Patrick Chabal e a África Lusófona
Patrick Chabal e a África Lusófona
Clara Carvalho*
*Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL), Instituto Universitário de Lisboa
(ISCTE-IUL), Avenida das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal,
clara.carvalho@iscte.pt
Em Abril de 2002, Patrick Chabal realizou o lançamento do seu recente livro, A
History of Postcolonial Lusophone Africa (Chabal et al., 2002), na universidade
de Brown, EUA, durante a conferência Portugal-African Encounters. Naquele dia e
nesse encontro, mais do que a apresentação de um livro afirmou-se um novo campo
de estudos sobre a África Lusófona. Chabal assistiu às apresentações de muitos
jovens investigadores vindos dos EUA, mas também de Angola, Moçambique, Guiné-
Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, Portugal, Brasil, discretamente
encostado ao fundo da sala de onde podia apreciar tanto os conferencistas como
a assistência de uma centena de estudiosos que pela primeira vez se reuniam em
torno do tema. Para todos os presentes ele era não apenas o pioneiro como a
indiscutível referência deste novo campo de estudos.
A obra de Patrick Chabal foi inovadora nos estudos de ciência política sobre a
África Lusófona e contribuiu em primeira mão para definir o conceito e o seu
âmbito. O termo África Lusófona agregou um conjunto de académicos que
trabalham sobre as condições sociais, culturais, históricas, políticas e
económicas dos PALOP, tendo surgido e conhecido a sua maior divulgação fora do
espaço académico lusófono. A implementação deste campo de estudos teve
particularidades históricas, e consequências políticas. Os trabalhos sobre a
África Lusófona foram inicialmente marcados pela historiografia e antropologia
coloniais que publicaram, até 1974, o maior conjunto de estudos coloniais de
todas as antigas potências colonizadoras europeias, quase integralmente
oriundas da academia portuguesa. Depois de 1974 esta produção estancou, sendo
quase abandonada na academia portuguesa, que sofreu uma ampla remodelação, e
limitada nos paí-ses africanos de língua oficial portuguesa, onde as condições
políticas atrasaram a afirmação dos estudos em ciências sociais. O interesse
pela África Lusófona começa na década de 1980 desenvolvido por parte de
académicos oriundos do universo francês, inglês ou americano, os quais
encararam esta área por contraponto aos estudos sobre a África Francófona,
Anglófona ou Arabófona. O termo foi cunhado no King's College, onde Chabal
começou a leccionar em 1984 e ficou até à sua morte, primeiro no Departamento
de Estudos Portugueses e Brasileiros e depois no Departamento de História,
sendo professor de História e Política Africana desde 2011. Foi seguido na
academia francesa e conheceu a sua principal expressão com o grupo de
investigadores ligados ao Centre d'Études de l'Afrique Noire de Bordéus e à
revista Lusotopie (1994), liderada por Michel Cahen, Christine Messiant e
Christian Geffray. Do lado americano, onde foram surgindo paulatinamente
trabalhos sobre Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e, mais recentemente,
Angola, o conjunto crescente de investigadores sobre os paí-ses africanos de
língua portuguesa levou à criação, em 1999, no congresso da African Studies
Association em New Jersey, da Lusophone Africa Studies Organization (LASO) que
tem, desde então, assegurado um lugar de destaque para os estudos sobre os
PALOP. Contudo, apesar da sua afirmação no contexto internacional que hoje
conduz ao estabelecimento de uma comunidade de estudiosos bem definida, o termo
não foi tão bem aceite por parte dos intelectuais dos PALOP ou mesmo
portugueses e brasileiros, como nas academias americana, inglesa ou francesa. A
afirmação dos estudos sobre a África Lusófona coincidiu com o lançamento de
programas políticos em torno da Lusofonia, e desde logo a criação da Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa. A noção da unidade lusófona, a ênfase colocada
nos laços históricos e culturais que uniam os diferentes países envolvidos,
esquecia a muito recente história de violência colonial e mesmo os interesses
políticos e estratégicos de Portugal, principal interessado na iniciativa.
