Home   |   Structure   |   Research   |   Resources   |   Members   |   Training   |   Activities   |   Contact

EN | PT

EuPTHUHu1645-37942013000200008

EuPTHUHu1645-37942013000200008

variedadeEu
Country of publicationPT
colégioHumanities
Great areaHuman Sciences
ISSN1645-3794
ano2013
Issue0002
Article number00008

O script do Java parece estar desligado, ou então houve um erro de comunicação. Ligue o script do Java para mais opções de representação.

Das bancas de matraquilhos ao campo dos caranguejos, dos estádios aos terreiros: campos de jogos num espaço microinsular do tempo colonial ao pós- independência

São Tomé e Príncipe acedeu à independência em 1975. Em 1970, contaria com 73.631 habitantes, dos quais 37.017 homens[2]. Hoje, a população ultrapassará 187.000 indivíduos[3]. Estima-se a população dos 0 aos 14 anos em cerca de 45%.

A taxa de desemprego é elevada e nem todos os jovens permanecem na escola.

Alguns vivem de expedientes no mercado informal, outros nem disso.

Diferentemente do sucedido até décadas, presentemente a maioria da população reside na capital, São Tomé, e na sua periferia. Esta mutação acompanha outras, como, por exemplo, a da maior acessibilidade à informação sobre o que se passa no mundo. Nessa relação com o mundo, o futebol foi ganhando um crescente destaque. Actualmente, a centralidade do futebol na corrente de informações sobre o mundo ainda será maior.

Promovido por uma narrativa mundializada, o futebol surge como uma das mais acessíveis actividades lúdicas, para a qual apenas se precisa de tempo, bola e um local. De tempo, dispõe-se, bolas, arranjam-se e, quanto a campos, inventam- se. Afigurando-se à primeira vista politicamente anódino, o futebol praticado nas mais diversas circunstâncias reflecte eventos passados e confluências de poder, do estatal ao local, do das agremiações e empresas ao dos indivíduos.

Espelha-o a história dos clubes, mas igualmente a diversidade dos campos de futebol.

Neste texto não procuramos uma análise tributária da importância do espaço e, em particular, da insularidade na delineação dos campos de futebol, que, a cada passo, surgem diante dos olhos dos visitantes do microarquipélago. Muito menos ensaiaremos uma análise semiótica ou uma antropomorfização dos campos de futebol, cenário de uma prática lúdica que se popularizou e universalizou.

Tentaremos encará-los como indícios ou documentos históricos e, a partir daí, relacioná-los com a evolução do país[4]. Com efeito, as marcas das mudanças políticas e sociais estão inscritas na diversidade dos campos de futebol.

Repetindo-nos, a seu modo, os campos de futebol são uma fonte de conhecimento histórico e social, sugerindo a elaboração de uma narrativa histórica que os toma como referentes e como pontos de apoio.

Por exemplo, a partir das opções dos poderes relativamente à edificação de infra-estruturas para a prática do futebol, pretende observar-se como é que uma vertente da modernidade foi acolhida num cenário microinsular desde a era colonial ao pós-independência. Esta questão dialoga com o interesse político e social do desporto, com a apropriação e o uso de recursos como a terra que, a breve trecho, será um bem quase tão escasso e valioso no arquipélago quanto foi a mão-de-obra africana para os roceiros no tempo colonial , com o uso do tempo à luz dos ideários colonialista e independentista e, ainda, com os interesses dos são-tomenses, previsivelmente moldados pelas influências externas. Nalguma medida, e sob as mais variadas formas, os campos de futebol também denotam o empenho das pessoas na prática futebolística, facto que, aqui e além, facilitou a recomposição do relacionamento social.

A diversidade dos campos mais ou menos acentuada consoante a lente que se usar espelha a história da disseminação do futebol e a evolução política do mundo e nas ilhas, reflectindo quer as apostas e as inépcias políticas, quer os anseios grupais e as paixões individuais, que, incrustados no meio social, encontraram condições mais ou menos favoráveis à sua concretização.

Pese embora a sua aparente universalidade, os campos de futebol têm história, estreitamente conectada com a do arquipélago, que implicou a sua adaptação, condição para superar adversidades de vária ordem. Em contraponto à inexistência de políticas sobre um objecto que parece trivial o desporto ou, mais concretamente, o futebol , os campos são marcas da intervenção de vários actores, isto é, do Estado, de agremiações, incluindo as religiosas, e, também, das pessoas. Os campos como que registam diferentes propósitos até o do proselitismo religioso, que não dispensa a aposta num pequeno campo de futebol em cujas balizas metaforicamente nascem plantas[5] e com eles se traçaram horizontes de anseios (Figura_1). Nessa medida, relembram momentos relevantes de uma história não tão distante, cuja memória, porém, se vai esvaindo.

Em suma, associado à modernidade dos modos de vida e progressivamente enraizado na cultura popular, o futebol é um desejo disseminado desde o colonialismo, mormente desde a fase de contenção da acção política dos ilhéus, iniciada com a feição ditatorial do Estado Novo. Porém, a política de usura de braços colidia com outros usos dos corpos que não o do trabalho extenuante e rotineiro nas plantações. Fora das roças, o tecido social era ralo e as relações sociais pautavam-se por um racismo larvar, mas operante na defesa das barreiras raciais, que, ao tempo, a exiguidade e a contiguidade forçada no quotidiano também pareciam tornar imperiosa. na década de 1950 e, em especial, no derradeiro decénio do colonialismo, a pauta da civilização passou pela facilitação de tal manifestação de progresso, onde se entrelaçavam afectividades e afinidades que, queria supor-se, faziam dos ilhéus portugueses.

Após a independência, a despeito de intentos ideológicos, sintetizados na designação de desporto popular e, no limite, resumíveis ao intento de levar ao abandono da antiga afectividade clubística, o poder não lograria alterar as facetas do futebol, a saber, a de actividade pluralmente lúdica e relacional entre vários grupos sociais e instituições, assim como a de interface de relacionamento dos indivíduos com o mundo.

A transversalidade do futebol Olhemos a transversalidade do futebol, objecto de desejo dos mais jovens e, até, de crianças. Outrora olhadas com suspeição pelo seu potencial desviante da educação dos jovens, as bancas de matraquilhos que sobraram do tempo colonial são, hoje, os campos de futebol mais uniformes de quantos pululam pelo arquipélago. Desde quando estes estádios, que hoje continuam a encantar crianças, habitam no espaço aberto em São Tomé e Príncipe? Noutros tempos estes estádios terão estado nos fundos de estabelecimentos comerciais. Estes eram frequentados por jovens que, mobilizando pequenas economias para alimentar um vício, esquivo ao escrutínio dos progenitores, fariam por ostentar as suas destreza e habilidade com as mãos.

Actualmente, não vigora a política de costumes do tempo colonial, nem a repressão velada do vício em nome do homem novo do pós-independência. Logo, é fácil o acesso a esse objecto de desejo. Porventura, tais bancas constituirão um pequeno negócio. Por isso, requerem cuidados, desde logo uma posição equilibrada a fim de não desvirtuar o jogo, facilitando um dos contendores. As bancas vieram para o espaço aberto. Às vezes, encontram-se convenientemente postadas em lugares sombreados, em terreno enxugado com brita ou com cacos, tal o meio de eventualmente fazer uns níqueis com a adesão de crianças e jovens ao jogo.

Como se disse, sobram algumas bancas por lugares de São Tomé e Príncipe. No centro da capital, com os seus matraquilhos trajados à Sporting e à Benfica, uma banca encontra-se frequentemente rodeada de crianças e jovens que disputam a primazia no manejo dos matraquilhos ou assistem ao desempenho dos colegas. Em Santo António do Príncipe, via-se outra, também com os matrecos trajados à Sporting e à Benfica, símbolos da maior rivalidade desportiva da era colonial e ícones de um tempo que alguns julgaram imorredouro (Figura_2). Ora, apesar desses referentes, a imaginação e a afectividade subjacentes ao denodo em vencer uma partida de matraquilhos diferirão das de outros tempos.

