que impede que se percebam as questões relevantes da vida social por se pretender impor, a partir de cima, um modelo que não tem a ver com as características marcantes da sociedade moçambicana. Ficou subjacente, neste discurso, a crítica à importação para Moçambique do suposto modelo racial miscigenado brasileiro. Ilustrou o seu raciocínio recorrendo aos tipos sociais que dominam na publicidade, em especial os grandes cartazes de rua das cidades moçambicanas, onde se tem destacado o misto e/ou o elemento racial negro surgir diluído na mestiçagem9. Acrescento eu que, reparando em alguns dos cartazes publicitários das cidades de Maputo, Matola, Beira ou Tete, a avaliação referida pode também resultar da exclusão da componente tradicional africana nesses ícones publicitários. Isto é, os indivíduos negros que aparecem nas imagens apresentarem frentes pessoais pós-tradicionais, mesmo que por vezes recorram a adornos que visem contradizer essa percepção, numa tentativa de busca artificial das "profundas" raízes africanas.

Sobre o mesmo tema, focalizando-se também no uso da imagem como modeladora das relações inter-raciais na sociedade moçambicana, o entrevistado mestiço/ "mulato" referido em primeiro lugar sublinhou o oposto, a crescente hipervalorização do negro em relação a todas as minorias raciais (brancos, "mulatos" ou "indianos"). Para ele trata-se de indícios negativos dos dias que correm por diluírem as tentativas do passado de promoção da multi-etnicidade e inter-racialidade em Moçambique. Em sua opinião, a situação manifesta-se não na publicidade de rua (onde alega que se suprimiu a multi-racialidade, dado o quase desaparecimento do branco e do indiano em prol do negro, embora o "mulato" subsista), mas sobretudo ao nível dos manuais escolares do ensino básico que, na actualidade, segundo o entrevistado, recorrem ao mono-racialismo negro nas imagens e figuras ilustrativas, verificando-se ainda a marginalização de nomes autóctones conotados com grupos étnicos do centro e do norte do país ou derivados da tradição islâmica. Desse modo, o problema das tensões raciais, no sentido da discriminação das minorias não negras, pode arrastar-se por gerações por ser gerado por um sistema de ensino cujo acesso é cada vez mais universal. Assinalou ser essa uma tendência preocupante da forma como se tem vindo a estruturar a ideia da "moçambicanidade" nas últimas décadas, confundindo-a com as teses da "negritude".

Ainda nessa sequência, um outro mestiço da elite e que também foi membro do governo na época de Samora Machel referiu, em conversas informais (2010), que o problema crucial que o país atravessa é o de ter de decidir, ao nível da orientação governativa, se "Moçambique é um país de África ou se Moçambique é um país africano". Defende que a primeira opção abre para a modernidade e era, apesar de tudo, a lógica do ex-presidente da república Joaquim Chissano (1986- 2005). A segunda opção constitui uma "auto-estrada sem retorno" e é a opção de Armando Guebuza (desde 2005), assente na racialização intencional do poder em prol dos negros, orientação que, em sua opinião, está na base da estagnação ou do fracasso de muitos dos países do continente. Este pensamento, assinale-se, é de um assumido defensor da opção socialista para os países africanos adaptada aos novos tempos, pois o seu autor considera que tal caminho comporta uma ambição de modernização do continente e inserção no sistema internacional, ao contrário da racialização intencional do poder e das relações sociais, sempre conotada com a retradicionalização de África, que associou a riscos de encerrar as populações, em especial as decisivas populações rurais, em práticas ancestrais que, em parte, constituem a causa do subdesenvolvimento.

Assim sendo, pelo que foi referido assemelha-se relevante o significado dos atributos raciais na gestão das relações de poder em Moçambique, concretamente na distribuição de cargos de influência política e económica, por muito complexo que seja esse jogo (Elias, 2008 [1970]). Ele indicia a existência de linhas de fraccionamento, ainda que algo difusas, entre os negros e as minorias raciais ao nível das elites. A questão racial pode ser tipificada como um reprimido que paira endémico na vida política e social do país, porém paradoxalmente demasiado óbvia por não ser necessário um grande esforço para torná-la evidente.

De qualquer modo, quando se sai do círculo das elites (negras e não negras) as tensões raciais são bem menos salientes, conforme revelou o trabalho de campo nos bairros suburbanos. As pessoas comuns tendem a revelar maior indiferença ou distanciamento face a disputas com conteúdo racial. Estas revelam-se incisivas sobretudo quando está subjacente o acesso a cargos superiores ou qualificados/ técnicos na administração pública, nas empresas formais ou no meio académico, num país de bens dessa natureza demasiado escassos.

Em suma, na actual conjuntura o factor racial não constitui ameaça à estabilidade da vida colectiva em Moçambique. A porta parece estar a abrir-se.

Não se sabe até onde. Não se sabe para onde.

O "mulato" no senso comum suburbano Em Moçambique, a circulação de determinadas produções da indústria cultural importadas do Brasil (desde a época colonial) ou de Angola (crescentes no período pós-colonial), por via da música ou do futebol enquanto fenómenos de divulgação massificada, dos festejos de carnaval brasileiros de grande divulgação mediática ou da literatura (os últimos com um impacto muitíssimo limitado), tendo em conta a componente dessas manifestações que sugere a dignificação (ou mesmo a glorificação) da beleza física e sensualidade da "mulata" ou a destreza física e alegria do "mulato", praticamente não têm correspondência nos discursos de senso comum dos negros que habitam nos bairros suburbanos. Apesar de décadas e décadas de persistência de certas modas da indústria cultural, nas cidades de Maputo e Matola ou "os mulatos são como nós, negros" (neutralidade), ou, quando se considera que os "mulatos" se destacam, no geral é pela negativa (estigmatização) (Goffman, 1963). Admito, como mera hipótese resultante de um longo contacto com a realidade empírica, que essas duas tendências possam ser distribuídas de forma equilibrada entre os negros desfavorecidos.