Lembrava ainda a adopção do discurso lusotropical que, desde a década de 1950,
se transformou na elaboração ideológica que permitia ao regime do Estado Novo
justificar a permanência do processo colonial pela sua suposta
excepcionalidade. Esta acepção, que continuou presente no discurso político e
também coloquial português para além da mudança de regime operada em 1974,
mascarou situações de violência e segregação, de interesses económicos e
políticos. A proximidade entre os termos lusofonia e África Lusófona também
não foi facilmente aceite pelos intelectuais dos países africanos envolvidos.
Alguns argumentam que a escolha do português como língua oficial foi
essencialmente política e conduziu a uma disseminação linguística que nada deve
ao estado colonial, onde as limitações dos programas educativos são por demais
conhecidas. Outros ainda, que a lusofonia mascara as diferenças abissais entre
os diferentes países falantes de português. Actualmente os benefícios
económicos potenciados pela similitude linguística, além do trabalho de
aproximação que a CPLP tem vindo a desempenhar apesar das suas óbvias
limitações, conduziram gradualmente a uma maior aceitação do conceito.
Embora nunca tenha produzido uma reflexão específica sobre a lusofonia, a obra
de Patrick Chabal constitui a melhor resposta a este debate e, sobretudo, à
questão dos limites da especificidade da África Lusófona. Desde logo o seu
primeiro trabalho, a biografia política de Amílcar Cabral, é uma investigação
de fôlego realizada não apenas sobre a luta pela independência na Guiné-Bissau
como sobre os movimentos nacionalistas nas antigas colónias portuguesas. Como
Chabal nota na reedição de 2003, embora tenham surgido outras obras sobre a
luta de libertação e o papel de Amílcar Cabral, o livro mantinha-se, e mantém-
se, como a biografia incontestável de um homem e de um movimento revolucionário
[1], e um ponto de partida para a compreensão da ligação interna dos movimentos
nacionalistas. As obras seguintes do autor correspondem ao seu trabalho como
professor de Politics and Modern History of Lusophone Africa no Departamento de
Estudos Portugueses e Brasileiros do King's College e versam sobre literatura
da África Lusófona (Chabal, 1994; 1996). Neste último livro, Chabal debate-se
com a questão de uma literatura lusófona africana, a escolha do português
tanto como uma língua de expressão da literatura pós-colonial, como um processo
de afirmação política. Considerando as taxas de iliteracia que superavam os 90%
em três dos cinco países de língua oficial portuguesa à data da sua
independência, e o muito diminuto impacto do ensino secundário e universitário
neste contexto, Chabal salienta a escolha da língua como um instrumento
político, uma perspectiva que segue nos seus trabalhos posteriores. Em Vozes
Moçambicanas: literatura e nacionalidade (1994), A History of Postcolonial
Lusophone Africa (1996) e The Postcolonial Literature of Lusophone Africa
(2002), Chabal regressa ao seu interesse pela história política e escreve, na
longa introdução a esta obra, um ensaio seminal sobre o tema. Neste texto
reconhece as semelhanças históricas entre os cinco PALOP, derivadas da
experiência colonial comum, das lutas nacionalistas e da descolonização tardia.
Nos países continentais, onde sobem ao poder movimentos de libertação com
experiência de luta armada, Chabal enfatiza as semelhanças entre os três
movimentos vencedores, PAIGC, MPLA e FRELIMO. Como nota, a luta anticolonial
jogou-se em diferentes níveis, incluindo a criação de um sentimento de unidade
nacional que passava também pela mobilização das populações rurais,
maioritárias e socialmente afastadas das chefias dos movimentos. Esta
mobilização passava igualmente pela manutenção de uma luta armada que
obedecesse aos objectivos políticos, a organização política interna e a
diplomacia internacionais, único meio de obter o apoio de outros países e o
reconhecimento pelas Nações Unidas. O estado independente que emerge nos três
países continentais, Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, tem naturalmente
semelhanças dada a sua génese histórica e política comum. Nestes três países a
descolonização ocorre em resultado de prolongados conflitos, com consequências
estruturais semelhantes, desde a legitimação da passagem do poder para partidos
que emergiram de movimentos de guerrilha, à facilidade em movimentar as
populações através de medidas autoritárias e à disseminação incontrolada de
armas pelo país. Mas é sobretudo em termos políticos que os estados dos cinco
países africanos que emergem da mesma experiência colonial se aproximam. Em
todos o partido no poder se afirmou como o elemento vanguardista e
centralizador, procurando controlar não apenas o aparelho do estado como a
economia nacional. Nos três países continentais o estado independente recorreu
sistematicamente a medidas de violência para impor as suas decisões e submeter
a oposição. Os cinco países independentes herdaram da administração colonial um
estado burocrático e não representativo. Contudo, para Chabal esta visão de
conjunto é limitada e os cinco PALOP são melhor caracterizados pela sua
inserção regional. Nesta perspectiva salienta as diferenças geoestratégicas
entre os dois estados da África Austral, o pequeno país integrado na zona
historicamente conhecida por Senegâmbia com semelhanças sociológicas e
históricas reconhecidas, e os dois arquipélagos crioulos próximos de outras
construções sociais semelhantes oriundas das economias de plantação e
escravocratas coloniais. O autor sublinha igualmente que as supostas
particularidades da construção do estado independente nos PALOP são mais um
exemplo do estado pós-colonial em África, tendencialmente neo-patrimonial e
centralizador, a um tempo violento e repressivo e politicamente frágil, não se
distinguindo de outros estados vizinhos.