Porém, o desejo permanece. No centro da vila da Madalena, localidade onde não um campo de futebol[6] apesar de até o pároco ter reivindicado a respectiva construção[7], reivindicação que corre paralelamente a lamentos sobre os que se declaram amigos da vila, mas que se apropriam de tractos de terra e, com isso, deixam a juventude local ao sol e à chuva , pontifica uma banca de matraquilhos. Dir-se-ia a mesma de anos, agora amparada por uma trave que lhe reforça a estabilidade. Nos dias de sol, na mesma curva do pequeno centro da vila da Madalena (Figura_3), a banca é provavelmente ali colocada pelo proprietário, quiçá o dono da loja próxima.

Com o centro da vila frequentemente vazio, parcos devem ser os lucros da dita banca, a qual, ao fim de cada dia, recolhe ao estabelecimento, anos e anos a fio compondo uma rotina aparentemente imutável num meio sem muitos motivos de atracção.

Em ocasião recente, umas pedras ajudavam uma mocinha a seguir ou a participar num jogo, disputado por uma jovem, sintoma de que, em matéria de prática desportiva ou de gosto pelo desporto, a clivagem de género não vinga por conta de interditos ou de preconceitos que apartem as mulheres, uma herança do pós- independência e, até, do próprio colonialismo, em cuja fase final se minaram os papéis de género vigentes nos meios familiares mais tradicionalistas do arquipélago (Figura_4). Como outras, a banca de matraquilhos resistirá enquanto a realidade do mundo virtual não vier ocupar inapelavelmente o dia-a-dia dos jovens e das crianças da Madalena.

Suporte da concretização do desejo, tais estádios tiveram um papel na popularização da apetência pelo futebol, que atravessou, com mais ou menos sobressaltos, propensões autoritárias e censórias de regimes políticos, que, embora de coloração política aparentemente antagónica, convergiam na contenção dos desejos como método de ordenamento social. Faltou sempre a eficácia desejada para conter o desejo e a adição da juventude, mas, o que regimes políticos não conseguiram poderá advir da expansão de futebóis virtuais. O consumo destes poderá arredar as bancas de matraquilhos para uma posição residual e, nesta perspectiva, mais marginal do que a dos fundos esconsos de lojas comerciais de antanho.

menos de cem anos, o gosto pelo futebol disseminou-se pelo território. Mas o mesmo vai sucedendo com outras actividades do dia-a-dia que tendem, por exemplo, a delimitar e a funcionalizar cada pedaço do território. A pouco e pouco, as mudanças sociais limitarão o uso polivalente das estradas alcatroadas apropriadas porque relativamente planas como campos de futebol, uso ainda possível em zonas rurais e em localidades pobres, onde as casas se alongam ao longo de estradas, fazendo destas amplos recreios. Nas estradas de locais mais interiores, mais pobres e de menor densidade demográfica, joga-se com bolas feitas de plástico amassado, arredondado e atado com fibras vegetais. No alcatrão, uma bola dessas pode animar o jogo entre dois contendores (Figura_5).

Até quando?

em Morro Peixe, de forma cautelar, um barril amparado por pedras sinaliza a inimaginavelmente exígua praça central, tornada uma espécie de rotunda para inversão de marcha dos automóveis. É essa rotunda que jovens imberbes usam para jogar à bola (Figura_6).

A criação dos campos de futebol num território espartilhado Das vilas às cidades, campos em vez de estádios A criação de alguns campos hoje espalhados pelo território teria sido impossível em tempos não muito distantes, caracterizados por uma regulação social que, além de rígida, deixava pouco espaço para actividades lúdicas e, concretamente, para o futebol[8]. Mais recente, tal invenção implicou uma assunção de direitos de uso da terra, desde então afectada à prática do futebol (o único desporto que se pode jogar em campos irregulares e com uma bola não necessariamente redonda). Cada campo tem a sua história, relacionada com a do país e, bem assim, com a da povoação próxima.

Por outras palavras, mesmo nas pequenas vilas, os campos acabaram associados às vicissitudes da evolução política, assim como às oscilações económicas antes e depois da independência. Na década de 1960, o colonialismo apostou numa metamorfose impossível. Promoveu-se não o campeonato corporativo, entre as roças, mas igualmente o futebol provincial. Após se ter induzido a criação de um clube representativo de cada vila, arranjaram-se campos. Por exemplo, as autoridades angariaram a ajuda da roça Rio do Ouro para a edificação de um recinto na vila adjacente, Guadalupe. Em terrenos antes pertencentes à roça Vila Braga, expropriados por interesse público, entre o mercado e a escola, existia um terreno vazio e pantanoso. Nivelado e seco, foi rodeado de um muro de andala, depois com um taipal de madeira com dois metros de altura.

Edificaram-se bancadas e uma tribuna de madeira, tendo-se afirmado que ficara um campo modelar[9]. Com 90 por 45 metros, dimensões mínimas, o campo dos Lobatos, inaugurado em 1964, recebeu o nome do roceiro António Manuel da Fonseca[10], a quem, em dezenas de anos na roça que ao tempo administrava, nunca se vira manifestar gosto pela prática desportiva. Sintoma das mudanças políticas desses anos, os roceiros celeremente interiorizaram a conveniência de acompanhar as autoridades no propósito de fomentar o desporto, propósito que, anos antes, teriam afrontado de forma dúplice ou simplesmente ignorado. Fonseca anuiu a concorrer para os propósitos paternalistas das autoridades, que, como se disse, na década de 1960 se empenharam na disseminação do futebol.

Ao tempo, com algum autocomprazimento, esse campo de Guadalupe foi considerado quase um verdadeiro estádio. Localizado na retaguarda do mercado da vila, esse recinto não é usado enquanto campo de futebol de onze. Foi usado até 1997, quando o Ministério da Agricultura cedeu o terreno para o actual campo. Este é amplo, e não dispõe de qualquer vedação. Previsivelmente, é cruzado por veículos que, como noutros sítios, têm nos campos um acesso mais fácil para um qualquer destino no mato[11].

Sorte igual não teve a cidade da Trindade, de muito tida como o coração nativo de São Tomé. A ambição de um campo data dos primeiros decénios do futebol na ilha. Em 1936, aquando de um surto de entusiasmo pelo futebol, o Trindade Club, associação desportiva da freguesia, pediu a cedência gratuita do antigo campo da feira para os seus treinos[12]. Desconhecemos o teor da resposta, mas o certo é que, nos anos seguintes, apenas se costumava aludir aos clubes da cidade, decerto menos por preconceito do que pelas dificuldades de uma actividade organizada com clubes das vilas. Em 1965, ano seguinte ao do envolvimento das vilas no campeonato provincial, constou que ia finalmente construir-se o campo de jogos do Futebol Clube da Trindade, o que, a concretizar-se, era motivo de regozijo para os desportistas da vila que queriam ver a sua equipa regressar às pugnas desportivas[13]. A desistência do campeonato provincial de 1965 podia ser uma forma de reivindicação enviesada e contida da construção do campo. Em 1966, a Junta de Freguesia da Trindade foi abordada por um grupo de interessados na construção de um campo para o clube da Trindade, para o que solicitavam uma faixa dos terrenos de Uba Flor. Atendendo a que o empreendimento era um progresso para a freguesia, a junta apoiou essa pretensão. A Câmara Municipal deliberou ceder o terreno a título precário, mantendo a posse e reservando para si a prerrogativa de lhe poder dar outra finalidade e de o obter de volta sem que o clube tivesse direito a qualquer indemnização por obras que ali tivesse efec-tuado[14].

Mais uma vez tudo deve ter permanecido num impasse. Em 1970, anunciava-se que o Futebol Clube Trindade iria ser uma realidade. A maior aspiração da vila era o campo de futebol[15]. Em 1971, o campo estava em construção na vila[16], provavelmente o que, após a independência, foi rebaptizado de campo José Cangolo[17].