É de sublinhar que, nas interacções com conteúdo racial, "mulatos" e negros tendem a não conferir reciprocamente atributos positivos de grande destaque. Ou representam-se como iguais ou apenas buscam diferenciar-se pela negativa. Este enquadramento é o que melhor permite compreender as relações entre esses dois segmentos raciais. Para além da herança colonial em desuso do "mulato filho de uma quinhenta", epíteto insultuoso resultante do suposto valor insignificante ("a quinhenta", vocábulo comum que servia para designar algo de valor insignificante, cinquenta centavos) pago pelos colonos brancos às prostitutas negras que frequentavam nos bairros periféricos das grandes cidades da colónia, as expressões-tipo dos negros suburbanos que melhor simbolizam os extremos referidos (neutralidade ou estigmatização) são, por um lado, "os mulatos são como nós, negros, não temos diferenças, são nossos filhos, nossos sobrinhos, nossos netos, vivemos juntos" e, por outro lado, "mulato não tem bandeira" e "mulato ou é mecânico ou é ladrão".

Neste ponto, importa considerar uma tendência de longa duração. Aproxi-mando-se tanto quanto possível das elites, no entanto, os mestiços (designação mais abrangente do que a categoria "mulatos") moçambicanos passaram largas décadas, talvez o século da colonização portuguesa efectiva, a demarcar-se do poder branco, através de hábitos culturais, de formas próprias de linguagem, da criação e alimentação do estereótipo negativo do branco pobre, o "maguerre", termo, na época colonial, de uso muito mais frequente entre brancos nascidos na então colónia e mestiços do que entre negros. Através dele estereotipava-se um tipo de indivíduo branco vindo da metrópole, com modos rudes no trato social, no geral trabalhador agrícola ("machambeiro"), que: Não sabia comer com garfo e faca; vinha para a tropa e aprendia connosco a tomar banho; trocava os vês pelos bês; escondia a comida para não ter de a partilhar com as visitas; às vezes nem sabia ler e escrever e dependia dos negros das missões que lhe liam a correspondência e escreviam o que ele precisava (registos de conversas informais ou observação participante, Maputo e Matola, 2010 e 2011, sempre com mestiços).

Uma expressão elucidativa sublinhava que "esses brancos pobres foram tão vítimas do colonialismo como todos os outros de Moçambique porque nem sabiam o que se estava a passar"10. Esta representação do branco português pobre é ainda hoje reproduzida (ao termo "maguerre" acrescentou-se, no período pós- colonial, o "tuga") e entrou no discurso das elites, incluindo as elites negras, que raramente se esquecem de sublinhar essa maneira rude de existir e de se ser português e que, mesmo assim, segundo argumentam, apenas pela cor de pele legitimavam a inferiorização dos negros no tempo colonial.

Desde a independência (1975), e provavelmente no próximo século, a essência da necessidade de demarcação identitária dos mestiços mantém-se. O alvo também se mantém na substância: o grupo racial que controla o poder político, sendo que no período pós-colonial ele mudou de cor de pele. Agora o alvo é o negro pobre.

Sobre ele, os estereótipos produzidos pelos mestiços são diversos: O preto que provoca acidentes por conduzir de qualquer maneira; o preto que não sabe viver nos prédios; o preto que bebe sem controlo bebidas tradicionais adulteradas e depois morre ou fica cego; o preto que carrega e alivia os erres a despropósito porque não sabe falar português; o preto que é gatuno; o preto que tem filhos de qualquer maneira e não se preocupa com o sida; o preto em quem não se pode confiar porque não tem sentido de responsabilidade; o preto que basta ver um tipo com uma camisa um pouco mais limpa e engomada pensa logo que é uma mina (registos de conversas informais e observação participante, Maputo e Matola, 2010 e 2011).

Este tipo de estereótipos manifesta-se nos mesmos mestiços que, quase invariavelmente, noutros contextos têm relações cordiais, familiares, de negócios, de trabalho, companheirismo, vizinhança com negros. São também os mesmos mestiços que na actualidade persistem na depreciação do "branco", em especial do branco português, "que tem de vir para Moçambique porque em Portugal passa mal, mas quando chega é rei".

Do lado dos negros moçambicanos, beneficiando do conforto de serem a maioria com consciência do país ser mais seu do que dos outros, e cuja gestão dos destinos políticos está nas mãos dos seus, as tipificações pejorativas dos "mulatos", quando ocorrem, tendem a ser bem mais explícitas, bem menos dissimuladas, expressas com muito maior frontalidade, sendo que tais manifestações são verificáveis para além do círculo familiar ou íntimo, como acontece com os mestiços. No caso destes, as avaliações depreciativas dos negros são no geral captáveis na informalidade da observação participante o que, na prática, significa off the record. É, portanto, diferente o modo como se manifestam os estereótipos negativos dos negros sobre os "mulatos", posto que, neste caso, a presença de um estranho ou de um gravador não constituem obstáculos (cf. Bonilla-Silva, 2010). Com este enquadramento, é verosímil considerar que o poder negro pós-colonial, de algum modo, foi conferindo legitimidade ao seu grupo de pertença racial para evidenciar determinado tipo de atitudes que, adaptadas aos novos tempos, reconstituem uma postura equivalente à do poder branco na época colonial que depreciava as "minorias" raciais abertamente no espaço público, em particular os negros, sendo que o conceito de "minoria" é aqui entendido não no sentido numérico (cf. Tajfel, 1982-1983 [1981], pp. 351-352; Cabecinhas, 2007, p. 71; Rex, 1987, pp. 25-26), mas no da lógica de distribuição do poder político e económico. Na sociedade moçambicana, o último, o poder económico, é categorizado como um atributo das minorias raciais, ainda que não de forma exclusiva, dado o reconhecimento da existência de uma elite económica (neste caso também política) negra.

