Palavras sobre Mário Murteira I
Palavras sobre Mário Murteira I
Luís Moita
Director do Departamento de Relações Internacionais, Universidade Autónoma de
Lisboa, Portugal
Director do OBSERVARE – Observatório de Relações Exteriores, Universidade
Autónoma de Lisboa, Portugal
Numa altura em que a ciência económica parece sofrer de desumanização, é bom
recordar o pensamento de economistas que relacionam o seu saber com a vida de
comunidades concretas, com o trabalho de pessoas reais, com a satisfação das
necessidades mesmo quando os bens são escassos. Mário Murteira pertenceu a essa
geração de economistas que ainda não tinha sido contaminada pela redução dessa
ciência à formalização abstracta de modelos matemáticos, nem pela pura
econometria que parece ignorar os factores humanos.
O rigor das suas análises abriu-se para um vasto leque de temas, desde os
agentes económicos e a própria gestão empresarial, até às grandes visões em
torno da globalização. A atenção ao macro e ao micro foi porventura uma das
suas principais características. Consciente dos traços fundamentais do sistema
mundial, Mário Murteira cuidou com especial ênfase dos problemas do
subdesenvolvimento, de tal modo que a problemática africana invade boa parte da
sua obra e a sua prática de cooperação dirigiu-se para países irmãos de
endémica pobreza. E foi, entre nós, dos que mais cedo antecipou a importância
da China para a economia global.
A revista que em tempos dirigiu tinha um título que era ele próprio um
programa: Economia e Socialismo. Naqueles anos de 1970-80, a construção do
socialismo estava na ordem do dia, tanto nas sociedades industrializadas como
nas próprias economias pré-capitalistas. Hoje afigura-se-nos como, pelo menos,
um anacronismo, talvez também um erro histórico. Seja qual for o nosso juízo
acerca disso, temos de reconhecer o mérito da busca incessante de alternativas
às graves distorções do sistema dominante. Isso explica o papel político
assumido pelo economista Mário Murteira, foi ministro em tempo de revolução,
ambicionou orientar a economia para a justiça, a produção de bens para a
prosperidade comum.
Universitário de primeira linha, desenvolveu actividade de investigação e
docência em influentes escolas de Lisboa e deixou escrita uma obra onde sempre
se conjugaram a validação científica e a acessibilidade a públicos
razoavelmente vastos. Político empenhado, foi arrojado em fases históricas
difíceis, deixando marcas da sua passagem nas sociedades onde interveio. Além
de tudo isso, todavia, Mário Murteira foi um homem de grande qualidade humana,
conciliando três das melhores características que uma pessoa pode agregar: a
inteligência, a ironia e a generosidade. Aqueles de nós que o conhecemos de
perto ao longo de décadas sabemos que sempre nos atraiu para o lado bom da
vida.