Porém, incidentes num jogo entre o Futebol Clube da Trindade e o 6 de Setembro [18], equipa militar, levaram a que o campo fosse irradiado ad aeternum, uma decisão assaz peculiar. Podemos suspeitar da conveniência da decisão, pois que, a reboque do imperativo da massificação do ensino, o terreno onde se situava o campo foi aproveitado para a construção da escola básica José Sousa Pontes.

Como veremos, não foi a primeira vez que, na história da ilha, um recinto desportivo cedeu lugar a uma escola. Inapelavelmente enferrujada, de fora da escola ainda se uma das balizas que, não tarda, será engolida pela vegetação (Figura_7).

Diferentemente da juventude que usa o antigo polivalente a que ficou reduzido o parque popular da cidade (Figura_8), o clube local, Futebol Clube da Trindade, deixou de ter campo para treinos, o que implica um aumento de despesas, mormente na deslocação ao campo de Folha Fede ou ao campo de Diogo Simão.

Também os êxitos desportivos, entre eles a subida à I divisão[19], se tornaram mais difíceis.

Em 2003, a construção do campo da Trindade chegou a ser anunciada pelo Director dos Desportos. Inseria-se num vasto programa de melhoria das infraestruturas que contribuiria para qualificar o desporto nacional[20]. Em 2009, falou-se da colaboração da empresa Gibela e do respectivo co-proprietário, Aurélio Martins, ao tempo no encalce de uma posição política, na construção de um campo desportivo na Trindade[21]. Tal não bastou para concretizar a construção de um campo na cidade.

Abnildo de Oliveira, Secretário de Estado da Juventude e Desporto do governo saído das eleições de 2010, liderado por Patrice Trovoada, prometeu apoiar a construção de um campo não de um estádio, mas de uma infra-estrutura que viabilizasse a prática desportiva de jovens e crianças em dois hectares da roça Santi cedidos pela proprietária. A promessa de apoio do Secretário de Estado ao fomento da prática desportiva prendia-se com o intuito de relançar a imagem de São Tomé e Príncipe no mundo[22]. Este propósito acabou por ser convocado para a discussão política após a queda do governo: na rádio boca-a- boca e não , corre que Abnildo acabou por se apropriar do terreno em causa, enquanto ele refutou vivamente tal acusação[23]. Em parte, a questão parece decorrer de um imbróglio jurídico sobre a transacção e a posse do terreno, o curso do respectivo título de propriedade e, ainda, os vários direitos instituídos sobre o terreno onde supostamente se deveria construir o campo de futebol. Arriscaria dizer que, como em épocas passadas, o direito não prevalecerá sobre a capacidade de tornar efectiva a posse do terreno em causa.

A região do país onde ocorreram os mais emblemáticos conflitos o de Batepá em 1953 contra a insânia de Gorgulho e o de 1979 contra o rumo da liderança do MLSTP parece incapaz de obter um campo para o seu clube, até hoje por construir. Na zona, densamente povoada, um campo de futebol é tido como uma necessidade, a sua falta como uma tristeza. Resta o polivalente, construído por iniciativa da Mocidade Portuguesa, hoje deteriorado, que serve sobretudo para os mais jovens e crianças.

Pelas vilas e luchans, toda a sorte de campos Dadas as aspirações de equiparação aos demais indivíduos do mundo e a plasticidade do futebol, jogar num qualquer descampado no meio do mato não será problema para os praticantes. Fruto das mudanças políticas, económicas e sociais, os campos de futebol surgem nos sítios mais inesperados. Da mobilização das pessoas para se imaginarem parte de uma vida ganhadora faz parte arranjar campos de futebol, como se disse, modalidade mais propícia à respectiva prática nas condições mais adversas. Daí que, com condições políticas favoráveis ac-tualmente prevalece um vago e inoperante mas amplo consenso quanto às virtudes do desporto e em vista da abundância de jovens, o futebol desponte a cada canto do arquipélago, incluindo onde décadas era interdito. Após a liberalização política, diluiu-se a autoridade e o controlo sobre as vidas dos indivíduos. Tal facilitou ainda mais a popularização do futebol. Esfacelada a posse da terra, (re)inventaram-se campos.

Na ilha do Príncipe, numa curva da estrada, um terreno muito deixou de estar afectado à roça para se transformar num estádio. , por entre inúmeras privações, jovens e crianças procuram à sua maneira acertar o passo com o mundo. No Estádio de Cana Cana, sucede a bola ser um recipiente de plástico (Figura_9). A imaginação faz de uma garrafa de plástico uma bola.

anos, a pista de aviação dos anos 60, capaz de receber um Hércules C-130, estava ladeada por dois campos de futebol aplanados, dir-se-ia, por empatia da pista. Até 2010[24], o primeiro campo colava-se à pista. Não existia qualquer vedação a separá-la do terreno de jogo, dotado com duas balizas. do lado das singelas infra-estruturas aeroportuárias, existia outro campo, igualmente sem qualquer vedação tanto em relação à pista quanto à estrada adjacente. À época, este tinha uma baliza. Este campo deve ter sido de uso privilegiado do destacamento militar ali estacionado.

Apesar de não possuírem as medidas regulamentares[25], alguns campos parecem cuidados e prezados pelas populações. Muitos têm balizas feitas de troncos de árvores. A sua utilização dependerá de se ter uma bola e do escalonamento das equipas com os jogadores presentes. Diga-se, a proliferação de campos não se desdobra numa competição informal, conquanto organizada, decerto devido às dificuldades logísticas de locomoção das equipas entre as várias localidades e à pouca credibilidade comummente creditada a iniciativas sem o respaldo institucional.

Não quer dizer que os clubes não sejam uma referência da vida das localidades.

A de Ribeira Afonso situa-se numa das baías do sudeste de São Tomé. Localizado na encosta sobranceira à povoação, o campo está escondido da estrada pelo denso coberto vegetal. Aqui, tudo se baseia no voluntariado, incluindo até a tarefa do alinhador do campo eventualmente, um desempenho gratuito mas cuja responsabilidade confere um lugar na comunidade[26] , que pinta as marcações do campo. Com efeito, o alinhamento do terreno deve ter de ser feito a cada jogo, que, por causa das chuvas abundantes na zona, demanda uma capina a preceito. Ademais, pelo menos uma das balizas não forma um ângulo recto com o terreno também de nivelamento difícil. Mas não será por isso que não se jogará.

Como outros, este campo é bordejado por um caminho de mato que, sendo outrora de , se tornou de viaturas. Uma das linhas laterais está mais ou menos traçada. O campo é local de passagem, também de crianças incumbidas de pequenos carregos de lenha, uma situação assaz recorrente na ilha (Figura_10).

Nalguns casos, as capinas não serão feitas por um mutirão com o eventual concurso de jogadores e de outras pessoas. Em Santana, o clube a replicar a crença dos adeptos, detentor de um património ímpar, a saber, um fundão onde se realizam bailes para os quais se cobram entradas desceu pela primeira vez de divisão em 2011[27] (o mesmo sucedeu ao Guadalupe, igualmente um histórico).

Tal motivou uma mexida na direcção, que imediatamente mandou capinar o campo situado num vale no centro da cidade. Tornar o campo utilizável foi, digamos assim, o primeiro acto de gestão da nova direcção do clube. A capina fez-se, não à custa de trabalho braçal, mas com recurso a meios mecânicos e mediante pagamento[28]. Em Janeiro de 2012, apesar da incerteza relativamente à data do início da época, os treinos estavam aprazados para daí a dias, tendo em vista a preparação da equipa para tentar regressar à I divisão. Registe-se, o campo da pequena cidade de Santana[29] conheceu o seu dia de glória quando, em 1985, foi palco do primeiro jogo internacional fora da capital, tendo o Santana e o Costa do Sol, de Moçambique, empatado 2-2[30].