"Mulato não tem bandeira" "Mulato não tem bandeira" é uma expressão proferida de forma despreocupada por moçambicanos negros. Esta constatação não permite concluir, por si , tratar- se de uma representação de teor racista, posto que os estereótipos não traduzem necessariamente as práticas sociais, sendo que é nas últimas que se situam os bloqueios ao nível do relacionamento inter-racial em determinado contexto social. Prefiro, por isso, adoptar o ponto de vista de Albert Memmi (1993 [1982], pp. 34-35 e 72) segundo o qual as demarcações identitárias, mesmo que fundadas no atributo da cor da pele, se transformam em racismo se situadas muito mais ao nível do uso do preconceito ou da estigmatização do outro, o diferente, para justificar determinadas agressões ou retirar daí uma qualquer vantagem ilegítima. Não é isso que se verifica em Moçambique nas representações sociais das relações entre negros e "mulatos".

A génese do estereótipo "mulato não tem bandeira" remete para a transição para a independência e tempos que se seguiram (1974-1975). Estava em causa a (re)constituição de uma identidade que rompia, de modo repentino, com a herança colonial para se afirmar como comunidade nacional de pleno direito. Dominava, por isso, a necessidade de demarcação dos diferentes, dos que não se encaixavam ou poderiam ameaçar esse sentido de pertença. Destacavam-se os ex-colonos portugueses brancos ' porém, esses abandonaram ou foram expulsos do país ' e também aqueles que, permanecendo no país inseridos numa sociedade esmagadoramente negra que revolucionava o controlo do poder político em seu favor, eram portadores de características fenotípicas ' a cor da pele não negra ' que inevitavelmente os conotava com alguma ambiguidade tendo em conta o reinventado sentido de pertença nacional, destacando-se, naquela conjuntura, os "mulatos". Por muito que os novos poderes da FRELIMO tentassem evitar a saliência de atributos raciais na regulação da vida social pós-colonial, e por muito que o sentido instintivo de autodefesa identitária da minoria mestiça os fizesse (e faça) explicitar com frequência a sua inequívoca pertença à identidade nacional moçambicana, os significados políticos e sociais dos atributos raciais não poderiam (no passado e no presente) ser suprimidos, posto que a cor de pele nunca deixou de ser relevante enquanto referente de orientação e regulação das relações sociais e das relações de poder em Moçambique, como noutras sociedades.

Para uma parte dos negros (presumo maioritária ou esmagadoramente maioritária) os "mulatos" representariam, na fase de transição de meados dos anos setenta, um dos mais evidentes objectos de atitude indefinidos entre a velha "portugalidade" e a nova "moçambicanidade". A esse segmento racial facilmente se imputava a paternidade lusitana que sobrava da colonização e que, de alguma forma, a perpetuava na nação independente. Para mais, em época de radicalismos revolucionários, torna-se inaceitável a veleidade, ainda que apenas hipotética, de alguns ' na expressão de um entrevistado do bairro Luís Cabral em Maputo11 ' poderem "segurar duas bandeiras" (a velha e a nova) como supostamente os "mulatos" fariam, até por lhes ser impossível libertarem-se do pai branco, por muito que proclamassem a sua adesão à sociedade independente renovada. A ambiguidade racial referida, nesse contexto, acabou descodificada entre os negros (ou parte deles) como o mesmo que "não ter bandeira".

Após a conquista da independência (1975), o segundo grande momento de redefinição da identidade moçambicana é balizado entre o (re)estabelecimento da paz (1992) e as primeiras eleições livres que significaram a instituição efectiva do multipartidarismo (1994), acontecimentos iniciais de um período de estabilidade política que se mantém na actualidade. A sociedade moçambicana entrou nessa nova etapa da sua existência fortemente marcada por sinais de anomia social resultantes de um prologado conflito armado (1976/7-1992). Para além da significativa destruição material e desregulação das lógicas habituais de reprodução social e económica, cifras imprecisas apontam pelo menos para um milhão de vítimas e deslocações massivas de populações, deixando alguns distritos do país praticamente despovoados com o avançar da violência (Ribeiro, 2008, pp. 134 e segs.).

No pós-guerra, nos anos noventa, os problemas associados à criminalidade urbana assumiram proporções sem precedentes. É próprio da dinâmica das sociedades encontrar bodes expiatórios que permitam domesticar as ansiedades depressivas.

Por se explica a progressiva associação representativa do "mulato" a esse novo incómodo da vida social: a criminalidade. Agora talvez perdesse algum sentido referenciar o "mulato", nos discursos do senso comum dos negros, por "não ter bandeira", mas sobretudo por ser "mecânico ou ladrão", no geral "ladrão de automóveis", numa altura em que a economia e a urbanidade se reanimavam. É usual os grupos maioritários estigmatizarem um ou outro grupo minoritário (sendo a cor da pele e/ou a religião praticada atributos "facilitadores") com o propósito de exorcizarem males sociais particularmente sensíveis.

De qualquer modo, como um dos entrevistados chamou a atenção, deve ficar-se sempre na dúvida se, em Moçambique, o problema estará na discriminação dos "mulatos" pelos negros, se muito mais nos incómodos da desregulação social associada aos roubos, se no automóvel em si enquanto símbolo de afirmação social extremamente valorizado12.

