Palavras sobre Mário Murteira II
Palavras sobre Mário Murteira II
José Pimentel Teixeira*
*Departamento de Arqueologia e Antropologia, Universidade Eduardo Mondlane,
Maputo, Moçambique
Nosso professor no mestrado. Naquele início da última década de XX o mundo
mudava, abrupta e abissalmente, ainda mais do que sempre muda. E também nisso o
país, como se que rejuvenescido, entre tantas outras coisas tentando firmar uma
cooperação com a África que fora império, um pouco à imagem dos nossos
vizinhos, então feitos parceiros europeus. Também por isso se encetaram os
estudos na tal cooperação, o primeiro curso aquele nosso, interdisciplinar,
feito no Centro de Estudos Africanos, no ISCTE. Depois, anos depois, foi
imaginável com que dúvidas terá avançado aquela equipa docente, assunto tal em
tamanha convulsão, e aquando tantas das referências que haviam adoptado ao
longo de décadas eram postas, e radicalmente, em causa. Dúvidas e, acredito,
entusiasmo.
E chegámos nós, alunos, vindos de outras áreas, e tão várias. Desconfiados do
discurso economês, daquela arrogância ideológica que se grita ciência, e como
se esta exacta, daquela outra vinda da costela dos gestores disfarçados. E a
sermos recebidos por um economista assim. Célebre, pois professor decano,
respeitado, daqueles que fazem a escola, a provocar aqueles vamos ter o
Murteira! da curiosa expectativa. Ele ali percorrendo uma economia
compreensiva, uns a dizê-la política, outros social, e dela aspergindo-nos.
Debruçado na questão do desenvolvimento, no mudar isto, (sempre) urgente – e
acho que a esse ainda não se lhe chamava sustentável, era enraizado o
apelido inglês que se lhe dava.
E quão complexo era pensar o desenvolvimento naquele princípio dos anos 1990s,
esboroado o mito comunista, explodindo os tigres na distante Ásia, alterando-
se a situação política em África sob Bretton Woods, contratualizando-se o tão
global GATT. E, já então, notoriamente descentrando-se o mundo da Europa.
Podemo-nos agora sentar, os dessa geração, e, na saudade, lembrar, mesmo
constatar, que para tanto do que se hoje discute [a nossa vida, o nosso futuro,
e o da(s) nossa(s) comunidade(s)] fomos nós convocados naquela altura. As
alfaias foram distribuídas. Alguns responderam à chamada, outros nem tanto.
Pois a cada um o seu caminho, intelectual e profissional.
Assim ele um Professor. E um cavalheiro, também, dotado de uma enorme doçura
nada disfarçada por aquela placidez da sageza, mesclada com a ironia bem-
humorada. Com especial carinho por nós, assim o sentíamos (ou reclamávamos), os
da antropologia, os das assumidas ciências sociais. Não só pelo seu
humanismo. Mas pela consciência das necessárias interpenetrações, dialogantes,
o que o fazia um de nós, ainda que um mais-velho, graúdo. Deixava-o entender
mas sem paternalismos ou condescendências, pois apercebendo-se das nossas
limitações, coisas de chegarmos de uma epistemologia romântica. E lembro-lhe
mudos artigos sobre isso, em formato de ténues laivos de sorrisos, contidos,
diante das nossas afinal ainda jovens palavras.
Passados anos, uma década, integrou um processo de formação pós-graduada aqui
em Maputo. Por várias vezes cá esteve. A semear saber e respeito, percebíamo-lo
quando outros nos sabiam seus antigos alunos e, mais, que até com ele
privávamos. Pois nesses entretantos foi visita cá em casa, nós cerimoniosos, em
reverência não só pela sua idade. E era sempre um prazer a sua conversa. Até
pelo seu constante interesse no que aqui fazíamos e no aqui se passava, até
nisso denotando um raro descentramento. De si próprio, do seu e nosso país. E
do pequeno mundo académico. Olhando o mundo, com afã. Nisso interrogando-o. Com
princípios. Sem preconceitos.
Ficam agora os livros ali na estante. Mas mais ainda fica a memória do exemplo:
o de um economista nada acidental. Um sábio. Mas mais ainda, um homem que
valeu.