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EuPTHUHu1645-37942012000100006

EuPTHUHu1645-37942012000100006

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN1645-3794
ano2012
Issue0001
Article number00006

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Formação de Quadros Superiores Moçambicanos em Portugal: Trajetórias, identidades e redes sociais Formação de Quadros Superiores Moçambicanos em Portugal: Trajetórias, identidades e redes sociais Ana Bénard da Costa* *Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL),  Centro de Estudos Africanos - IUL, Portugal ana.benard.costa@iscte.pt

Mozambicans in the Portuguese higher-education system: Trajectories, identities and social networks Abstract This article analyzes the individual and family trajectories of Mozambicans who have attended universities in Portugal. It seeks to understand the factors that have influenced their educational background and the impact that higher education in Portugal has had in terms of their identity formation. The paper also analyzes issues related to the cooperative social networks influencing their decision to pursue higher education in Portugal, their integration into Portuguese society, and their subsequent reintegration and professional careers in Mozambique. Finally, the article addresses the impact that higher education of Mozambicans in Portugal has had on the national development of Mozambique.

Keywords: higher education, Mozambique, Portugal, identities, social networks, development

A presente análise resulta de uma investigação realizada no âmbito do projeto interdisciplinar "Formação superior e desenvolvimento: Cooperação portuguesa com os PALOP" (2010-2012). Este projeto tem como principal objetivo identificar a importância da formação avançada na concretização de projetos pessoais e, de uma forma mais abrangente, no próprio processo de desenvolvimento dos PALOP, assim como contribuir para uma análise crítica da cooperação portuguesa neste campo de ação específico.

O projeto foi desenhado com base em pesquisas anteriores (Costa, 2012, 2010, 2009a, 2009b, 2006-07; Faria, 2012, 2011a, 2011b, 2010a, 2010b, 2009a, 2009b) e em que este incide.

Relativamente aos estudantes e quadros superiores moçambicanos, as pesquisas anteriores e as realizadas no âmbito do projeto em curso e acima referido, permitiram a recolha de dados empíricos entre os anos de 2003 e 2011 e que foram obtidos em Portugal e em Moçambique (Maputo e Nampula). Nestes dois países realizaram-se trabalhos de campo com estudantes universitários e quadros superiores, muitos destes tendo frequentado universidades em Portugal.

O facto de a presente análise estar enquadrada por um projeto interdisciplinar implicou que se elaborasse um conjunto de instrumentos de pesquisa e de análise comuns, nomeadamente guiões de entrevista e grelhas de análise que foram aplicados a informantes dos cinco países.

No presente artigo analisam-se dados de três informantes relativos às suas histórias de vida e de família que foram recolhidos em 2005, 2007 e 2010, o que permitiu ter uma perspetiva das suas trajetórias através de diferentes relatos obtidos em anos e lugares diferentes (Portugal e Moçambique). A par desses dados, este artigo baseia-se num trabalho de campo efetuado em Maputo e Nampula, em dezembro de 2010, onde se realizaram entrevistas aprofundadas e histórias de vida e de família a mais 17 informantes1. Todos os informantes, escolhidos por conveniência ou através do sistema "bola de neve", realizaram a sua formação superior em Portugal entre os anos de 1990 e 2011.

Neste artigo procura-se compreender quais os fatores que ao nível familiar e político influenciaram os percursos escolares destes informantes e a sua deslocação para Portugal e qual o impacto desta estadia em termos dos processos de estruturação identitários e da constituição de redes sociais, académicas ou de cooperação com implicações futuras nos seus percursos profissionais. Por último, analisam-se as opiniões relativas ao contributo que a formação adquirida em Portugal teve, ou tem, no processo de desenvolvimento de Moçambique.

A escolha do início dos anos 90 para a investigação do projeto referido justifica-se pelo facto de os processos de liberalização política e económica se terem iniciado nessa década nestes países africanos (alguns iniciaram este processo na década anterior), que abandonavam então os modelos de inspiração socialista seguidos desde a independência. Estas mudanças trouxeram fundamentais transformações, nomeadamente em termos dos destinos de formação dos quadros desses países (inicialmente dirigiam-se sobretudo para os países do Bloco Socialista e depois da liberalização passaram a ir para os países ocidentais) e da menor influência que os governos nacionais passaram a exercer sobre as trajetórias individuais e profissionais dos seus cidadãos.

Simultaneamente, é a partir dessa década que se iniciam as grandes transformações no mundo universitário. um reconhecimento geral e progressivo de que o conhecimento é essencial para o desenvolvimento social e económico e este novo paradigma passa a dominar crescentemente as intervenções internacionais (Lopes, 2008).

A cooperação ao nível do ensino superior que ainda no início dos anos 90 consistia, sobretudo, em programas de bolsas que suportavam a deslocação de académicos africanos para as universidades europeias e americanas, transforma- se com a inclusão progressiva e ainda em curso de outras vertentes, nomeadamente programas internacionais que ligam entre si universidades de diferentes países (EDULINK) e programas de intercâmbio de estudantes (Erasmus- Mundo). Simultaneamente a cooperação universitária baseia-se cada vez mais em programas atuantes, num sistema de creditação do trabalho académico e de cursos comum, e na articulação dos vários graus obtidos (Carvalho, 2011). Esses sistemas, nomeadamente o "Processo de Bolonha", estão a ser implementados em alguns países africanos embora a ritmos diferentes e com alguns retrocessos2.

Trajetórias familiares e percursos escolares Como mencionado, esta análise baseia-se essencialmente num trabalho de campo realizado em Maputo e Nampula em dezembro de 2010 no decorrer do qual foram entrevistados 20 informantes, sendo que três destes tinham sido objeto de estudo em anos anteriores.

Pertencendo a gerações diferentes e com idades compreendidas entre os 21 e os 50 anos (cerca de metade com menos de 35 anos), estas oito mulheres e doze homens, maioritariamente professores universitários (11)3, experimentaram vivências diversas tanto ao nível das suas trajetórias pessoais e familiares, como em termos de formação e ainda ao nível dos seus percursos profissionais.

Se alguns têm memórias do período colonial, e da época socialista, outros, mais jovens, de todo esse passado sabem o que ouviram contar. Se uns nasceram em famílias letradas com pais e avós que frequentaram a escola e até o ensino superior, outros têm progenitores que nunca foram à escola ou que a frequentaram por poucos anos. Se alguns são citadinos, outros nasceram no meio rural, e se os que referem que nunca passaram privações também aqueles que recordam tempos difíceis.

Apesar de todas as diversidades, algumas ocorrências comuns em termos da educação formal e do acesso a uma formação superior que importa destacar.