A figura do "mulato" funciona, portanto, como barómetro das preocupações sociais mais sensíveis em cada conjuntura do período pós-colonial em Moçambique: na transição para a independência (1974-1975) estavam em causa problemas de afirmação da identidade nacional, exorcizados através do "mulato não tem bandeira"; com o surgimento do multipartidarismo (meados dos anos noventa) era necessário encontrar respostas simbólicas para a criminalidade urbana, numa conjuntura em que as mais variadas instituições, do Estado (o "deixa-andar" com que se caracteriza, ainda hoje, a última década da presidência liderada por Joaquim Chissano) às famílias (muitas delas desestruturadas durante a guerra civil e no seu rescaldo), eram percepcionadas como fortemente desreguladas, sendo a resposta simbólica encontrada no "mulato [que] é mecânico ou é ladrão [de automóveis]". Nessa lógica, seria plausível que o estereótipo do "mulato sem bandeira" com o tempo fosse sendo substituído pelo estereótipo do "mulato mecânico ou ladrão [de automóveis]". A verdade é que o material empírico não legitima tal hipótese sequencial. O que acontece é que, na actualidade, como fui verificando no terreno (2010 e 2011), o aparecimento e frequência da segunda expressão não substitui necessariamente a primeira. São antes estigmas do "mulato" muito mais simultâneos do que sequenciais neste tempo pós-colonial.

A constatação deixa evidente uma das características das identidades sociais.

Estas, quando assumem um sentido gregário tendencialmente "fechado" ("nós versus eles"), podem gerar processos colectivos de transformação social (quando as fronteiras entre grupos são concebidas como impermeáveis, ao contrário dos processos individuais de mobilidade social que ocorrem quando essas fronteiras são permeáveis) assentes na necessidade de demarcação daqueles que se tomam por ambíguos por se afastarem de modo mais evidente do núcleo central de atributos que condicionam o sentido da pertença identitária (Tajfel, 1982-1983 [1981]).

No caso das identidades nacionais, o atributo da cor de pele constitui, por regra, um referente central. Daí que, na ambiguidade persistente com que se representa o "mulato", reside um dos sintomas também persistentes da racialização da sociedade moçambicana.

Todavia, a mestiçagem não pode ser tipificada como um mero objecto negativo que serve para a coesão e reforço do grupo racial maioritário. Os negros moçambicanos (mesmo os que em certos contextos alimentam os estigmas referidos) também se auto-representam como próximos dos "mulatos" e, de alguma forma, dos brancos. Bem mais estável e sustentada é a demarcação da maioria negra em relação aos "asiáticos" ("indianos", árabes ou chineses).

Os indivíduos negros desfavorecidos, inclusivamente, tendem a valorizar as relações maritais entre brancos e negras (mais raramente entre negros e brancas), fenómeno que dizem marcar a sociedade moçambicana da actualidade, distinguindo-a profundamente, a nível racial, da época colonial. São precisamente essas relações que continuam a gerar "mulatos". Os últimos, de uma ou de outra forma, acabam associados à ligação entre os extremos raciais (e socioeconómicos) daquela sociedade (negros versus brancos). Como as sociedades vivem na expectativa da coesão, e tendo como pano de fundo uma sociedade historicamente constituída em torno de negros e brancos, o objecto "mulato" funcionará, para as pessoas negras comuns, de algum modo como um dos símbolos da possibilidade de transformação da condição de desvantagem socioeconómica em que vivem.

Tratando-se de um modelo dominantemente tri-racial (negro-mulato-branco) ou multi-racial (se se incluírem "indianos", chineses e árabes), ainda assim em Moçambique, à medida que descemos na hierarquia social, crescem as possibilidades de indivíduos que se autoclassificam como negros designarem o conjunto de minorias raciais como "brancos", incluindo numa única categoria europeus, indianos, chineses, árabes, mestiços/"mulatos". Ainda que o façam com a consciência de que "eles" são todos "brancos", mas "brancos diferentes entre eles". Portanto, este estudo empírico demonstra a possibilidade de, numa mesma sociedade, coexistirem a tri/multi-racialidade e a bi-racialidade (cf. Bonilla- Silva, 2010).

Importa acrescentar que não se deve tomar como referência apenas a "objectividade" das diferentes cores de pele, mas também as representações sociais que se elaboram de determinadas pertenças sociais sustentadas em particularidades como a maneira de vestir, de falar, práticas religiosas, educação e formação escolar, profissão, tipo de habitação e relacionamento familiar (marital e de educação dos filhos), entre outros hábitos de vida. No domínio da categorização do conhecimento social, esse conjunto de hábitos é simplificado através de um rótulo racial ' "isso é coisa de negro/branco/ mulato/monhé" ', mesmo que não exista uma correspondência objectiva entre esse tipo de expressão e a cor da pele do visado. Trata-se de uma ginástica semântica que, em Moçambique, por vezes autonomiza a ideia de raça da ideia da cor da pele.

Ouvi durante o trabalho de campo em Moçambique expressões sintomáticas. Para citar um exemplo, no final de uma entrevista colectiva com três estudantes universitárias negras em Maputo (07.05.2010), num momento de maior descontracção uma delas disse a outra do grupo: "Ah... tu és branca!" Todos percebemos o que a expressão significava: a visada era precisamente uma das que mais se assumiu como próxima da cultura ocidental e que eu destacaria como a mais possuidora, em relação às outras duas, de uma frente pessoal e demais atitudes condizentes. E Moçambique não é excepção, posto que em sociedades maioritariamente brancas ou negras é comum considerarem-se os negros de sucesso como não sendo "propriamente" negros ou como sendo "brancos" (Rex, 1986, pp.

94-95).

"Mulato ou é mecânico ou é ladrão [de automóveis]" "Mulato ou é mecânico ou é ladrão", acrescentando-se muitas vezes "de automóveis", como referi, é outra expressão saliente nos discursos de senso comum dos negros moçambicanos. Importa enquadrar o assunto no tempo longo.