A reflexão de Chabal sobre os cinco países da África Lusófona lançou o debate
sobre as similitudes destes estados independentes e desenhou de imediato os
seus limites, ao indicar os principais factores identitários e geoestratégicos
que haveriam de prevalecer, como se veio a verificar. Decorrida mais de uma
década sobre o lançamento desta obra, a situação política nos cinco PALOP não
poderia ser mais díspar. Angola afirma-se continuamente como uma potência
regional, Moçambique assiste ao emergir de uma sociedade civil reivindicativa,
a Guiné-Bissau debate-se com problemas de legitimidade do estado afundado em
teias de clientelismo militar e no adiamento da reforma do sector de segurança,
enquanto os dois arquipélagos, em particular Cabo Verde, afirmam e desenvolvem
estruturas estatais consolidadas no sistema multipartidário.
A reflexão de Chabal sobre o estado nos PALOP é a expressão dos seus trabalhos
sobre a natureza dos movimentos políticos em África que marcaram a sua obra e
imagem. O muito debatido livro que escreveu com Jean-Pascal Daloz, Africa
Works: Disorder as Political Instrument (Chabal & Daloz, 1999) renovou o
debate sobre o estado em África, ocluso nas discussões lançadas uma década
atrás por Jean-François Bayard sobre o estado patrimonial e a política do
ventre. Em Africa Works, Chabal e Daloz discutem a dimensão política e
histórica da desordem civil, estatal, económica, e sob esta perspectiva
analisam o que consideram ser o falhanço estrutural do desenvolvimento em
África. A esta obra, que marcou indelevelmente o lugar de Chabal nos estudos de
ciência política, seguiu-se Culture Troubles: Politics and the Interpretation
of Meaning (Chabal & Daloz, 2006) em que os autores, na esteira das suas
ideias iniciais, justificam os diferentes comportamentos políticos pelas
experiências culturais dos actores, envolvidos em teias de significado
relacionais no seguimento da interpretação de Clifford Geertz. Ambas as obras
concorrem para definir Chabal como um autor polémico que questionou a ciência
política com base em estudos comparativos alargados. Em Africa. The Politics of
Smiling and Suffering (Chabal, 2009), debate ainda a limitação da teoria
política clássica para entender a especificidade das formações estatais e dos
conflitos no continente. Na sua última obra, The End of Conceit: Western
Rationality after Postcolonialism (Chabal, 2012), lança-se numa crítica
detalhada dos limites da reflexão eurocêntrica, alimentada pelas ciências
sociais e a historiografia, manifestamente inadequada para a compreensão das
dinâmicas do sul global.