Para além de partilharem o facto de terem pelo menos uma licenciatura e de durante alguns anos das suas vidas terem vivido em Portugal e adquirido parte ou a totalidade da formação superior que agora possuem, a maioria destes informantes (15) faz parte da primeira geração de licenciados da respetiva família. Dos cinco informantes que têm pelo menos um dos progenitores licenciados, três têm menos de 30 anos. Os dois informantes mais velhos que têm o pai licenciado, num dos casos este progenitor formou-se em adulto e no outro adquiriu uma formação média no tempo colonial que posteriormente foi equiparada a curso superior: "Ele é médico, não chegou a fazer propriamente o ensino superior, aprendeu naquelas formações coloniais" (C.F., 30 anos).

Para além de se considerar que o facto de pertencerem ou não à primeira geração de licenciados da família é um elemento que permite estabelecer distinções em termos de processos de mudança social e cultural que ocorrem nas famílias dos informantes que aqui se analisam, surge importante agregar a este critério um outro, relacionado com o facto de serem ou não descendentes de famílias de assimilados4.

Esta distinção baseada tanto na "herança" de capital escolar (Bordieu & Passeron, 1964) de nível superior, como na herança de um estatuto social e cultural, ao qual está associado igualmente o capital escolar5 (embora não de nível superior), permite isolar um grupo de 15 entrevistados ' descendentes de famílias de assimilados e/ou de progenitores com curso superior ' dos restantes que não descendem de famílias que foram assimiladas no tempo colonial, nem de progenitores com formação superior.

Considera-se a distinção baseada nestes critérios como particularmente elucidativa dos processos de mudança social e cultural que ocorreram em Moçambique nestas últimas décadas e do papel que a formação superior desempenhou e desempenha. A estes critérios, a análise agrega posteriormente um outro relacionado com as diferentes gerações de pertença dos informantes pela importância específica que os diferentes contextos históricos e políticos adquirem em cada época e para cada faixa etária nos respetivos processos agenciais (Faria, 2012). Os outros critérios que poderiam ser utilizados, nomeadamente socioeconómicos ou relacionados com as zonas geográficas de origem das famílias dos informantes (rurais ou urbanas) e que também se mencionam adiante neste texto, ou se incorporam nos critérios acima mencionados ou não são relevantes para a compreensão dos fatores que estruturam estes percursos estudantis.

O relevo dado ao facto de os informantes descenderem de progenitores com cursos superiores e/ou de famílias assimiladas, deriva de estes fatores permitirem afirmar a sua pertença a uma certa elite6 moçambicana. Os informantes que se encontram nestas situações ocupam (os próprios ou os pais) uma situação de destaque em termos económicos, sociais e profissionais, sendo a sua posição atual na sociedade moçambicana, ou resultado de estratégias de ascensão social delineadas várias gerações ou fruto das oportunidades de ascensão social e económica geradas no pós-independência.

O facto de terem um progenitor com curso superior constitui, indiscutivelmente, um elemento de distinção social e cultural num país onde a percentagem da população com este grau académico era e ainda é muito reduzida, apesar de ter aumentado significativamente nas últimas duas décadas (em 1990 apenas 0,27 por mil habitantes tinha um curso superior, passando para 0,96 em 2002 e 2,3 em 2007) (MESCT, 2003, p. 32; INE, 2007; Costa, 2012). Igualmente, os descendentes de famílias que eram assimiladas no tempo colonial fazem parte de uma ínfima minoria da população moçambicana ' as estimativas7 apontam para um total de cinco mil descendentes de assimilados no final da época colonial, numa população que rondaria os 8.200.000 (Sheldon, 2002, cit. in Sumich, 2008, p.

324) ' que durante o período colonial tinha um conjunto de privilégios que a destacava da restante e largamente maioritária população "indígena", nomeadamente isenção de trabalhos forçados, acesso facilitado à residência urbana, à educação e ao emprego, e um conjunto de direitos civis8.

Por outro lado, apesar de esse estatuto referir que era necessário ter mais de 18 anos para poder ser assimilado, os filhos de um assimilado eram considerados assimilados e como tal o estatuto era herdado. As conotações deste estatuto perduraram muito para além da sua abolição e as famílias que um dia foram assimiladas continuaram assim a ser conhecidas e a autodesignarem-se mesmo após a abolição do estatuto, o que explica os motivos por que muitos dos informantes referiram o facto de o pai ter sido assimilado no tempo colonial mesmo quando se referem a épocas posteriores à abolição deste estatuto.

Se muitos dos elementos deste grupo fizeram parte da FRELIMO durante a luta pela libertação, ascendendo após a independência a lugares de poder dentro da elite política que governou o país, houve outros que por não terem aderido à luta anticolonial foram olhados com desconfiança e marginalizados ou mesmo perseguidos nesse período (cf. Hall & Young, 1997; Pitcher, 2002).

Paralelamente, muitos dos ex-assimilados perderam parte do seu poder económico após a independência nacional. Nomeadamente devido ao facto de as profissões que exerciam ' enfermeiros, professores, ferroviários e pequenos funcionários públicos ' terem perdido muito do prestígio e valor económico e social que auferiam no período colonial, sobretudo após a liberalização económica mas também no período socialista. Nesta época aqueles que eram, como os pais de um informante, senhorios, perderam as casas devido às nacionalizações do parque imobiliário: "Foi um momento muito marcante... o processo de desapropriação foi muito complicado [...] Tínhamos a casa na Mafalala alugada mas perdemo-la nessa altura" (N.F., 48 anos).

Tal obriga a ter cuidado com generalizações excessivas acerca do lugar hierárquico ocupado por este grupo nas diferentes fases que se seguem ao período pós-independência. No entanto, não impede que se constate que a descendência de famílias de assimilados constitui ainda um fator gerador de distinção social indissociável do facto de este grupo ter tido acesso a uma certa formação escolar durante o período colonial e de tal ter tido repercussões em termos da estratificação social observável após a independência, devido, entre outros fatores, ao êxodo dos quadros superiores de origem portuguesa e à sua substituição por quadros nacionais de nível médio.

Como refere Sumich (2008, p. 337), após a independência assiste-se em Moçambique, e especialmente em Maputo, a um enorme aumento da mobilidade social, pois "o êxodo dos portugueses deixara vagos praticamente todos os cargos profissionais e administrativos do país e, pela primeira vez, os moçambicanos viam-se promovidos às posições anteriormente ocupadas pelos colonialistas".

A importância que a família assimilada e letrada assume na educação formal dos seus descendentes é ainda comprovada pelo facto de a maioria dos informantes (12) que partilham esta situação referirem que não constituíram uma exceção na sua geração pois muitos dos seus irmãos também concluíram cursos superiores. Os entrevistados nesta situação (das várias faixas etárias) fizeram ainda questão de salientar que não foi a falta de oportunidades que impediu os irmãos de frequentar a universidade quando nem todos tinham ascendido a este nível de ensino.

Por todos estes motivos, os descendentes de famílias assimiladas, para além de expressarem algum orgulho por esse facto, mencionam a importância dada pelos seus familiares mais velhos à educação escolar e assinalam a influência marcante dos membros da família que possuíam uma formação escolar no seu percurso estudantil.