A caminho da Madalena, na curva da estrada, em Obó Izaquente, o campo, sobreelevado da estrada numa das suas metades, tem a outra metade ao nível da via. Por isso, o acesso ao recinto está vedado aos carros por secções de troncos de coqueiros postadas ao longo da linha lateral. Com tais troncos impede-se que outra serventia se sobreponha à da prática do futebol. Os restantes limites do campo são casas e a vegetação. Os esforços reorganizativos passarão pela reposição das balizas, uma das quais estava sem trave. Na outra, abaulada pelo seu peso, a trave sustenta-se nos postes.

Com maiores ou menores dificuldades, os campos resistem à pressão sobre a terra para a construção de casas, demanda tanto de uma população em acelerado crescimento, quanto também dos protagonistas de trajectórias de enriquecimento.

Comummente, os recortes elípticos de terra num chão de capim dão nota do uso mais ou menos frequente do campo, assim como da rala atenção à tacticamente sábia ocupação dos espaços durante os jogos. Ocorre, em especial nos pequenos campos, ser o uso a determinar a área útil de jogo, afinal, não muito distinta na sua forma elíptica da do ringue de patinagem defronte as escolas primárias D. Maria de Jesus tornado campo de futebol. Tal é bem evidente num campo nas cercanias de Uba Budo, defronte da construção inacabada do que deveria ser o hospital de Santana. Nenhuma das balizas, algo proporcionais à dimensão do campo, tem travessão. Também por isso, e apesar de calçadas com pedras, as traves tendem a inclinar-se. Tal não impede o uso frequente que alisa o terreno argiloso.

Aplanado está também o campo de Almas, invisível da estrada e incrustado numa clareira adjacente à povoação, que se alonga no entroncamento de vias outrora importantes. O campo de Almas parece bem cuidado, conquanto tenha as dimensões e as marcações de um campo de andebol. Decerto será usado por crianças e jovens.

Amiúde, os jovens jogadores redimensionam os campos à medida, não da sua disponibilidade para correr, mas da afluência de potenciais jogadores. O campo de Bombom (Figura_11) tem um outro enxertado transversalmente, cujas balizas, denotando empenho, são de bambu, o mesmo sucedendo com os de Monte Café e do Pantufo.

Na praia Gamboa, pontifica o campo do Sporting da Praia Cruz, um clube com palmarés após a independência. Diferentemente, por exemplo, do campo de Ribeira Afonso, o do Praia Cruz está como que no meio da povoação, conquanto em algum momento o terreno possa ter estado na orla da localidade. Como outros, é cruzado por quem procura a estrada em direcção à cidade (Figura_12). É local de brincadeira de crianças.

Olhando para este campo, bem como para outros feitos caminhos e estradas, não se adivinha que algum dia possa ter sido cercado com folhas de andala (Figura 13) ou que se possam ter cobrado ingressos para se assistir aos jogos.

Ao tempo, os dirigentes alegariam que tal era uma forma de ajuda ao clube porquanto os sócios não pagavam quotas. Num quadro de interacção social e pessoal assaz diverso do actual, a assistência aos jogos constituía-se como um momento de união da comunidade. Aliás, é possível que os da localidade dessem de bom grado o seu contributo para ver a sua equipa, ao mesmo tempo que cobravam ingressos aos adeptos visitantes.

Os campos espalhados pelas ilhas resultam de processos de arraigamento da prática futebolística nascida na base social, mormente entre os jovens que fundam os seus laços no seu tempo livre e na posse de uma bola. A par de circunstâncias políticas e sociais particulares relativa indefinição da propriedade de tractos de terra e reconhecimento tácito da necessidade de ocupação do tempo livre, por exemplo , o hábito foi induzindo a criação de campos e estes ganharam o estatuto de realidades. Nem toda a prática rotineira conduz à institucionalização do futebol, mas muitos terreiros, onde outrora se labutava, viraram campos de futebol. Nalguns casos, o processo não pára neste ponto, porquanto o êxodo do mato para a cidade leva ao abandono dos locais e dos campos. Antigos terreiros, onde agora restam paus de balizas do futebol de anos, são tomados pelo capim. A capital tem menos espaço para oferecer para campos de futebol. Mas tem outras possibilidades de vida.

Os terreiros transformados em campos de futebol Até meados de novecentos, São Tomé e Príncipe permaneceu sob a hegemonia apertada dos roceiros e da aposta destes na usura da mão-de-obra para o trabalho incessante nas plantações. Aos serviçais concediam-se alguns momentos de lazer, frequentemente indígena, aos domingos. Esses momentos de lazer tinham lugar nalgum recanto, por regra perto das sanzalas, não ocupando o centro do terreiro.

Mesmo na cidade, até meados de novecentos quase ninguém falava em estádios. Em São Tomé, campo de futebol era o termo da época e, entre os campos, viriam a contar-se os das roças. Diga-se, num microterritório definido como uma colónia- plantação, durante décadas não abundaram recintos para a prática futebolística, que os roceiros achariam uma perda de tempo. Exceptuou-se o paternalismo precoce de um roceiro[31], exemplo louvado pelas autoridades, mas que nem por isso frutificaria. Foi no ocaso do colonialismo que o paternalismo do Estado colonial aflorou através da indução à realização de um campeonato corporativo a que alguns roceiros anuíram (Nascimento, 2010, 2011).

Por isso, um ou outro poderá ser mais antigo, mas os campos das roças datam da década de 1960. Na roça Agostinho Neto, na era colonial denominada Rio do Ouro, existe um campo logo à entrada do vasto terreiro da roça. Apesar de estreito, ao tempo terá satisfeito os fins do desporto corporativo. Ainda preserva as balizas, ambas tortas (Figura_14).

Pejado de capim, o actual campo da roça Agua-Izé, da UDESCAI, é, certamente, o traçado no tempo colonial. Feito na segunda metade da década de 1960 por causa dos campeonatos corporativos campeonatos entre equipas das roças realizados a partir de 1964 , o campo de Água-Izé, campo 21 de Dezembro, foi considerado o melhor relvado do país[32]. Em 1986, a União Desportiva Sardinha e Caça de Água Izé empatou 2-2 com o Ferroviário de Maputo no jogo internacional, o segundo encontro internacional disputado fora da capital[33]. Sucede o campo de Água Izé ficar quase irreconhecível, desde logo por não interromper uma planície um pouco mais larga, em contraponto à orografia comummente acidentada da ilha, nem ter qualquer marco que o assinale. Isso torna-o indistinto, sendo preciso perguntar na vizinhança onde é que ele se situa e procurar a entrada. O capim vai alto mas, uma vez no recinto, percebe-se que o campo termina onde existem as palmeiras imperiais. Em Janeiro de 2012 sobravam balizas e um banco de suplentes feito de tronco de coqueiro.

Enquanto alguns dos antigos campos do futebol corporativo conheceram destinos diversos, vários terreiros das roças acabaram transformados em campos de futebol, a mais acessível e barata ocupação lúdica da juventude desempregada.

Nunca os roceiros supuseram possível a ruína das roças e menos terão concebido a transformação dos terreiros, ou de parte destes, em campos de futebol. As lajes serviam para a secagem do café e do cacau e, no seu conjunto, os terreiros, por regra alindados e impecavelmente ordenados, comprovavam a rotina regulada e incontestada nas roças como o destino dos contratados.

no pós-independência, a sacralização do trabalho e o rígido ordenamento social e político induzidos pela governação do MLSTP, partido único, terão confirmado a função a um tempo económica e, subliminarmente, política e social inscrita na ordenação e no arranjo dos terreiros das roças. Todavia, com a falência e a desagregação das empresas estatais substitutas das roças coloniais sobrevieram o fim do aproveitamento económico e o abandono desses espaços, que acabaram a servir para actividades de lazer dos mais jovens. Sinal inequívoco das mudanças mais inesperadas, as crianças jogam nas lajes outrora usadas para secar produtos das roças, como sucede na Bela Vista (Figura_15) ou em Santa Margarida[34]. Ao passo que na cidade, os menos jovens se arrogam o usufruto de espaços originalmente destinados às crianças, nas roças os terrenos lajeados são ocupados pelos mais novos.