Patrick Chabal e o AEGIS
Talvez um dos maiores legados que Patrick Chabal nos deixou tenha sido o seu
trabalho na criação e afirmação do AEGIS, a rede Africa-Europe Group for
Interdisciplinary Studies. Inicialmente construída no início da década de 1990
como uma associação de um pequeno número de centros de estudos africanos na
Europa, a rede rapidamente evoluiu no sentido da sua afirmação e consolidação,
construídas em torno das conferências temáticas primeiro, das conferências
europeias abertas a todos os investigadores em Estudos Africanos desde 2005, e
consolidada pela parceria com a editora Brill e a criação da colecção AEGIS
Series e do Africa Yearbook. A constituição do AEGIS marca igualmente a relação
privilegiada que Patrick Chabal estabeleceu com o Centro de Estudos Africanos
do ISCTE-IUL. A primeira direcção do AEGIS foi formada por Patrick Chabal pela
University of London, Gerti Hessling pelo Center of African Studies de Leiden e
Franz-Wilheim Heimer, pelo CEA, Lisboa. A direcção fundadora marcou
indelevelmente o futuro da associação, Gerti Hessling incentivando a sua
formalização e criando as bases estruturais que permitiram a sua continuidade,
Franz-Wilhelm Heimer organizando em Lisboa a primeira das muitas conferências
temáticas do AEGIS (O Estado em África, 2002) e Patrick Chabal liderando a
evolução do AEGIS para o seu formato actual e coordenando a primeira
conferência europeia de Estudos Africanos (ECAS) em Londres, em Julho de 2005.
Desde então consolidaram-se tanto a relação privilegiada do CEA com o AEGIS,
bem como a colaboração basea-da numa longa amizade com Patrick Chabal. Muitos
dos investigadores que integram o CEA colaboraram ou participaram nas múltiplas
actividades em que Chabal se empenhava, desde logo Gerhard Seibert que
contribui com o capítulo sobre São Tomé e Príncipe para a obra A History of
Lusophone Africa, e depois Nuno Vidal, o seu discípulo que com ele editou
Angola: The Weight of History (Chabal & Vidal, 2007) e Southern Africa:
Civil Society, Politics and Donor Strategies; Angola, Zimbabwe, Democratic
Republic of Congo, Mozambique, Namibia and South Africa (Vidal & Chabal,
2009). Desde 2007 o CEA é membro da direcção do AEGIS, fazendo-se representar
por Manuel João Ramos, e nessa posição organizou a última ECAS (ECAS 2013
Lisboa), em torno do tema African dynamics in a multipolar world. Patrick
Chabal, que em 2007 abandonara a direcção da associação e passara a integrar o
seu grupo de conselheiros, junto de outros membros fundadores, visitou Lisboa
mais uma vez por ocasião dessa conferência e participou plenamente da homenagem
que a associação fez aos seus decanos — ele próprio e Franz-Wilhelm Heimer.
Para os estudantes, Patrick Chabal é um nome mítico e muitos pediram para se
fazer fotografar ao seu lado na festa final da conferência, e continuam o seu
legado lendo e discutindo as suas obras. Como todos conti-nuaremos, na
prossecução dos Estudos Africanos.
Livros de Patrick Chabal citados
Chabal, P. (1993). Amílcar Cabral: Revolutionary leadership and people's war
(Cambridge University Press, 1983). Reissued as Amílcar Cabral: Revolutionary
leadership and people's war, with a new Introduction (Londres & Trenton,
NJ: Hurst & Africa World Press, 2003).
Chabal, P. (1994). Vozes moçambicanas: Literatura e nacionalidade. Lisboa:
Vega.
Chabal, P., et al. (1996). The postcolonial literature of Lusophone Africa.
Londres, Chicago & Johannesburgo: Hurst, Northwestern University Press
& Witwatersrand University Press.
Chabal, P., & Daloz, J.-P. (1999). Africa works: Disorder as political
instrument. Oxford & Indianapolis: James Currey & Indiana University
Press.
Chabal, P., et al. (2002). A history of postcolonial Lusophone Africa.Londres
& Indianapolis: Hurst & Indiana University Press.
Chabal, P., & Daloz, J.-P. (2006). Culture troubles: Politics and the
interpretation of meaning. Londres & Chicago: Hurst & University of
Chicago Press.
Chabal, P., & Vidal, N. (Eds.) (2007). Angola: The weight of history. Nova
Iorque: Columbia University Press.
Chabal, P. (2009). Africa: The politics of suffering and smiling. Londres: Zed
Press.
Chabal, P. (2012). The end of conceit: Western rationality after
postcolonialism. Londres: Zed Press.