[Quem mais o influenciou?] O meu tio-avô que se chamava S.L., pertencia ao primeiro grupo de professores negros formados na Manhiça. Tinha uma cultura muito grande e juntava latim e grego com a quarta classe [...], os meus avós quer maternos e paternos tinham uma formação escolar (L. A., homem, 50 anos).

Os restantes entrevistados, não descendentes de famílias de assimilados ou de pais com cursos superiores, relataram que o seu percurso escolar foi uma exceção na família (foram os únicos da sua geração na família que frequentaram a universidade) e que este se deveu em grande parte a apoios familiares que, entre outros fatores, envolveram entreajudas, trocas e retribuições entre os diferentes parentes.

Na minha família não ligavam a isso [aos estudos] mas os meus irmãos não me impediam de fazer, achavam que era bom mas nunca me incentivaram [...] acho que o mérito é meu. Mas os meus irmãos trabalhavam e eu estudava, sem isso não teria conseguido [...]. É normal este tipo de ajuda. Eu devo ao meu irmão mais velho, tenho uma dívida de gratidão com ele. Ele tem dois filhos e eu vou apoiá-los, tenho de apoiar (B.C., homem, 34 anos, pai, motorista nos Caminhos de Ferro de Moçambique).

A relação entre o grau de escolarização dos pais dos informantes, a descendência de famílias assimiladas e a situação económica que estes tiveram na infância e na juventude também pode ser constatada nesta análise. Assim, todos os filhos de pais licenciados ou descendentes de famílias de assimilados afirmaram que não passaram dificuldades económicas na infância e juventude, quer fossem jovens no tempo colonial, no período socialista pós-independência ou posteriormente, como os discursos abaixo exemplificam: Nós somos de uma classe média alta, sempre tivemos um bom Natal, roupa nova para cada festa, tivemos dinheiro para ter explicações. Os meus irmãos estudaram, os mais velhos têm ensino superior (A.S., mulher, 27 anos, pai controlador de tráfego aéreo na LAM, avô assimilado).

Eu nasci em Moçambique de famílias que para a época eram privilegiadas, portanto eu não posso dizer que fui um menino que passou fome [...] Em Portugal tive a grave experiência de ser operário nas férias, fui trabalhar na fábrica de massas. E aquilo permitiu-me entrar em contacto com pessoas de condição social baixa e foi um ensinamento muito grande, aprendi o que significava "trabalho" (L.A., homem, 50 anos, pai assimilado e enfermeiro no tempo colonial).

Os restantes relatam fases difíceis onde sofreram privações: "Houve momentos muito difíceis em que tínhamos uma refeição por dia e não era das melhores" (M.P., homem, 35 anos, único licenciado entre dez irmãos, filho de pais que nunca frequentaram a escola).

Para além desses elementos que permitem distinguir estes dois grupos, ressaltam na análise dos percursos de vida do conjunto dos informantes algumas semelhanças que se passam a destacar.

A grande maioria dos entrevistados com uma única exceção, e independentemente da idade, frequentou escolas públicas ao longo da sua formação básica e secundária (a exceção refere-se a um entrevistado que frequentou nos dois últimos anos do ensino secundário uma das inúmeras escolas privadas que surgiram após o processo de liberalização económica9). Alguns dos informantes que frequentaram a escola pública referiram que essa frequência não esteve relacionada com questões económicas mas com princípios educativos que o pai incutia e com os valores por ele defendidos.

 Sou da classe média. O nosso pai é uma pessoa muito honesta, a nossa elite é muito corrupta, [ele] nunca roubou, não ostenta, ele é [da classe] média alta.

Andámos nas escolas públicas por opção, podíamos ir para as privadas mas o nosso pai queria que nos aplicássemos e dizia que nas privadas os professores eram idênticos (C.J., 35 anos, pai Diretor Provincial de Obras Públicas, ex-assimilado, com a classe concluída no período colonial, e um bacharelato em gestão concluído em adulto).

Em termos das regiões geográficas onde estudaram, a maioria (14) frequentou o ensino básico e secundário em Maputo/Matola e os restantes em cidades provinciais (Inhambane, Tete, Beira, Nampula, Quelimane, Nacala). Porém, enquanto os mais velhos (com mais de 40 anos) interromperam a sua formação ao nível do secundário ou num nível médio (deste grupo, os quatro mais velhos frequentaram todos a Escola de Formação de Professores) e posteriormente frequentaram o ensino superior, os mais novos prosseguiram sem grandes interrupções o seu percurso escolar até ao ensino superior e alguns para níveis pós-graduados (mestrados).

Todos, à exceção de um dos entrevistados, viveram com a família (nem sempre com os pais, à vezes com tios/as, avós, irmãos mais velhos) durante a infância e juventude e até completar o ensino secundário. O entrevistado que teve de sair de casa dos pais fê-lo por estes, na altura, residirem numa localidade onde não havia o nível de ensino que ia frequentar e posteriormente por decisão governamental. O relato do percurso escolar deste entrevistado (com 50 anos) é elucidativo do modo como o Governo/FRELIMO condicionou de forma decisiva a formação de toda uma geração de moçambicanos e, como tal, considerou-se importante transcrevê-lo aqui: O meu ensino foi todo na Zambézia, uma parte no Chinde, outra parte em Quelimane e outra parte na Maganja da Costa. Com o 8 de Março fui para Maputo, vivi dois anos no colégio, um tempo fora da família. Estava no quinto ano em 1977 e vim para Maputo exatamente porque nessa altura houve uma decisão do Governo e interromperam o sexto e sétimo anos. Enviaram as pessoas com mais formação para cursos, como por exemplo o de formação de professores. E vim para Maputo para a formação de professores de Português. Estive um ano na faculdade, na preparatória e ao fim desse ano fui colocado no Niassa. Voltei em 1981 para a Faculdade de Educação para ser formado, para ensinar a sétima, oitava e nona classes e a décima e décima primeira classes. Simultaneamente, a universidade estava preocupada com o seu próprio corpo docente e com o bacharelato. Na altura era monitor, e com o bacharelato comecei a pertencer ao quadro do corpo docente da universidade como assistente estagiário, e depois assistente (L.A.).

Ou seja, logo a seguir à independência o destino deste jovem, à semelhança de muitos outros da sua geração e que possuíam, como o próprio refere, "mais formação", foi traçado pelo Governo sem qualquer influência da sua vontade pessoal. Como refere outro entrevistado: "No ano em que terminei o propedêutico não fazíamos escolhas, éramos orientados em função de uma orientação" (M.G., 48 anos).