Durante a dominação portuguesa em Moçambique reconhecia-se aos "mulatos", praticamente desde os inícios do século XX, habilidades e capacidades para a aprendizagem, em particular de artes e ofícios, que os colonos brancos negavam aos negros, estes tidos como intelectual e culturalmente incapazes. As atitudes em relação aos negros apenas iriam mudar, ainda assim de forma gradual, a partir de meados do século. Tendo em conta o aumento crescente da circulação automóvel com os avanços da colonização, uma parte do segmento "mulato" foi aprendendo a arte da mecânica junto de antigos colonos.

Sublinhe-se que o segmento profissional em apreço não se circunscrevia ao ramo automóvel, mas contemplava ainda domínios relacionados com a maquinaria dos caminhos-de-ferro, da navegação ou de outras actividades técnicas em expansão, como a rede eléctrica ou a água canalizada. Tratava-se da componente urbana das artes e ofícios que, para além dos brancos, as famílias mestiças poderiam gerir com alguma autonomia, enquanto a outra componente, a rural, na qual se destacava o ensino das missões, ia preparando alguns nativos negros para outro tipo de profissões, também associadas às artes e ofícios, mas com características menos mecânicas e mais de trabalho manual (carpinteiro, pedreiro, alfaiate, cozinheiro, etc.). Portanto, no domínio da preparação profissional para o mercado de trabalho pós-tradicional terá existido em Moçambique, praticamente desde o início da dominação colonial efectiva, uma fragmentação entre as actividades urbanas do mundo moderno (mecânica e afins) e as actividades do habi-tual mundo artesanal (carpinteiro, pedreiro, etc.) que, de alguma forma, constituiu uma marca originária que distinguiu o tipo de afirmação dos "mulatos" do tipo de afirmação dos negros no contexto da sociedade colonial. As consequências dessa génese perduram na actualidade.

Um segundo momento justificativo das tendências nas representações sociais do relacionamento entre negros e "mulatos" em Moçambique teve a ver com a saída abrupta dos colonos brancos em meados da década de setenta. Essa si-tuação levou a que, nas primeiras décadas pós-coloniais, os "mulatos" se fossem destacando enquanto imagem de marca do sector técnico-profissional urbano.

Nesse processo não se terá verificado tanto uma ruptura em relação ao passado colonial, antes a afirmação e maior saliência de uma identidade profissional "mulata" constituída. O "mulato", também por essa via, apresentava-se como herdeiro (profissional) do colono branco, "o pai dele", como alguns dizem.

Acontece que, como sublinhei, esse momento de transição política foi repentino, muito sensível, redefinindo a identidade moçambicana numa conjuntura em que o segmento "mulato" alimentava ambiguidades difíceis de domesticar pela esmagadora maioria negra (cf. Moscovici, 2000 [1984], pp. 41 e segs.). Mesmo que a independência estivesse a proporcionar aos negros uma fortíssima ascensão profissional e social, ainda assim a herança colonial proporcionava aos "mulatos" (ou mestiços) um know-how que lhes conferia vantagens qualitativas para o exercício de alguns cargos tecnicamente mais exigentes, incluindo funções de chefia. É por isso que as primeiras décadas pós-coloniais, se romperam em parte com o tipo de relações raciais herdadas da época colonial, numa outra dimensão, em especial no domínio profissional, terão aprofundado o sentimento de desvantagem profissional que os negros anteriormente sentiam em relação aos mestiços/"mulatos". Foi nesse contexto que a estereotipificação negativa da minoria "mulata" pela esmagadora maioria negra passou a dispor de um terreno social mais apelativo do que acontecia na época colonial. Se a independência foi em geral vantajosa, na perspectiva dos mais desfavorecidos sobrou a intuição de os mestiços terem sido os maiores beneficiários. Por esse prisma, as representações focadas no sector da mecânica automóvel devem ser interpretadas como sintomas de um fenómeno social mais amplo.

Os "mulatos" são ainda marcados por outra característica que contribui para a sua desqualificação simbólica. Constituem um grupo racial minoritário no qual predomina um estilo de vida de tipo urbano, num país onde a esmagadora maioria da população se situa entre o mundo rural e/ou a pobreza (isto é, trata-se de gente "sem carro"), o que facilita a construção de estereótipos que associam o "mulato" ao automóvel.

Quando nas sociedades os grupos minoritários são estigmatizados significa, na essência, que são avaliados como mais disruptivos do que os indivíduos pertencentes à maioria, as "pessoas normais" (por exemplo, os ciganos nas sociedades ocidentais), e/ou porque é comum considerar-se que os membros de determinados grupos minoritários alegadamente não respeitam os padrões habituais no relacionamento com os outros (por exemplo, a tida como "excessiva" propensão dos judeus para acumularem riqueza, também nas sociedades ocidentais).

Estando em causa a minoria "mulata" moçambicana num contexto de tendencial anomia pós-guerra civil, no caso das cidades de Maputo e Matola a sua estigmatização pela maioria negra (tendência que não se revela nem generalizada nem radical) deve ser articulada com a percepção que os indivíduos têm da estrutura social da qual são membros. Ou seja, não estão em causa práticas de hostilização racial propriamente ditas também por causa do "efeito classe média". Explico: a estigmatização de grupos raciais minoritários apenas se torna potencialmente problemática quando eles são percepcionados como estando nos extremos da estrutura social (ou mais ricos/poderosos ou mais pobres/fracos do que a "média"). A tese dominante que circula entre os negros em Moçambique sobre os "mulatos" não encaixa neste padrão, podendo ser caracterizada por esta ideia-tipo: "Os mulatos não são tão ricos como a elite negra que governa, nem tão ricos como alguns brancos estrangeiros ou indianos, mas também não são tão pobres como a maioria dos negros, e comportam-se de forma ambígua entre uns e outros e, quando se destacam naquilo que lhes é peculiar, é pela negativa". É isso que designo por "efeito classe média".