Em Santa Margarida, sede do grupo musical cabo-verdiano AMISOL, o futebol parece vivo. Existe um clube local, que disputava a II divisão, e uma equipa feminina. Depreciadas pelos novos investidores que centralizam nessa roça o processamento do cacau a exportar, as antigas instalações decaem. Ainda assim, uma construção térrea, adjacente à que poderá ter sido a residência do primeiro roceiro, parece condigna para vir a albergar a sede do clube local, a UDASM, de Santa Margarida (Figura_16).

Quando nos aglomerados populacionais que sobram das antigas roças subsiste um número suficiente de jovens futebolistas, estes tendem a demandar desde equipamentos a campos com condições mínimas. O de Santa Margarida está incompleto, para não dizer que mal se iniciou, aliás, por também não ser preciso decorrer muito tempo para que o capim esconda a terra. Por isso, dificilmente se distingue o campo da paisagem, a menos que nos indiquem os limites. A desmatação foi iniciada por altura da campanha eleitoral de 2010 [35], quando se prometeu à comunidade um campo com dimensões regulares.

Todavia, a desmatação não foi longe, alegadamente por avaria da máquina, quiçá uma conveniente desculpa em tempo de rateio do banho[36] pelas várias freguesias de potenciais votantes. Os resultados globais e os da localidade não foram conformes às expectativas de quem movera a máquina. Tanto pela derrota geral, quanto pela desfeita a nível local, o partido que se propusera desmatar o terreno do campo recuou no propósito[37]. A falta de campo obriga a UDASM a jogar no de Ototó, aonde nem sempre é bem recebida pelos desta localidade, sendo empurrada para Folha Fede[38].

Na Boa Entrada, roça de que se gabavam os métodos de civilização e de acomodação dos serviçais, que não apenas o do trabalho exaustivo, o terreiro acabou ocupado pelo futebol que, anos, era uma regular prática vespertina de crianças e de jovens (Figuras 17 e 18). A disponibilidade para matar o tempo a jogar futebol é grande dado o elevado desemprego. Em várias roças, o futebol sobrepôs-se a outras actividades nesse espaço central que era o terreiro. Por vezes, nas margens do terreiro a efervescência é grande, mas o centro permanece ocupado pelo futebol.

Porém, se nalgumas das antigas roças mais povoadas o futebol se impôs como actividade de lazer nos terreiros, noutras roças caso de Fernão Dias e em localidades mais recônditas, os campos são diagonalmente cortados por carreiros, sinal de que a difícil rotina diária caso do carreto de bens de primeira necessidade como, por exemplo, a água se sobrepõe à prática desportiva, que deve escassear em virtude de um ralo tecido demográfico. Não é o futebol que alisa a terra.

Nalguns casos, o desabar das roças e a divisão de terras causaram uma reconfiguração dos terreiros. Na roça Terreiro Velho, os realojamentos deram origem a vários campos, um dos quais parece imenso para o número de praticantes. o terreiro da roça Vista Alegre parece pequeno para o que para ele aflui. A afirmação de fervor clubístico é caprichada (Figura_19), mas a prática futebolística no terreiro da roça onde, ouvi contar, chegou a ser edificado um court de ténis para o neto do patrão poder jogar com um trabalhador, quando aquele ali passava férias adivinha-se escassa. O terreiro é relativamente pequeno e tem de competir com os diferentes usos do espaço. Em todo o caso, ainda estavam balizas em 2008 (Figura_20).

Também na outrora imponente Monte Café, o lajeado do terreiro onde os serviçais eram dispostos para serem fotografados no desempenho das várias tarefas criadoras da riqueza dos roceiros virou campo de futebol, uma serventia inequivocamente assinalada por balizas que resistem escoradas em pedras. , deixando os chinelos espalhados pelo campo, crianças e adolescentes jogam descalços no espaço outrora dedicado à secagem do café[39]. Repetimo-lo, um tal destino para este terreiro, local de muito trabalho e tristeza na preparação do café, teria parecido algo de impensável aos antigos roceiros e até mesmo aos governantes do pós-independência (Figura_21).

Numa mudança radical de anos, hoje não faz sentido falar das roças enquanto entidades organizadoras do quotidiano dos indivíduos. Assim o prova o facto de as lajes de secagem serem campos de futebol.

Em Monte Café, ao lado do lajeado feito campo de futebol, está uma construção simples, quase um anexo, denominado Direcção Geral do Agro-Sport Clube Monte Café, cujo campo de jogos se situa nas traseiras do aldeamento localizado fora do terreiro da roça, aldeamento edificado quando se pretendeu subtrair os trabalhadores à discricionariedade dos roceiros. O campo parece ter as medidas regulamentares. Como noutros casos, a sua largura é aproveitada como comprimento de um outro que os jovens delimitam para os jogos entre eles.

Diferentemente dos primórdios da desportivização no arquipélago ou dos primeiros anos da independência, a vizinhança não é um indutor da formação de agremiações desportivas. Aliás, mobiliza os indivíduos de zonas pobres e rurais, por regra nos aglomerados populacionais das antigas roças. Sobretudo nessas zonas, a prática do futebol pauta-se pela espontaneidade, mas também pela incapacidade de extravasar a dimensão local, da chamada comunidade.

Após a independência, o Estado quis tutelar tudo e, não menos importante, o desporto. O Estado fez o correspondente esforço, criando os centros de treino, por exemplo, no bairro do hospital, onde se levavam a cabo as actividades desportivas impulsionadas pela Direcção dos Desportos. O campo está. Mas, com a desagregação do regime e a consequente perda do amparo estatal, a disseminação do futebol prática irregular e de rua acabou por se tornar um fenómeno com traços de espontaneidade moldada pelas circunstâncias económicas e sociais, por regra de privação.

As obras de regimes Atenta a importância concedida pelas instituições militares à preparação física, espanta por tardia a construção do campo do quartel no tempo colonial. Contudo, não será por acaso que um dos melhores campos é o do Quartel do Morro, sobranceiro à baía de Ana de Chaves. A 21 de Junho de 1970, dia de juramento de bandeira, inaugurou-se o campo de futebol do Comando Territorial Independente, com a disputa de um jogo entre as armas de artilharia e infantaria[40].

O recinto possui uma pequena bancada, destinada às individualidades que ali assistem a jogos e, sobretudo, a manifestações militares e cívicas. Foi assim no tempo colonial, assim continuou depois. Localizado no perímetro militar, será o único sem a ocupação diária regulada pelos costumes das pessoas das vizinhanças[41]. Mas tem utilização informal aos domingos, quando não impera a ocupação para fins oficiais. Mantido em bom estado graças à capina executada pelos soldados, é um campo de reserva para competições oficiais, tendo sido um dos dois estádios que acolheu os jogos de um recente campeonato de futebol[42], quando a Federação resolveu concentrar todos os jogos em dois campos.

Se a construção e a manutenção do campo do quartel evidenciam a presença da instituição militar ao longo de sucessivos regimes, a edificação recente e o subsequente abandono do complexo olímpico denota a fragilidade de instituições supostamente emanadas da sociedade civil. Não o Comité Olímpico do país tem ralo enraizamento na vida social e desportiva local (vivendo amparado pelas instituições internacionais), como aparentemente alardeia incapacidade de gestão dos recursos disponíveis. Num certo sentido, ter construído instalações desportivas em razão de uma mirífica idealização de um local de estágio significou não ter pensado as possibilidades de acesso e de usufruto do equipamento pelo universo de potenciais atletas. Por isso, como que no fim de um mundo na própria ilha, está a hoje quase fantasmagórica construção do complexo olímpico de Folha Fede, composto de vários campos (Figura_22).

Porém, talvez não se jogue tão amiudadamente, apesar de se poder entrar nele com facilidade (Figura_23).

A seu modo, tal construção também é uma obra de regime e, se outras inferências não são legítimas, pode falar-se de um certa inconsequência de propósitos relacionada com o descompasso entre as realidades sociais e as agendas importadas, mesmo se dirigidas a objectivos tão consensuais como os relativos ao desporto.