Outro informante ao refletir sobre essa época e na forma como as decisões governamentais condicionavam, às vezes de forma irreversível, a vida dos cidadãos, relata: Em 1977 com a história do 8 de Março praticamente acabaram a décima e décima primeira classes. As pessoas com a nona classe tinham várias saídas, ou iam fazer o propedêutico, ou iam para curso de formação de professores, ou para institutos técnicos [...]. Outros foram levados para países do leste, tive amigos meus que foram para Cuba, que nunca mais os vi. E muitos de nós fomos enviados para o propedêutico que era a continuação do 8 de Março, onde tínhamos a secção de letras e de ciências. Eu fui para a secção de letras e uns anos depois fomos compulsivamente enviados para o curso de formação de professores, foi contra a nossa vontade e contra a vontade dos nossos pais mas diziam que era uma prioridade do país. Havia ali critérios um pouco obscuros, diziam que os filhos de camponeses, operários é que iam estudar para fora. E eu? Mas sou filho de quê?! Ambos estes informantes (e outros da mesma geração) referiram o dia 8 de março de 1977 como uma data marcante nas suas vidas e no seu percurso estudantil, e importa aqui recordar que foi nesse dia que Samora Machel se reuniu na cidade de Maputo com estudantes, professores e responsáveis do setor da educação e anunciou a supressão dos então sexto e sétimo anos do liceu, devendo os alunos desses níveis passar a frequentar cursos de formação de professores, cursos agrários, o exército ou o curso pré-universitário da Universidade (Gómez, 1999, p. 311). Samora Machel implementava uma medida tomada no III Congresso da FRELIMO (fevereiro de 1977) "onde se definiu a necessidade de formação rápida de quadros para todos os setores da vida social e económica, como forma de assegurar a normalização da vida em todo o país" (Gebuza, 2004). Parte destes jovens foram enviados em regime de internato para um centro apelidado, exatamente, "8 de Março". Quer os jovens do Centro 8 de Março quer os restantes jovens desta geração e que tinham à volta de 20 anos ficaram conhecidos como os da Geração 8 de Março e foram afetados a várias tarefas consideradas prioritárias para o desenvolvimento do país de forma a contribuir para colmatar a falta de quadros provocada pelo êxodo dos portugueses (Cf. Guebuza, 2004; Mosca, 2010; Gómez, 1999).

A influência determinante do governo moçambicano no destino estudantil dos cidadãos deste país não é exclusivo à "geração 8 de Março", continua por toda a década de 80, como o testemunha um outro entrevistado alguns anos mais novo: Quando concluí a décima primeira classe, na altura a minha paixão era Economia, que o Governo decidiu que devia criar a escola de Jornalismo e foi assim. Eu era uma pessoa que gostava de escrever e ouvia rádio. Saio de Gaza e venho para Maputo para estudar Jornalismo. Foi a primeira vez que vim para Maputo. Em 1987 eu tinha 19 anos [...] frequentava o internato [...]. Era um curso muito rápido de um ano, seis meses de aulas e seis meses de prática. Conheci pessoas que... e eu queria ser como eles (S.A., 43 anos).

Estas decisões governamentais vão condicionar todo o futuro profissional destes informantes. Estes primeiros cursos onde ingressaram por imposição governamental levam-nos a obter formação superior nessas mesmas áreas e se alguns, por acontecimentos diversos, voltaram posteriormente a estar profissionalmente ligados às suas áreas iniciais de preferência, a maioria continuou o caminho que o governo de Moçambique traçou na sua juventude.

Estudar em Portugal Para além dos aspetos acima referidos que aproximam ou distinguem as diferentes gerações, um outro fator diferencia o grupo dos mais velhos do grupo dos mais novos. Este relaciona-se com o facto de os primeiros terem, após a conclusão da licenciatura em Portugal, regressado a Moçambique e posteriormente terem retornado a Portugal para realizar formações de nível mais avançado. Esta era uma obrigatoriedade imposta pelo governo moçambicano, que lhes tinha concedido a bolsa de estudo (ao abrigo dos acordos de cooperação com Portugal): Fui fazer o mestrado quatro anos depois, essa era a prática. Nós depois da licenciatura tínhamos que fazer quatro anos de trabalho e depois disso é que po-díamos continuar, e compreende-se porque as pessoas eram poucas (G.M., homem, 48 anos).

Se alguns não cumpriram esta regra e ficaram em Portugal, fizeram-no por sua "conta e risco", perdendo a bolsa. Para evitar problemas desenvolveram estratégias como aquela que nos relata este informante: Fiquei oito anos em Portugal, eu teria feito a licenciatura em três anos mas percebi que podia fazer o mestrado mas tinha que ter autorização do governo moçambicano e também autorização de Portugal para permanecer, e pensei "se eu volto a Moçambique vou ficar oito anos à espera de uma oportunidade", então decidi suspender algumas cadeiras para justificar a minha permanência em mais um ano e permanecer em Portugal e assim fiz a minha licenciatura em quatro anos [...]. Quem patrocinou a minha vida foi o professor M.C., do Departamento de Línguas da Faculdade. Eu funcionava como bolseiro daquele departamento (L.A., homem, 50 anos).

Por outro lado, enquanto todos os mais velhos foram estudar com bolsas, alguns dos mais novos (6) foram por sua iniciativa, contando sobretudo com apoio de familiares e tendo apenas beneficiado em Portugal do facto de poderem ingressar nas universidades públicas ao abrigo do Regime Especial que permite aos nacionais dos PALOP entrarem diretamente nas faculdades públicas sem estarem sujeitos aos numerus clausus. A garantia de poderem frequentar a universidade é aliás o motivo principal que levou alguns destes informantes mais novos (2) a irem para Portugal, pois, e de acordo com as suas informações, não tinham conseguido lugar nas universidades públicas em Moçambique.

Havia três possibilidades, ou ir para a Universidade Eduardo Mondlane ou para Relações Internacionais e a terceira era ir para Portugal. Fiz o exame na UEM e reprovei, no Instituto de Relações Internacionais também chumbei [...] então fui para sem bolsa e meus pais ajudaram um pouco. O meu irmão foi para com uma bolsa do IPAD e eu consegui entrar por Regime Especial no mesmo curso do meu irmão que foi Gestão e Administração Pública (C.F., 30 anos).

Para além do apoio de familiares durante a sua estadia em Portugal ' e o facto de terem familiares residentes em Portugal foi outro dos motivos apontados para terem ido estudar para esse país ' muitos destes estudantes trabalharam em empregos esporádicos (restaurantes, call centers) durante esse seu período de formação. Tal também aconteceu a alguns dos informantes mais velhos, que o fizeram como forma de completar o orçamento que a bolsa proporcionava ou em períodos em que se viram privados desta.

Assim, enquanto, com apenas uma exceção, a geração mais velha foi encaminhada para a formação no exterior pelo governo moçambicano ' independentemente de as redes académicas entre Portugal e Moçambique terem também desempenhado um importante papel ' a geração mais nova o fez ou por sua iniciativa ou, nos casos em que essa formação se limitou à frequência de mestrados, fizeram-no com o apoio e por sugestão de professores de licenciatura que os ajudaram no processo de obtenção de bolsa.