É plausível, nestas circunstâncias, aglutinar nas representações sociais dos "mulatos" a ideia de classe média. Nas sociedades as classes médias não são em geral problemáticas para a estabilidade da vida social precisamente porque, de uma ou de outra forma, a maioria identifica-se com ela ou, pelo menos, não julga impossível aproximar-se ou aceder a ela. Dito noutros termos, na estrutura social moçambicana o potencial de conflito racial, mesmo que envolva os mestiços/ "mulatos", está muitíssimo mais dependente das relações entre negros (maioria) e brancos (minoria). Em situações em que a relação entre esses extremos está estabilizada e não alimenta animosidades ' como acontece na actualidade em Moçambique ' a estigmatização do "mulato" funciona mais como válvula de escape simbólica para as ansiedades colectivas ("da boca para fora") do que como sintoma de tensões inter-raciais.

A forte associação dos "mulatos" à mecânica nos discursos do senso comum tem também a ver com o modo como, no pensamento social, os grupos raciais são categorizados. Para além de alguns hábitos culturais específicos atribuídos a cada um dos segmentos, o critério da actividade profissional considerado predominante em cada segmento é bastante saliente. É com base nesse critério, mais do que qualquer outro, que as pessoas comuns avaliam o contributo de cada segmento racial para a vida colectiva. Utilizando o material empírico de Moçambique, a tese pode ser tipificada nos seguintes termos: O governo do país é nosso, dos negros [governar]; nós [pobres] trabalhamos para os patrões ou fazemos pequenos biscatos quando apanhamos; o indiano está nas lojas [comércio formal]; o branco está a dirigir as empresas e as fábricas [actividade industrial e empresarial formal]; o chinês anda nas obras e no comércio [operário qualificado ou comerciante formal]; o burundês e esses outros africanos andam no pequeno negócio dos contentores [comércio mais ou menos informal].

É com base nesta lógica que o "mulato" se destaca como "mecânico de automóveis". Daí que seja exagerado radicalizar as particularidades conferidas aos "mulatos" e à "sua" profissão, uma vez que esses critérios são generalizáveis aos diferentes segmentos raciais.

De resto, as avaliações de senso comum sobre o significado social da mecânica automóvel são ambíguas. A actividade em si é tida como importante para a vida em comum, mas pouco considerada ou mesmo desprezível porque, como alguns entrevistados muitas vezes referem, "não exige estudo, apenas habilidade nas mãos e tempo para ver, aprender e praticar com os outros mecânicos que sabem". Por outras palavras, o "mulato" destaca-se pela habilidade manual supostamente inata o que, sendo um atributo positivo, está longe de ser um atributo de excelência. Portanto, o "mecânico nato" não prima nem pelo intelecto, nem pela educação esmerada ou polidez no trato com os outros, nem ainda por promover actividades que valorizem as outras pessoas além dos próprios. Como alguns negros suburbanos asseguram, "a mecânica é própria deles, dos mulatos".

O "mulato" e a "mulata" Na generalidade dos ambientes sociais a partilha da vida íntima entre indivíduos de pertenças raciais (e étnicas) diferentes funciona como reduto particularmente sensível para as pessoas comuns atestarem o "racismo" ou o "não racismo" do grupo de pertença "xis" ou "ípsilon" (cf. Bonilla-Silva, 2010). No caso de Moçambique o casamento ou relação marital inter-racial revela-se precisamente um dos critérios a que os indivíduos recorrem para tender a categorizar os brancos e os "indianos" em extremos opostos, respectivamente, o extremo positivo e o extremo negativo no tipo de relação que se supõe que estabelecem com a maioria negra. Uma frase-tipo que circula nos bairros suburbanos de Maputo e Matola é esta: Os brancos de agora [pós-coloniais] casam com negras sem problemas, mesmo algumas brancas casam com negros. Indiano com uma negra?! Nunca vi. Se existe é muito raro. Pior se for indiana com um negro. Casam entre eles.

Portanto, as pessoas comuns, negras, tendem a considerar que as relações amorosas negro-branco constituem uma característica cada vez mais frequente e não problemática da sociedade moçambicana.

Na longa duração, o aparecimento em Moçambique de famílias com descendência racial miscigenada remonta à época da ocupação colonial efectiva. Com o avançar do século XX, essa descendência "mulata" foi-se consolidando como segmento autónomo em relação aos grupos dominantes (negros, a população autóctone, e brancos, os detentores do poder), ao mesmo tempo que, no seu interior, consolidaram-se também diferenças, com destaque para a que demarcava o "mulato" de origem rural do "mulato" de origem urbana.

Quanto ao primeiro tipo, o "mulato" de origem rural (cf. romance de J. P.

Borges Coelho, O Olho de Hertzog, 2010), normalmente perfilhado pelo pai branco, era socializado e educado na família negra materna, mas debaixo da tutela paterna, mesmo que distante. Em alguns casos, esses filhos eram trazidos pelos pais brancos para serem educados na cidade passada a primeira infância.

Uma vez junto do pai, estabelecia-se um distanciamento formal da matriz africana, mas não necessariamente uma ruptura com essa matriz, característica que sobressaía de forma mais ou menos explícita, mesmo que numa tendência de dor reprimida, como a que se manifesta na expressão poética dos mestiços onde o objecto mãe-negra acabou por ser uma constante. É a esse núcleo que pertence a elite "mulata", considerada em Moçambique na época colonial os "mulatos de primeira".

O segundo tipo, o "mulato" de gestação urbana, tipifica o enjeitado, o "mulato de uma quinhenta", a expressão insultuosa de senso comum com que durante décadas esse tipo de "mulato" foi rotulado por brancos e negros. Esta variante urbana do "mulato" acaba por ser, por isso, a socialmente desconsiderada.