Esta obra de regime parece uma excepção ao carácter aberto de muitos recintos desportivos, mormente dos campos de futebol, o qual se joga até, quando não sobretudo, em campos improvisados, sem o que a sua democratização pareceria inalcançável, especulação permitida pela observação da evolução política e, em particular, do alheamento dos políticos face ao desporto nas últimas décadas.

Ora, mesmo sem política capaz de democratizar o desporto, a sociedade são- tomense ainda encontra nos campos de futebol e na respectiva prática informal disseminada pelo território algum momento de igualdade entre os seus filhos.

Dito de outro modo, do futebol objecto de desejo, passível de improvisação e socialmente disseminado não se exclui ninguém. Apesar da crescente pressão sobre a terra, ainda vai sobrando alguma para a improvisação de campos de futebol em São Tomé e Príncipe.

Em todo o caso, a disseminação da prática desportiva não equivale a democratização no sentido de acesso idêntico de todos, para além de que a prática desportiva implica e vive da diferenciação. Tal diferenciação e a obtenção da excelência constariam dos idealismos do COSTP. Mas o centro de treinos em Folha Fede parece estar vazio a maior parte do tempo.

Na capital, da difícil invenção do desporto ao estádio 12 de Julho Várias pressões laborarão no sentido de se conferir maior mundo ao desporto e, em particular, ao futebol, de o sofisticar, de lhe imprimir um cunho comparável ao de outros países, para o que concorrerão desejos e vontades, faltando, todavia, muitas condições. Ainda assim, erguidos em diferentes momentos, existem dois estádios de futebol.

Recuemos no tempo. Nos primeiros decénios de novecentos, jogava-se num descampado junto à antiga cadeia, capinado quando se ajustavam os desafios.

Situado entre os limites da cidade e a zona pantanosa que a circundava a sul, o terreno era arranjado para eventos desportivos esporádicos, por vezes coincidentes com a visita de um dignitário[43]. Tendo o nome de campo de jogos, esse terreno nunca mereceu tal categoria, afinal, uma situação comum a outros terrenos onde se jogou (e joga) futebol. Fosse por parecer baldio, fosse por influência dos ingleses que trabalhavam na vizinha estação do cabo submarino, a verdade é que o descampado próximo servia de campo desportivo ou, talvez mais precisamente, de campo de festas[44], onde tanto se podiam disputar ocasionais partidas de futebol quanto montar um redondel para realizar uma tourada.

Os anos 20 e 30 foram de retracção das expectativas dos próprios colonos. Nos anos 30, chegou-se a repatriar europeus indigentes. No final desta década, reprimida a actividade política contra os agravos da ditadura, o governador Vaz Monteiro apoiou a institucionalização do futebol, plataforma para que ajudou a encaminhar os esforços associativos dos ilhéus. De acordo com o espírito das realizações típico da época, encetou a construção do que pretenderia ser o parque desportivo da cidade. Depois de ser motivo de propaganda colonial nos finais dos anos 30[45], o Parque Desportivo Carmona nunca pareceu estar concluído nem ter sido objecto de uso regular, também por via dos escolhos sociais ao incremento da actividade desportiva institucionalizada. Obra considerada monumental à data em que foi empreendida, logo teve de ser redesenhada e acabou por se afigurar acanhada para o desígnio inicial de acolher variadas modalidades, que, de resto, perderiam para o futebol.

O espaço ocupado pelo parque na cidade tornou-se demasiado central e foi reafectado a outros usos. No local construiu-se o Liceu D. João II, depois da independência rebaptizado Escola Preparatória Patrice Lumumba. A dita escola, que preserva até hoje o muro de vedação do extinto parque desportivo, tinha na década de 1980 nos seus fundos um campo a céu aberto para as aulas de educação física. Hoje, esse recinto foi substituído por pequenos campos, decerto para rentabilizar o espaço. Nesses pequenos campos murados lembram-se as verdades aprendidas e consensuais sobre a correlação entre bem-estar e desporto. Num deles, está a velha máxima Desporto é saúde.

Por muitas décadas considerada insalubre, a cidade de São Tomé dispôs de poucas zonas de lazer, desde logo por a visão colonial ser avessa à ideia de lazer.

Uma dessas zonas, devotada às crianças, situava-se no espaço fronteiro à escola primária Vaz Monteiro, hoje escola Maria de Jesus. Esse parque de jogos infantis foi construído nos anos 40. Tinha uma pequena piscina para crianças e um ringue de patinagem. É neste ringue que actualmente os adolescentes, que vão deixando a escola para trás, se empenham em jogos de futebol logo pela manhã.

Noutras horas do dia, o mesmo espaço é ocupado por mais velhos.

Dito de outro modo, a história desmente constantemente as predições. O vangloriado parque desportivo Carmona desapareceu enquanto se improvisam campos em infra-estruturas construídas com um destino diverso: o aludido ringue de patinagem, modalidade sugerida pelos títulos mundiais obtidos por Portugal e hoje caída em desuso nas ilhas, serve de campo de futebol para jovens e adultos.

No âmbito da expansão urbana de meados de novecentos, promovida pelo famigerado Gorgulho, o estádio Sarmento Rodrigues foi edificado no descampado onde, décadas antes, se inventava, sempre que necessário, um campo de jogos[46]. A construção do estádio data do momento em que a centralidade do parque desportivo Carmona o tornou apropriado para albergar o liceu da ilha.

Significativamente, a lisonja política sobrepôs-se à história, pelo que o estádio ganhou o nome do ministro do Ultramar da época em detrimento da homenagem ao venerando marechal Carmona, patrono da estrutura desportiva destinada a perecer. Fosse para os fins pessoais do governador, fosse pela orientação política do ministro, o nome deste parecia mais adequado que o do antigo presidente da República.

Apesar das mudanças a que o regime colonial se obrigava por essa altura, o governador nem teria por primeiro fito fazer do estádio um lugar privilegiado de culto da nação[47] ou sequer de amenização das tensões sociais pela difusão das práticas desportivas[48] , que, de resto, aumentavam por conta da sua política voluntarista de sujeição dos ilhéus aos trabalhos públicos. Além de supostamente provar a sua capacidade de decisão, o estádio sinalizava a chegada do progresso[49] em troca do qual se demandava aos ilhéus que, também através da prática desportiva, se apetrechassem fisicamente para desempenhos produtivos mais exigentes[50].

Ao tempo da sua construção, o estádio ficava como que isolado próximo do sítio onde até pouco antes estivera a cadeia e a distância do centro da cidade chegou a ser elencada como factor da pouca afluência do público aos jogos ali disputados. Para além de servir para jogos de futebol, servia igualmente para juramentos de bandeira[51]. Registe-se, diferentemente do sucedido noutros casos Cabo Verde, Angola e Moçambique , o estádio não acolheu a cerimónia da independência[52].

Actualmente, o estádio está rodeado de habitações[53] que ocuparam a zona outrora pantanosa que o circundava e onde, também ele, foi edificado. Antes da independência, para se entrar no estádio passava-se pela estátua de um dos descobridores. Após 1975, a estátua foi removida e com ela uma certa solenidade que um certo vazio no entorno do estádio conferia à infra-estrutura. Hoje, chega-se ao estádio de qualquer direcção, conquanto as entradas permaneçam as duas de sempre. Consonante com a abertura do ambiente social, prolifera o pequeno negócio das espetadas de búzio, cervejas e mais petiscos.

Depois de 1975, a serventia do recinto foi sendo amputada devido às falhas de energia eléctrica, que inviabilizaram jogos oficiais e alguns amistosos internacionais à noite. Diga-se, no tempo colonial, um dos melhoramentos mais reclamados foi a dotação de luz eléctrica, que se inauguraria em 1973. após a independência, a falta de energia prejudicou a realização nocturna de jogos de futebol.

Valerá a pena retroceder alguns anos para ver como as pressões em torno da construção das torres de electrificação constituíram um dos raros momentos de discussão pública das opções políticas relativas ao progresso e à modernidade.