Para muitos destes informantes, a escolha de Portugal parece resultar de um conjunto de circunstâncias que os ultrapassaram e não de decisões individuais relacionadas com os seus interesses académicos. Foram estudar para Portugal porque para foram enviados pelo Governo: Em 1986 fui estudar para Portugal porque a Faculdade de Letras estava encerrada. Portugal foi escolha do Ministério dos Negócios Estrangeiros pois existia um acordo de cooperação na área das línguas e linguística (M.I., 46 anos).

ou porque foi para este país que a bolsa lhes foi atribuída: "Inicialmente era para irmos ao Brasil [...] e algo aconteceu com o Brasil e fomos para Portugal pela embaixada portuguesa em 1990" (A.S., 43 anos). Ou ainda, num caso mais recente, no âmbito de parcerias universitárias: "Fiz o mestrado em Moçambique em parceria com a Universidade Clássica de Lisboa. Fiz o primeiro ano em Maputo e parti para Lisboa em 2008 para fazer a dissertação de mestrado"(A.M.I., 38 anos).

Como adiante veremos, se o impacto de parcerias entre IES de ambos os países é diminuto, quer ao nível das decisões de partir, quer no termo da sua estadia em Portugal, as redes entre académicos de ambos os países constituíram, em paralelo com as redes familiares, um dos elementos facilitadores do seu acesso a bolsas de estudo e a formações superiores em Portugal.

Porém, e independentemente do enquadramento de partida, a maioria dos informantes afirmaram que tiveram algumas dificuldades nos primeiros tempos de adaptação à vida em Portugal. São mencionados problemas de racismo, questões relacionadas com as diferentes maneiras de falar e escrever português e é referido o pouco contacto com colegas portugueses: Partiam do princípio de que o preto não fala português, ao nível de colegas achei divertido, as pessoas que não conheciam "África-pretos" e perguntavam: "Mas tu falas português e escreves?". Achei divertido um professor de língua inglesa... ele pensou que eu fosse... chamou-me e eu levantei-me e vira-se para a turma e diz "vocês não têm vergonha". Ele pensava que me estava a elogiar.

Estes equívocos foram muito importantes porque para mim a questão não era racismo mas ignorância (L.A., 50 anos).

Não posso dizer que a integração foi fácil, porque dizem que o português é igual mas no fundo não é igual... a maneira de falar, escrever e os professores veem logo [...] os nossos apelidos [...]. Na verdade existe discriminação em Portugal, na escola as pessoas convivem mas saem da escola e a situação é outra, nunca ia para casa dela [estudante portuguesa], encontrávamo-nos no café. [...] Os filhos podem aceitar [...] mas agora os pais, os avós é muito complicado... Lembro-me de uma situação caricata de um colega que foi para casa de um colega português [...], saiu e deixou a porta aberta, esqueceu-se de algo e quando voltou a avó disse "eu não quero negros aqui". [...] Eles são muito frios e uma das coisas que não gosto é de serem muito frios. São muito fechados (S.S.A., 27 anos).

No entanto a maioria (11) referiu que muitas dessas dificuldades foram ultrapassadas e que "com o tempo" se sentiram integrados no meio social e académico que frequentavam. Embora alguns mencionem que tiveram amigos portugueses (3), a maioria socializou com compatriotas, com estudantes oriundos dos outros PALOP e com estudantes Erasmus.

Se alguns referem o protagonismo que adquiriram junto dos estudantes do seu país, ou mesmo, de uma forma geral, no meio académico ' "Fui o primeiro africano a coordenar uma residência universitária em Braga" (C.B.G., 37 anos) ', outros mencionam a existência de alguns conflitos entre os moçambicanos de diferentes proveniências geográficas, sociais e políticas: Assistia-se a uma segregação entre pessoas do sul de Moçambique e os que vêm de outras províncias. O regime de acesso às universidades é tratado ao nível da embaixada e muitos estudantes da Beira para Portugal [...] e como sabe a cidade da Beira é governada por pessoas que não são da FRELIMO [...]. A maior parte deles nem sequer regressou e alguns conseguem conciliar a vertente académica com a profissional e demoram mais tempo porque reprovam (C.F., 30 anos).

Identidades em reconstrução As clivagens que ocorrem em Portugal entre diferentes grupos de estudantes moçambicanos em função das suas proveniências sociais, partidárias ou regionais (étnicas) caminha em paralelo, como iguamente se verificou numa análise realizada com estudantes moçambicanos em Portugal (Costa, 2010), com os processos de reconstrução identitários por que passam estes estudantes.

Antes de avançar na análise importa precisar que neste texto se abordam as questões identitárias como sendo essencialmente processuais, "identificações em curso" nas palavras de Boaventura Sousa Santos (1994, p. 119), considerando que "toda a identidade, ou melhor, toda declaração identitária, tanto individual quanto colectiva (mesmo se, para um colectivo, é mais difícil admiti-lo), é então múltipla, inacabada, instável, sempre experimentada mais como uma busca que como um facto" e tem por isso um "carácter profundamente construído, processual e situacional" (Agier, 2001, p. 7). Partindo desta perspetiva teórica (Jenkins, 1996), e entendendo todas as "declarações identitárias", nas suas diferentes dimensões e manifestações (individual, étnica, regional, nacional, continental, linguística ou política), como resultantes de processos simultâneos de identificação, oposição e articulação entre o semelhante (o nós) e o diferente (os outros) (Costa, 2007, pp. 32-34), procura-se, neste artigo, compreender as dinâmicas através das quais se estruturam as identidades culturais e sociais plurais dos estudantes10 que aqui se analisam.

Pensar as questões identitárias de estudantes que vivem numa situação de transnacionalidade entendida esta "como um conjunto de múltiplos laços e interações que relacionam pessoas ou instituições entre diferentes fronteiras e Estados-Nações" (Vertovec, 1999, pp. 447-466), implica ter em conta que essa situação específica constitui um fator estruturante da sua personalidade. Para muitos deles, esta vivência em Portugal foi também uma nova vivência de si próprios, na medida em que tomaram consciência daquilo que os distinguia dos muitos "outros" com os quais interagiram.

O confronto com outra cultura, a distância em relação ao país de origem, a aprendizagem dos outros (dos vários "outros") com quem se relacionaram, tudo isso se, por um lado, contribuiu, por oposição, para reforçar as várias dimensões em que a identidade destes estudantes se baseava antes da sua chegada a Portugal, por outro lado pôs em causa muitos dos alicerces a partir dos quais essas identidades se construíam. Este processo é simultaneamente lento e gradual, brusco e por choques. Essa transformação identitária não implicou um abandono total das referências em que se alicerçava a sua identidade anterior e a sua substituição por novas referências. Pelo contrário, implicou uma articulação complexa em que vários tipos de combinações foram possíveis e em que o abandono de certas referências coexistiu, paradoxalmente, com o reforço de outras. As novas referências tanto foram articuladas com as anteriores num processo sincrético, como coexistiram em "universos" paralelos, mesmo sendo antagónicas e contraditórias entre si. Essa coexistência pode ainda ser, consoante os casos, harmoniosa ou fonte de graves conflitos a diferentes níveis.