De qualquer modo, os "mulatos" tendem a ser percepcionados pela esmagadora maioria negra "apenas" como "mulatos", ou seja, a percepção da fragmentação da minoria racial em "mulatos de primeira", "mulatos de segunda" ou "mulatos de terceira" (ou "mulatos da Mahafil" como se diz em Maputo13) era muito mais um fenómeno das elites e, sobretudo, dos próprios mestiços.

Os "mulatos de primeira" eram os mais próximos do poder colonial e da elite branca, sendo que tal estatuto não era necessariamente definido em função de uma cor de pele mais clara (por exemplo, resultante da união entre branco e mulata), antes pela importância da paternidade branca e educação próprias de classes médias ou mesmo de elites portuguesas. Segundo foi referido numa entrevista14, a extensão da maçonaria a um grupo restrito de brancos privilegiados que vivia em Moçambique ainda na primeira metade do século XX contribuiu para que os "mulatos de primeira" se afirmassem, uma vez que a organização forçava os seus membros a não abandonarem nenhum dos filhos e a educarem-nos, mesmo os ilegítimos tidos com negras ou mestiças. Esses "mulatos" foram-se destacando na sociedade colonial. De qualquer modo, como também foi referido numa outra entrevista15 e em conversas informais, este grupo demarcava-se intencionalmente do poder branco, procurando a sua autonomia, no geral através de casamento no interior do próprio grupo e estereotipando de forma negativa o branco, generalizando a partir do suposto modelo do branco pobre, o "maguerre", conforme caracterizei.

Os "mulatos de segunda" teriam um estatuto intermédio. Não eram enjeitados pela paternidade, mas também não possuíam a educação esmerada da elite mulata. Ainda assim, alguns conseguiram destacar-se em cargos administrativos ou ao nível da intelectualidade da colónia.

Os restantes eram os "mulatos" pobres, os mais estigmatizados, os "mulatos de uma quinhenta", descendência urbana não perfilhada ou cujos pais eram brancos, mas de baixa condição social. Tratando-se de cidades com trânsito portuário crescente ' como Lourenço Marques e Beira, mas também em menor escala Quelimane ou Nacala/Nampula ' alguns desses "mulatos" eram descendentes de pais brancos, mas de outras nacionalidades que não a portuguesa: gregos, árabes (sobretudo sírios e libaneses), britânicos, entre outros.

Em meados da década de setenta, com a transição de Moçambique para a independência, as lógicas da hierarquia interna do segmento "mulato" sofreriam alterações significativas. Com a saída do país da esmagadora maioria dos colonos brancos e de uma parte da elite mestiça, e a consequente reconfiguração profunda da estrutura racial da sociedade moçambicana, um dos efeitos acabou por ser o da homogeneização do segmento racial "mulato", isto é, as diferenças existentes no interior do grupo entre "mulatos de primeira", "mulatos de segunda" ou "mulatos de Mahafil" perderam sentido. Dadas as circunstâncias, o segmento "mulato" assumiu a função racial de relevante "outro" para a renovada esmagadora maioria negra. Sublinhe-se que, ao nível do pensamento social, as sociedades tendem invariavelmente a ser interpretadas como funcionando com base em antagonismos, no caso raciais (negros versus não negros) (cf. Moscovici, 2000).

A diluição das diferenças entre os mestiços era também, de alguma forma, uma herança das transformações na sociedade colonial que, na fase final (a partir dos anos sessenta), foi marcada pelos avanços da escolarização e pela integração crescente de mestiços no aparelho administrativo e profissional do Estado nessa época, minimizando o peso das heranças elitistas paternas. Para o período revolucionário pós-colonial, é necessário ter ainda em conta a pressão do projecto igualitarista inspirado pela ortodoxia marxista-leninista-maoísta da época do presidente Samora Machel (1975-1986), explicitamente intolerante, no plano dos princípios, face às diferenças sociais por razões raciais ou étnicas.

Desse longo processo de diferenciação interna, nos discursos de senso comum dominantes na actualidade nos bairros suburbanos de Maputo e Matola sobraram na actualidade as diferenças de género entre o "mulato" e a "mulata". Se partirmos do pressuposto de que a ideia-base é a de eles resultarem de pai branco e mãe negra, infere-se uma projecção nos "mulatos" do complexo de Édipo, incluindo a variante de complexo de Édipo no feminino ou complexo de Electra.

A ideia de senso comum dos negros é a de o "mulato" ser próximo da mãe-negra e, por isso, aproxima-se e relaciona-se sem problemas com os negros, mesmo os pobres. Precisamente por essa proximidade, na versão negativa o "mulato" é tido como o instigador e líder dos maus comportamentos dos negros. Numa entrevista foi dito que: Se nós os três [eu, entrevistador mulato, o meu guia e entrevistado negros] fôssemos juntos a Maputo [estávamos na Matola, num bairro pobre] era natural que a polícia nos pedisse a identificação porque sabe que ali malandragem16.

Noutra entrevista: As pessoas [negras] sabem que quando alguém da família arranjou um amigo mulato lamentam a sorte. As pessoas têm na cabeça que o mulato tem tudo o que é mau na cabeça dele. É como se fosse a junção dos males das duas raças [negra e branca]17.

Portanto, projecta-se a responsabilidade daquilo que de negativo no in-group (negro) no out-group ("mulato"). A atitude assemelha-se, como sempre, bem mais a um ritual de exorcismo simbólico da identidade negra ' que tem consciência dos problemas de criminalidade provocados pelos negros ' do que a uma prática racial discriminatória contra os "mulatos".