Por regra, não se permitia a livre expressão de demandas sociais. Ora, a demanda tornou-se insistente a ponto de o presidente da câmara vir a público justificar a preterição do melhoramento. Tolerando a expressão de uma demanda não politizada, a administração colonial afectava uma imagem de um poder solícito e atento ao imperativo do progresso social e, na circunstância, à importância do futebol na renovação do quotidiano da exígua capital da província.

Arquitectonicamente, o estádio mudou pouco. Mas as alterações reflectem as mutações da relação entre as autoridades e a população. De início, era muito mais aberto. Não apurámos se o muro envolvente sempre teve a altura actual, mas a zona da tribuna foi modificada. Começou por ser aberta, pautada apenas pelos pilares de suporte da cobertura que, curiosamente, pouco protegeria do sol da tarde[54]. Quando muito, abrigaria, mal, da chuva. Do exterior, podia ver-se os espectadores, mormente os ilustres, ainda que pelas costas. Posteriormente, construiu-se uma grade, talvez de tijolos. depois da independência, a grade foi substituída por uma parede em toda a extensão da bancada da tribuna.

Outrora as cabines ficavam debaixo da tribuna. A complexificação das rotinas administrativas e das necessidades logísticas sugeriu a construção, ainda no tempo colonial, de cabines mais espaçosas debaixo da bancada do lado oposto ao da tribuna. O estádio sofreu algumas melhorias nos últimos anos[55], tendo sido dotado de um relvado sintético opção cuja acerto alguns discutem , estimando-se a sua capacidade em 6.500 pessoas[56], decerto contando com as que ficam de . Ultimamente, é raro lotar. Uma das últimas enchentes terá sido aquando do desafio com o Congo, que pôs termo a anos de afastamento da selecção de São Tomé e Príncipe das competições internacionais. Todavia, em virtude da copiosa derrota e da consequente descrença, o cenário foi assaz diferente no jogo contra o Lesotho (Figura_24). Não encheu, longe disso, para esse jogo da primeira mão da primeira eliminatória de acesso à fase de grupos da CAN 2013, entre outras razões porque, conforme afirmaram circunstantes em Santana[57], o povo de São Tomé prefere a festa de Santo Isidoro, em Ribeira Afonso, ao futebol.

Como se disse, pelas condições únicas na ilha, o estádio 12 de Julho (antes Sarmento Rodrigues) albergou solenidades de regime, tanto do colonial como do de partido único após 1975. Foi palco das cerimónias colonialistas alusivas aos eventos de Fevereiro de 1953, concretamente das homenagens aos mortos que obedeciam o governador Gorgulho. Da mesma forma, foi palco de momentos de exaltação da nação portuguesa aquando da visita do presidente Craveiro Lopes, cuja coreografia replicou a da inauguração de estádios ocorridas nesses anos [58], não faltando nem o louvado aprumo das classes de ginástica nem o desfile das agremiações clubísticas, subliminares sinais do ordenamento social vigente e da política de produção de uma raça com vigor e sadia.

Após a independência, o estádio foi igualmente palco de exercícios militares, mormente de artes marciais dos elementos da Segurança, de eventos políticos e de paradas de ginástica. Com efeito, ocorreram a celebração do aniversário da OMSTEP[59] e a apresentação da Escola de Artes Marciais, da Segurança, espectáculo particularmente concorrido, a avaliar pelas fotos publicadas no oficioso Revolução.

Estádio Regional 13 de Junhoda cidade de Santo António Tal como o da capital do país, também o Estádio Regional da cidade de Santo António foi uma obra de regime. Na circunstância, do multipartidarismo e da cooperação taiwanesa, disposta a pagar com benfeitorias de vária ordem um voto favorável na ONU. O dito estádio está localizado a sudoeste da cidade, tendo substituído o campo dos caranguejos, assim denominado pela abundância de buracos escavados pelos ditos animais.

Tendo estado na penumbra da memória colectiva, o campo dos caranguejos poderá em breve ter caído no esquecimento dos habitantes do Príncipe, como esquecido parece o campo na praia de aluvião da cidade. se colocaram umas balizas, decerto para recreio das crianças e adolescentes da escola fronteira (Figura_25). Mas não sabemos se daqui emergirá a prática do futebol de praia.

Retrocedamos a 1957, quando talvez pela primeira vez se deu nota circunstanciada de um jogo entre o Sporting e o Benfica do Príncipe. A chuva copiosa antes do jogo transformou o campo de Ribeira de Frades, de si impróprio para o futebol, num charco, nalguns sítios com dez centímetros de água. Disse-se então ser necessário um campo de jogos, pois aquele não dignificava o desporto. Além de não ter as medidas regulamentares, estava cheio de buracos de caranguejos. Com altos e baixos, não causava lesões sérias em cada jogo por verdadeiro milagre[60].

Em 1959, num momento de crescendo de interesse pelo futebol, voltou a falar-se do misérrimo campo de jogos que a Cidade possui, feito pelo esforço dos próprios desportistas, que de forma alguma constitui ao menos um regular rectângulo de jogo. A população acorria em massa aos jogos, pelo que se impunha que as autoridades se debruçassem sobre a questão: o campo não possuía o mínimo de condições, e até se tornando perigosa a prática desportiva em tal terreno[61].

Durante anos, os jogos terão continuado a efectuar-se no campo dos caranguejos, vindo também a usar-se os campos das roças. A 23 de Abril de 1983, inaugurou-se ou, talvez mais apropriadamente, reinaugurou-se o campo da roça Sundy, num jogo em que o Riboque ganhou à equipa local[62]. É possível que os jogos de futebol tenham deixado o campo dos caranguejos.

Na década de 1980, a um professor português chegado para trabalhar na ilha pareceu que um dado terreno era ou serviria de campo de futebol. Na verdade, estava diante do campo de futebol da cidade, outrora conhecido por campo dos caranguejos. As tardes de glória desse recinto, entrementes tornado zona de capim, tinham sido as dos derradeiros anos do colonialismo, quando, num movimento de aproximação à população nativa, os governadores assistiram a alguns jogos. A isso induzidos pelo cooperante português (que, nos anos precedentes, treinara clubes em São Tomé), vários ilhéus capinaram o terreno que voltaria a ser usado como campo de futebol. A cidade ainda preservava as sedes do Sporting e do Benfica do passado, mas deixara de ter campo de futebol.

Não foi tanto por pressão social ou política (apesar da pressão demográfica, esta não se desdobra numa pressão política) quanto por conveniência política que se edificou o estádio regional. Tal como nos anos 50 se edificou um estádio relativamente espaçoso em São Tomé, também na ilha do Príncipe na derradeira década de novecentos se construiu um estádio agigantado se pensarmos na dimensão da população da ilha. Numa lógica muito comum de menos desporto e mais política, este estádio quedaria subaproveitado.

O estádio da cidade de Santo António, inaugurado a 17 de Maio de 2003, não oferece particularidades assinaláveis. Possui uma tribuna e, do lado oposto, uma pequena bancada coberta. Tem a relva tratada mas, ainda assim, rala. Em todo o caso, oferecerá melhores condições para a prática futebolística do que o antigo campo dos caranguejos. Deve ter capacidade para albergar toda a população da ilha se esta tiver motivo e meios para acorrer para assistir a qualquer performance desportiva ou outra. Para a população da ilha e ponderadas necessidades mais prementes, dele alguns dirão ser um elefante branco[63]. Mas, retorquir-se-á, como não o construir? Não se chama 12 de Julho nem tem por nome uma efeméride, antes invoca o do dia do santo da cidade, 13 de Junho.

Politicamente relevante? Entrementes, a cidade de Santo António viu o seu parque popular, antigo recinto de festas, perder vitalidade e resumir-se a um campo desportivo, tal a indicação de que o desporto é uma solução politicamente útil pelo apaziguamento social que sugere e pelo seu baixo custo. Quedando abandonado, preserva as condições mínimas para a prática desportiva nas condições precárias de outros polivalentes. A decadência do parque indicia também a substituição dos moldes de diversão e sociabilidade, muito mais individualistas do que outrora.