A vinda para Portugal não foi a ida para um qualquer país estrangeiro. Foi a ida para um país do qual Moçambique foi colónia. Grande parte destes estudantes nasceu num Moçambique independente, mas as memórias e as relações perduram, e todos eles construíram uma imagem mais ou menos idealizada de Portugal (negativa ou/e positiva). Alguns tinham familiares, e conheciam "histórias" da relação de Moçambique com Portugal.

Importa ainda lembrar, e aqui foi mencionado, que muitos destes informantes são descendentes de moçambicanos que adquiriram o estatuto de "assimilados" durante a época colonial, com todas as implicações (culturais, educacionais) que a posse deste estatuto tinha para aqueles que a ele ascendiam. Assim, muitos destes informantes foram educados em famílias com uma história de proximidade à cultura portuguesa. E como também foi referido, muitas destas famílias detêm ainda hoje posições sociais de destaque na sociedade moçambicana.

A chegada a Portugal é o encontro com um desconhecido extremamente familiar. Ou seja, trata-se de algo que desconhecem mas sobre o qual formaram imagens, e com o qual partilham elementos de identidade extremamente importantes, nomeadamente a língua portuguesa (apenas seis informantes não têm a língua portuguesa como língua materna).

Assim, o confronto destes estudantes com Portugal põe em relevo as dimensões identitárias relacionadas com a nacionalidade moçambicana, algo de extremamente complexo e que para alguns, eventualmente e pela primeira vez, se sobrepõe a outro níveis identitários que os estruturavam no seu país de origem (pertença étnica, regional, linguística, religiosa, cultural).

Se a dimensão nacional da identidade destes estudantes ' o ser "moçambicano" ' adquire em Portugal lugar preponderante no conjunto das diferentes dimensões em que se baseia a construção da sua identidade social, isso não garante, por si, que o "ser-se moçambicano" seja algo de evidente para os próprios. Pelo contrário, a identidade nacional moçambicana está longe de ser um dado adquirido, existe como um processo cuja génese é relativamente recente e que está ainda em construção11.

Mas o processo de transformação identitário por que passam os estudantes moçambicanos em Portugal é ainda, obviamente, um processo simultaneamente individual e coletivo. Individual, porque cada um tem uma experiência única de si e das suas múltiplas identidades sociais. Cada um reconstrói as várias dimensões em que essa identidade social se estrutura, nomeadamente a dimensão nacional, em função da forma como interpreta e manipula os diferentes quadros de referência que fazem parte da sua memória e da sua história particular e coletiva. Coletiva, porque a maior parte dos estudantes moçambicanos em Portugal interage entre si. Por isso, a experiência dos outros ' dos mais velhos e que estavam em Portugal mais anos, dos que vieram com ele na mesma altura ', a forma como essa experiência interfere na experiência individual de cada um, fazem parte desse processo de transformação identitário.

Simultaneamente, essa experiência coletiva de reconstrução identitária faz-se por identificações e oposições "internas" (na relação com os outros estudantes moçambicanos) e "externas" (na relação com estudantes não moçambicanos).

Internamente, porque dentro do grupo de estudantes moçambicanos , como foi mencionado, vários subgrupos. As diferentes identificações e oposições entre eles contribuem para reforçar certas dimensões específicas da identidade social de cada indivíduo em detrimento de outras. Externamente, esse processo construiu-se face aos outros grupos de estudantes não moçambicanos com os quais interagiram e face aos quais se identificaram, ou se opuseram, consoante as circunstâncias, consoante o tempo de estadia em Portugal, e consoante as suas posições relativas nos diferentes grupos de estudantes com os quais se identificavam12.

Muitas das identificações e oposições que estruturam a identidade social destes informantes durante a sua estadia em Portugal relacionaram-se com o facto de serem identificados e de se identificarem como africanos e negros e de serem vítimas de racismo ou de práticas discriminatórias nas suas vivências quotidianas. A condição de africano e negro cria em Portugal, de imediato, uma identidade "outra" (mesmo para aqueles que nasceram em Portugal e são descendentes de segundas e terceiras gerações de imigrantes). O facto de estes estudantes partilharem com outros estudantes a cor da pele, associada a um conjunto significativo de práticas culturais, mais ou menos estereotipadas, gera a criação de comunidades específicas africanas no meio estudantil universitário.

Redes sociais e cooperação ao nível do ensino superior A criação de comunidades específicas africanas no meio estudantil universitário explica a existência em certas universidades de associações de estudantes africanos ou a organização de eventos coletivos como a Semana Africana. Estas comunidades, cujas afinidades são atravessadas por estereótipos reforçados pelo olhar português em relação ao negro e a África, congregam-se em torno dos referentes identitários relativos à sua condição de africanos e por oposição aos outros estudantes portugueses e estrangeiros que frequentam universidades portuguesas.

O grau de organização dos estudantes universitários africanos depende ainda do apoio institucional que as universidades e respetivas associações de estudantes disponibilizam para a constituição de núcleos diferenciados. Assim, se universidades que não têm qualquer núcleo de estudantes africanos, outras que têm apenas um núcleo ou associação de estudantes africanos (por exemplo a Universidade Lusófona) e outras ainda que em certos anos têm núcleos por nacionalidade mas que noutros anos, por os estudantes que os dinamizaram terem entretanto saído, podem não ter nenhum. A história desses diferentes núcleos ou associações é diferenciada, mas está longe de ser coesa e existem conflitos, desconfianças e desavenças no meio universitário "africano", entre os estudantes originários dos diferentes países, como existem conflitos entre aqueles que, originários de um mesmo país, se identificam de forma diferente com as suas raízes em função do tempo de estadia em Portugal, de opções políticas divergentes e das diferentes circunstâncias das suas vidas.

Aqui em Portugal muitos grupos, o grupo da associação, muitos que os pais são ministros, ou eram, ou parecido. Eu não sou da associação embora tenha sido convidado para fazer parte da associação. Acho que não me traria vantagens, vou jogar futebol com eles, quando festas, tenho as minhas festas aqui em Lisboa também. Mas às atividades da associação não vou porque é constituída por esse grupo que se juntaram por causa desse tipo de laços. Bolseiros somos poucos. A distinção entre grupos , tem sobretudo a ver com política, em Moçambique para se estar bem tem de se ser [...] para se ser bom funcionário em Moçambique é preciso ser da política e da FRELIMO, não da RENAMO. Aqui em Lisboa nota-se os que estão ligados à FRELIMO, aqueles que os pais são bem destacados na FRELIMO também são aqui [...], se os da RENAMO eu não sei quem são. Mas é perigoso não ser da FRELIMO, o simples facto de ver as coisas com outros olhos... não ser da FRELIMO é ser da RENAMO, é complicado (B.C., 34 anos).