No caso das avaliações entre os negros sobre a "mulata", quando elas se manifestam, é o oposto. Tende a considerar-se que ela afasta-se dos negros (o lado materno) para se "encostar" ao lado do branco (do pai). Por isso, quanto mais as "mulatas" são catalogadas como mulheres bonitas, mais são rotuladas de "muito orgulhosas" ou "distantes". A frase-tipo é: "Não são todas assim, mas muitas passam por uma pessoa, como nós estamos aqui assim agora a conversar à porta de casa, e nem cumprimentam, mesmo quando moram perto e sabem quem somos".

Numa variante um pouco mais elitista e agressiva, num convívio numa família negra de classe média/alta em Maputo (2010) ouvi a expressão: "mulata é puta ou secretária".

Todavia, mesmo entre as jovens universitárias negras é recorrente detectar a ideia de, em algum momento da sua vida (na infância, na adolescência ou na idade adulta), terem ambicionado casar-se ou terem uma relação marital preferencial com um branco. Se a isso acrescentarmos o facto de serem muito mais os homens brancos do que as mulheres brancas a manterem relacionamentos dessa natureza com indivíduos negros, logo a tendência do género feminino para a procura de parceiros ou cônjuges de pele mais clara não é uma exclusividade das "mulatas", nem das negras, nem das brancas.

Quer entre os negros suburbanos, quer entre os jovens universitários negros, detectei ainda alguma propensão nos seus discursos para associarem os "mulatos" (eles e elas) ao consumo de estupefacientes, à vida fácil, à falta de apetência para o estudo, trabalho ou vida honesta, a comportamentos verbais de quem sabe e pode tudo mas, depois, na prática é um logro. Sobre o último atributo nos bairros suburbanos captei por diversas vezes a expressão: "Mulato é shofista!", neologismo de inspiração anglófona que significa que o "mulato" e a "mulata" vivem do show-off, são exibicionistas.

Quando informalmente confrontei um ou outro "mulato" com este tipo de avaliações, as reacções passaram pela desvalorização ("não são todos os negros que pensam isso, mas uma minoria") ou pela reacção agressiva de responder na mesma moeda ("pensamos o mesmo deles").

Outra variante revelou-se numa sessão que dirigi na Universidade Politécnica de Maputo sobre o tema das relações raciais (29.04.2010). A turma era composta por uma esmagadora maioria negra e uma percentagem reduzidíssima de mestiços.

Saliento a intervenção de uma aluna "mulata" (assim se autodefinia) que contestava o facto de alguns alunos terem antes referido a tendência das pessoas, na sua universidade, para se fecharem no seu grupo racial, insinuando- se uma atitude discriminatória que atingia os negros. A aluna defendeu que essas situações aconteciam devido ao complexo de inferioridade dos negros, considerando que estes têm dificuldades de auto-afirmação, ao contrário dos "mulatos", que se relacionam mais facilmente fora do seu grupo. Quando um grupo conversava informalmente, independentemente das pertenças raciais das pessoas, o "mulato" "Vai e fala!", argumentou a aluna, defendendo que deveriam ser os negros a afirmar-se para verem que não seriam rejeitados: "O mulato impõe-se e o negro tem de se impor". Nessa sequência, um outro aluno, negro, disse que se aproximava sem problemas de qualquer grupo racial na universidade, mas reconheceu que ele próprio alimentava certos estereótipos. Contou que em certa ocasião estava ao de um grupo de colegas seus brancos e depois afastou-se.

Um outro aluno negro foi juntar-se a esse grupo de brancos e ele, à distância, terá comentado, sem que existissem razões para isso, " estão os senhores e o escravo!".

O episódio relatado circunscreve-se a uma situação institucional específica: a sala de aulas de uma universidade da cidade de Maputo. Todavia, permite ratificar algumas das teses defendidas ao longo desta análise: as demarcações raciais são inegáveis na sociedade moçambicana; elas traduzem-se na elaboração de estereótipos de parte a parte; os estereótipos negativos não são excessivamente generalizáveis, nem suportam atitudes sistemáticas ou potenciais de agressividade face ao outro; os estereótipos também não bloqueiam de forma ostensiva os contactos inter-raciais; por último, é um erro de análise tipificar de modo simplista o conjunto complexo de elementos empíricos disponíveis, no sentido de se catalogarem uns de "racistas" e outros de "vítimas".

Conclusão Em jeito de conclusão, destaco: (i) o facto de o sentido de pertença racial ser relevante na sociedade moçambicana, embora o potencial de tensão inter-racial tenda a circunscrever-se às elites e classes médias que pesam pouco na estrutura da sociedade, esmagadoramente dominada por segmentos sociais desfavorecidos e mais propensos à desvalorização dos antagonismos raciais; (ii) as representações sociais das mestiçagens raciais são tipificadas com maior eficácia se centradas no objecto "mulato"; (iii) nas avaliações da maioria negra os "mulatos" ou são neutros ("são como nós, negros") ou, quando se destacam, é pela negativa: "mulato é filho de uma quinhenta" (tempo colonial); "mulato não tem bandeira" (gerada na transição para a independência); e "mulato ou é mecânico ou é ladrão" (gerada no rescaldo da guerra civil); (iv) no período pós-colonial a figura do "mulato" tem sido instrumentalizada pela maioria negra para domesticar ansiedades suscitadas por fenómenos sociais perturbadores; (v) ainda assim, a demarcação entre negros e "mulatos" moçambicanos enquadra-se muito mais no domínio da diferenciação entre grupos de pertença do que numa situação de potencial conflito inter-racial; (vi) a terminar, a persistente ambiguidade do objecto de atitude analisado tem também a ver com o facto de a "mulata" tender a ser avaliada como distante dos negros porque próxima da identidade do pai branco e o "mulato" como próximo da identidade da mãe negra, mas essa proximidade não é necessariamente construtiva.


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