Enquanto isso, o precoce ícone da modernidade que fora o campo de ténis decerto relacionado com a presença dos ingleses do cabo submarino nos primórdios de novecentos voltou a estar na frente do progresso, horizonte não mais redutoramente associado à exportação de cacau. Hoje, reabilitado numa acção promocional da empresa Gibela[64] (Figura_26), o campo de ténis interpõe- se entre os armazéns da roça Sundy e o mar. Renovado, embora talvez com menos vida (Figura_27).

O estádio imaginado Um campo de futebol prefigura-se como a solução mais barata por vezes tão barata quanto ilusória para certos problemas sociais. Presentemente, perante o retorno do paludismo, um campo de futebol afigura-se uma alternativa para o aproveitamento de uma zona pantanosa, Praia Melão, a sul da cidade de São Tomé, zona que importa aterrar a fim de diminuir a incidência de casos de paludismo [65]. Para , este é um campo tão virtual quanto o do estádio do Riboque.

Façamos um parêntesis para dizer que, filiados, ou não, nos da metrópole, com maior ou menor adesão popular, os clubes nunca atingiram uma dimensão social bastante para os tentar a ter o seu estádio. Aliás, mesmo os clubes que concitavam o apoio popular e com êxitos desportivos atravessaram décadas sem uma sede. Tais factos tanto indiciam a debilidade económica e social dos clubes, relacionada com a rarefacção do mercado local, quanto a valia da terra.

Por isso, valeria a pena analisar em que circunstâncias políticas, económicas e sociais, o Riboque antes de 1975, Vitória de Setúbal do Riboque , clube da periferia nativa da cidade de São Tomé, conseguiu aceder à posse do terreno onde implantou o seu campo, conhecido por Campo dos Coqueiros ou por campo do barro vermelho[66].

A propósito deste campo lembrar-se-á que alguns campos do futebol federado são também lugares de passagem[67]. Com efeito, alguns campos o são realmente aquando dos treinos e jogos. Em virtude da força simbólica do clube, resiste à pressão urbanística numa das zonas mais densamente povoadas do país (Figura 28).

Porém, sucede constituir-se como um espaço que se oferece a múltiplos usos, por exemplo, desde o de passagem invariavelmente de crianças incumbidas de pequenos carregos até ao de pouso para secagem de roupa. Do pouco uso, assinalado pelo crescimento da vegetação, restam as balizas e os trilhos que o atravessam para uma caminhada mais curta para o centro da cidade. Como muitos outros na ilha, rapidamente o campo queda impraticável e parece desactivado.

Por causa do estado do campo, no último campeonato em que triunfou, o Vitória do Riboque apenas jogou no seu campo os jogos da segunda volta. Existe o projecto de transformar este campo desportivo num estádio de renome, tal o desígnio de recentes dirigentes do clube (Figuras 29 e 30). A concretizar-se, tal estádio equivaleria a uma revolução na cidade.

Notas finais O futebol tornou-se popular pela simplicidade das regras, por não exigir senão uma bola e um campo passível de ser inventado. Na sua diversidade, os campos de futebol traduzem a intensidade e as contingências do processo de desportivização das sociedades, frequentemente ao arrepio dos desígnios das autoridades. A construção de campos resultou de consensos e, por vezes, da correlação de forças locais sobre o destino a dar à terra. A invenção e a disseminação dos campos de futebol pelas ilhas são, por um lado, indício de uma mudança acelerada na paisagem física e social, revelando, por exemplo, novos actores e novas formas de decisão relativamente à apropriação, efémera que seja, do espaço público. Mas, por outro lado, os campos de futebol indiciam alguma continuidade, não de uma cultura popular referida ao mundo, mas também de propósitos das autoridades no tocante aos instrumentos da condução política e social do meio insular.

Se, em razão de desígnios políticos ou de condições materiais, cada conjuntura foi tendo, mesmo se episodicamente, o seu desporto (a dado passo, por contaminação dos títulos mundiais de Portugal, tentou fomentar-se o hóquei em patins), o futebol, porque mais universal e menos dependente da criação de condições favoráveis pelos poderes, tem tendência a tornar-se omnipresente. As condições podem ser forjadas pelos próprios habitantes. Não bastará adequar o jogo à imaginação, mas quase o que torna muito flexível o uso da terra para o futebol.

A abertura tanto maior quanto proporciona múltiplos usos e redesenhos dos campos demasiadamente extensos da esmagadora maioria dos campos indica que não é por causa das infra-estruturas que os jovens, e não , serão apartados da prática futebolística. Os que têm gosto pelo futebol jogam-no, adaptando- o aos espaços disponíveis transformados em campos. As mais pessoas são apartadas da prática desportiva, concretamente futebolística, pelas circunstâncias da vida colectiva.

Para além disso, o grau de organização e de sofisticação da prática do futebol não demanda senão uma especialização mínima, consonante com a precariedade das infra-estruturas de alguns clubes. Sem embargo das competições federadas, o futebol continua nos campos como uma actividade de amadores e, na rua, como motivo de interacção dos seus adeptos. Por causa do seu enraizamento popular, o futebol continua a concitar discursos e vários intentos, políticos e outros.

Os visitantes do arquipélago poder-se-ão entusiasmar com a criatividade de jogadores e de público, os mais ingénuos com a simplicidade de modos de vida e da aparente felicidade dos habitantes. Os campos atestam a universalidade do futebol e são indício das suas multifacetadas captações em cada recanto das ilhas. Mas tanto a paixão pelo futebol quanto o inesperado ou previsível exotismo dos chãos dos variados futebóis não deve fazer perder de vista que cada chão também é uma resultante de uma história tecida de acertos e desacertos entre, por um lado, ricos e poderosos e, por outro, os que pouco ou nada têm para além do futebol durante a sua idade dos sonhos. E menos se deve esquecer que o desenvolvimento do desporto são-tomense e a consequente afirmação do país se tais metas são fins em si mesmas , porventura desejados pelos são-tomenses, não viverão da generalizada apetência pelo futebol, nem esta será em todas as circunstâncias um amortecedor ou escape social.

Em São Tomé, onde as propriedades vão sendo vedadas com muros de pedra, os campos de futebol serão dos poucos bens de que as chamadas comunidades ainda dispõem. Se não tiverem campo, se não se reunirem para formar um clube, não se afirmam. Na falta de campeonatos das categorias mais jovens, os campos servem para os mais novos emularem os mais velhos. O desenho de cada campo incrustado na terra tem uma história de afirmação da colectividade ou, diferentemente, uma história de um desígnio do poder ou do exercício de uma vontade colectiva.

Como as demais construções humanas, os campos de futebol poderão estar condenados a desaparecer da paisagem, outrora criada e recriada pelas roças hoje arruinadas, ou, eventualmente, a serem adaptados para fins diversos dos primevos. Aliás, para a história do futebol insular, os estádios precederam os terreiros, usados como campos nos anos recentes. O futebol praticou-se primeiro em campos e em estádios e, depois da independência e da ruína das empresas estatais, tomou conta dos terreiros. Dir-se-ia que os campos conheceram uma evolução em contra-ciclo com as roças, porquanto irromperam no cenário da ruína destas.

Num espaço microinsular sujeito a mudanças políticas de monta, a observação dos campos de futebol sugere pistas acerca do modo de enraizamento do futebol entre os ilhéus, da sua afirmação enquanto parte da cultura popular. Existe um campo aberto para perscrutar a história do arquipélago através da observação dos denodados esforços associativos e da prática do futebol nas mais diversas e singulares condições.

Num certo sentido, os campos de futebol são a materialização possível de uma infra-estrutura universal num microterritório e numa sociedade exígua e pressionada por uma mutação acelerada e de rumo incerto, onde recentemente a expressão dos desejos ganhou foro de cidadania, sugerindo, aqui e além, a importação da temática do desporto para a retórica política.

Justamente, de permeio com a política, tantos desejos, quantas histórias


transferir texto