A existência destes grupos demonstra a importância das afinidades existentes dentro de cada grupo e o facto de estas serem prévias à vinda dos estudantes para Portugal e perdurarem após o regresso a Moçambique. Através dessas afinidades as redes sociais perpetuam-se, consolidam-se e reproduzem-se, influenciando, como adiante se analisará, a vida de todos os que a elas pertencem.

Para além da pertença a associações académicas (especificamente africanas ou organizadas por países), todos os entrevistados mencionaram a importância de diverso tipo de redes sociais13 em termos do apoio e enquadramento, quer ao nível da decisão de partir, quer em termos da sua integração em Portugal, quer posteriormente na sua reintegração em Moçambique.

Em primeiro lugar destacam-se as redes académicas e o papel de relevo que professores e colegas tiveram neste processo, quer em Moçambique, quer em Portugal.

A ideia (de ir para Portugal) foi do professor I.A. Vi o anúncio para a bolsa e candidatei-me, fiquei à espera. Fui a Portugal de férias e soube que tinha ganho a bolsa mas tive a bolsa oito meses depois [...]. Trabalhava em cafés, hotéis, dava para pagar o quarto, viver. Comecei o mestrado um mês depois [...]. Recebi a bolsa com retroativos. O professor I.A. apoiou para acelerarem a bolsa, ligou para e dois meses depois tive a bolsa (J.C., 35 anos).

Fui para o mestrado em Estudos Africanos porque pedi ao M.E. [professor] que me lesse a tese de licenciatura, no fim ele gostou e foi ele que perguntou se eu queria ir, disse que sim e vim. Foi ele que tratou de tudo (B.V., 34 anos).

Seguidamente é referida a importância das redes familiares, e quatro dos entrevistados referem que foram estudar para Portugal porque tinham familiares que residiam. Por último, surge a menção a redes empresariais. Estas redes são apenas mencionadas pela geração mais nova pelo facto de terem possibilitado a concessão de bolsas de estudo para Portugal e, posteriormente, terem facilitado a inserção profissional em Moçambique. Por exemplo, três informantes realizaram no final da licenciatura estágios em bancos portugueses que têm participação em bancos moçambicanos e quando regressaram arranjaram trabalho nesses bancos. Uma das informantes foi estudar para Portugal ao abrigo de um acordo entre uma empresa moçambicana e uma universidade privada portuguesa, em que a primeira financiava as viagens e a estadia e a última garantia a isenção de propinas: Soube pelo meu pai do lançamento de bolsas de estudo para Portugal para filhos de trabalhadores da empresa (Aeroportos de Moçambique). A empresa tinha uma parceria com a Universidade Lusófona e com alguns ministérios, custeavam os bolseiros dando mesada para cobrir as despesas de estadia, pagavam as passagens aéreas e a universidade tratava das propinas. O concurso era limitado somente a duas vagas, concorremos duas pessoas, eu e uma colega da província de Tete e fomos admitidas. Com as vagas a empresa pretendia preencher um vazio na área de Marketing, Publicidade e Relações Públicas, e nós teríamos colocação após o regresso (M.S., 21 anos).

Por outro lado, apesar de muitos mencionarem que fizeram amigos e contactos académicos e profissionais durante a sua estadia em Portugal, e de essa estadia ter sido em muitos casos bastante longa (entre um e dez anos, e a média da duração das estadias foi de cinco anos e meio), ocorrendo numa altura decisiva do seu ciclo de vida em termos da criação de laços de amizade e de afinidades disciplinares e profissionais, a manutenção dessas relações após o seu regresso foi mais rara e poucos mencionam a sua importância em termos de progressão na carreira ou de inserção em redes académicas ou empresariais internacionais.

Paralelamente, os contactos e conhecimentos mencionados e que se estabeleceram durante a sua permanência em Portugal não foram desenvolvidos maioritariamente com portugueses mas com colegas moçambicanos e com outros colegas provenientes dos PALOP. exceções, nomeadamente um dos ex-estudantes casou-se com uma portuguesa e refere o apoio de professores portugueses durante a sua permanência em Portugal; um outro realça que o contacto com os professores que conheceu no mestrado continuaram após o seu regresso a Moçambique. No entanto, nenhum dos entrevistados mencionou que, por sua iniciativa, por iniciativa das instituições que frequentaram em Portugal ou daquelas que lhes deram a bolsa de estudo, se tivessem desenvolvido parcerias ou colaborações entre as faculdades e os institutos superiores onde estão inseridos atualmente como professores e diretores, e aqueles que frequentaram em Portugal.

Assim, apesar de pertencerem a gerações diferentes, os entrevistados abrangidos por este estudo realçam o mesmo facto: a ausência de estruturas ou mecanismos de apoio que ajudem na consolidação de redes académicas e profissionais entre os dois países, redes essas que, por sua iniciativa e isoladamente, os entrevistados não conseguem (por vários motivos) manter. Quando essas redes existem, elas efetivam-se sobretudo ao nível das direções (das universidades, faculdades e empresas), como se mencionou acima para o caso dos bancos e da parceria entre uma empresa dos Aeroportos de Moçambique e a Universidade Lusófona. Ou então mantêm-se ao nível dos contactos individuais, informais e esporádicos, de onde podem, por vezes, surgir algumas oportunidades profissionais (por exemplo convites para participar em congressos) mas sem qualquer tipo de estruturação que possibilite a sua continuidade ou desenvolvimento.

Esta situação pode derivar, em parte, da amostra e não representar fielmente a realidade. Existem algumas parcerias inter-universitárias entre Portugal e Moçambique (IPAD, 2010) que têm como base redes académicas e de amizade que remontam, algumas delas, ao período colonial. Porém tal facto não impede que se constate que, efetivamente, não existem iniciativas formais, estatais ou privadas que promovam, de uma forma global e sustentada, os contactos entre os moçambicanos que estudaram em Portugal e as universidades que estes frequentaram ou a instituição portuguesa que financiou a sua formação. É provável que esta situação se altere muito rapidamente, quer devido à expansão das redes sociais virtuais, quer, sobretudo, pelas alterações que o sistema universitário internacional tem vindo sofrer. E se a cooperação ao nível do ensino superior entre Portugal e Moçambique, ainda no início dos anos 90, consistia, sobretudo, em programas de bolsas, existem hoje alguns protocolos de cooperação inter-universitária que envolvem formações conjuntas (por exemplo um dos entrevistados frequentou uma licenciatura e um mestrado em Direito em Moçambique ao abrigo de uma destas parcerias, e por esse motivo foi defender a tese em Portugal) e programas internacionais que possibilitam a ligação das universidades de diferentes países (EDULINK).

Impacto da formação superior de moçambicanos em Portugal no processo de desenvolvimento de Moçambique Não existe até ao momento nenhum estudo aprofundado que permita compreender qual o impacto que a formação superior de moçambicanos em Portugal teve ou tem no processo de desenvolvimento de Moçambique. O presente projeto pretende fornecer algumas respostas para esta complexa questão mas a fase em que a análise se encontra ainda não permite apresentar quaisquer conclusões.

Simultaneamente, a consciência que esse impacto é difícil de aferir devido a inúmeros fatores. Estes prendem-se, nomeadamente, com os próprios significados do termo desenvolvimento (desenvolvimento económico do país ou desenvolvimento humano e social, desenvolvimento do sistema universitário, em termos quantitativos ou qualitativos?) e com a falta de dados disponíveis que permitam enquadrar e comparar a formação superior que os moçambicanos receberam em Portugal com as formações do mesmo nível obtidas em Moçambique ou noutros países. Ou seja, a ausência desses dados não permite o isolamento da variável "local de formação" relativamente à variável "nível de formação", e como tal não é possível extrair conclusões. Por todos estes fatores apresentam-se neste artigo apenas as opiniões que sobre esta matéria têm os vários entrevistados.

As respostas fornecidas ' explicitamente a questão foi colocada de forma aberta, com o objetivo de aferir os vários significados que os atores sociais atribuem à expressão "contribuir para o desenvolvimento de Moçambique" ' variaram muito. Houve quem se limitasse a afirmar que a contribuição para o desenvolvimento deveria vir sobretudo da instituição onde atualmente trabalha, outro afirmou que a responsabilidade de promover o desenvolvimento era de todos os moçambicanos, e um dos entrevistados expressou aquilo que em muitas outras conversas informais foi igualmente veiculado: A minha formação em Portugal pode contribuir para o desenvolvimento do país.

Podemos mudar e contribuir para o desenvolvimento do país, no entanto, a questão é se vamos mudar. Isso é outra coisa porque se coloca a vertente política [...], existe ainda uma certa resistência por parte de quem está no poder, não estão abertos a novas ideias, ou seja em vez de se olhar quem se formou fora como uma mais-valia é visto como ameaça (C.F., 30 anos).

Por outro lado, também sentimentos de frustração relativos às dificuldades que encontram em Moçambique para implementar melhorias académicas e profissionais, e inevitáveis comparações entre os recursos de que dispõem as universidades portuguesas e moçambicanas: Estou a chegar mas com muito trabalho e estamos aqui a introduzir o mestrado em Química e pediram-me a mim para fazer o plano temático. doutores em Química, que não equipamento. Eu desde que cheguei aqui tenho trabalho, tinha muitas ideias mas... aqui nesta universidade não tem nada a ver com Aveiro (M.P., 34 anos).

Por fim, muitos daqueles que detêm responsabilidades académicas responderam a este tópico falando, sobretudo, em termos críticos da situação atual do desenvolvimento do ensino superior em Moçambique.

Estou muito pessimista, a minha experiência diz-me que desde 1986, que é o ano que comecei a ensinar, para houve uma degradação muito lenta da qualidade [...]. Por outro lado, a mim parece-me que o país está formar quadros superiores que não precisa ou pelo menos que não pode absorver (L.A., 50 anos).

Se, como acima se referiu, tendo em conta apenas estas opiniões, não é possível extrair conclusões sobre o impacto que a formação superior de moçambicanos em Portugal teve ou tem no processo de desenvolvimento de Moçambique, pode-se, no entanto, concluir, para este estudo de caso, que essa formação teve um impacto em termos de progressão na carreira e ascensão social dos formandos pois, com a exceção de uma jovem recém-chegada de Portugal e que, de qualquer forma, tem "emprego garantido", todos conseguiram uma colocação nas suas áreas de formação e todos consideram que a posição que ocupam atualmente se deve ao facto de terem, recentemente, ou anos atrás, estudado em Portugal.

[A formação em Portugal] trouxe mudanças consideráveis. Para conseguir emprego foi muito importante. Para o Centro de Estudos Africanos (UEM) também foi muito bom pois fiquei em primeiro lugar, tinha mestrado. Foi muito importante profissionalmente como pessoa também, estar fora obriga a conviver de outra forma que não é parecida com a de (B.C., 30 anos).

Eu não sei se teria sido igual [se tivesse estudado noutro país], eu não tive outra experiência de formação fora de Moçambique que não tivesse sido Portugal, portanto tenho consciência daquele contributo. Não tenho dúvidas de que a formação que eu recebi, a formação na universidade mas também aquilo que a vida em Portugal me permitiu ver, eu acho que contribuiu imenso para o que eu consegui fazer depois de regressar (L.A., 50 anos).

Mas em Portugal para além do diploma aprenderam, como nos refere um dos informantes: A experiência de poder relativizar muitas coisas serviu para amadurecer ' dois anos fora sozinho ' e interagir com outras pessoas [...]. O aproveitamento foi muito bom e deu-me autoconfiança, "tenho qualidade". Logo que voltei, fui logo abandonado pelo meu professor [de quem era assistente antes de ter ido estudar para Portugal] (J.E., 33 anos).

No entanto, importa frisar que em todos estes testemunhos não é tanto o país de formação que surge valorizado mas sim o facto de terem obtido um grau universitário no estrangeiro. Isto apesar de todos mencionarem a importância da frequência das universidades em Portugal para a sua carreira profissional, e muitos referirem que se não tivessem tido essa formação não estariam a desempenhar as funções que presentemente exercem.

Reflexões finais Apesar de este artigo se centrar na análise de um conjunto muito diversificado de atores sociais, em termos etários e geracionais, origens geográficas, culturais e socioeconómicas, das trajetórias familiares e educacionais, e da atual situação socioprofissional, foi possível isolar um conjunto de aspetos partilhados pela maioria, que importa destacar.

Assim, que referir o facto de a maioria fazer parte da primeira geração de licenciados da família respetiva e de os apoios e incentivos familiares terem sido mencionados como muito significativos para a sua progressão escolar. A análise do percurso estudantil e profissional dos entrevistados demonstra igualmente que se alguns ascenderam, por mérito próprio (e com o suporte das famílias) ao núcleo ainda muito restrito do mundo académico e universitário14 moçambicano, outros, devido à posição social e económica que a família detinha, foram "naturalmente", pela própria família para encaminhados como é o caso de todos aqueles que descendem de famílias de assimilados ou de progenitores com cursos superiores. Por último, todos aqueles que foram encaminhados para esta formação superior impulsionados por decisões do governo de Moçambique.

Esta análise demonstra ainda a fragilidade das redes sociais, académicas e profissionais geradas no decurso da estadia em Portugal, sendo esta fragilidade explicada pela falta de estruturas de apoio institucionais portuguesas e moçambicanas.

Por último, reflete-se em torno do impacto que a formação superior de moçambicanos em Portugal teve ou tem no processo de desenvolvimento de Moçambique. Mencionando os motivos que dificultam a aferição de conclusões sobre essa temática, apresentam-se diversas opiniões dos entrevistados.

Salienta-se que embora esse impacto seja difícil de aferir, é possível, no entanto, concluir que, em termos individuais, de progressão na carreira e de ascensão social dos formandos, esse impacto foi muito importante e salientado pelos entrevistados.


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