Régulo e Comité: Acertos e divergências na Secção de Suzana
ARTIGO ORIGINAL
Régulo e Comité: Acertos e divergências na Secção de Suzana
Régulo and Comité: Adjustments and divergencies in Suzana Section
Este artigo
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tem como objectivo analisar as formas actuais do poder local na Secção de
Suzana, na Guiné-Bissau. Situada no noroeste deste país, esta Secção faz parte
do Sector de São Domingos, Região de Cacheu e é chão
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da sociedade Felupe (ou Joola-ajamaat), um subgrupo Joola
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que, com a chegada do colonialismo, foi maioritariamente incorporado no Estado
colonial português.
Actualmente, a organização do poder político local na Guiné-Bissau encontra-se
definida pelos artigos 105º a 118º, Capítulo VI, da Constituição da República
de 1996, redigida após o fim do período de partido único. No entanto, a
constante instabilidade política, instalada neste país desde o final desta
mesma década, tem impedido a implementação da estrutura administrativa
regional. Desta forma, o Estado mantém a administração territorial oficialmente
destituída e continua a usar as autoridades modernas
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criadas após a independência. Estas, desligadas de uma qualquer relação
efectiva de subordinação político-administrativa com o Estado integram de forma
mais ou menos fluida o aparelho tradicional (Dias, E. C., 2011, p. 151).
A comparação das formas actuais do poder local na Secção de Suzana com as da
época colonial e do período pós-independência permitirá compreender as
estratégias de adaptação das estruturas políticas da sociedade Felupe às
diversas organizações administrativas regionais definidas pelo poder central.
Esta análise, das adaptações das linguagens e estruturas do poder local e das
suas relações com a organização administrativa regional, foi realizada a partir
de consulta bibliográfica, dados recolhidos no terreno e de entrevistas
realizadas localmente, com diversos actores, em trabalhos de campo em 2009,
2012, 2013, 2014 e 2015
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.
As patentes crises do Estado pós-colonial e a incapacidade que este tem
demonstrado nos processos de transição para a democracia renovaram o interesse
no papel incontornável das estruturas políticas das sociedades tradicionais
africanas como mediadoras entre o Estado e as sociedades locais.
Nas sociedades tradicionais africanas, poder e autoridade estão inseridos na
tradição e são por ela explicados. O seu exercício abrange um conjunto
organizado e estruturado de normas e valores sociopolíticos e mágico-
religiosos. Este poder, político ou outro, é atribuído a Autoridades
Tradicionais. Estas são indivíduos ou grupos de indivíduos investidos deste
poder, aceite pela população, e também as instituições políticas que o regulam
(Florêncio, 2005, pp. 42-43).
Inseridas em quadrículas administrativas alheias e submetidas a dinâmicas e
pressões externas, estas sociedades, moldando e adaptando as suas estruturas
políticas, têm resistido com algum sucesso às tentativas de modernização
coloniais e pós-coloniais. O poder local em África é, assim, um espaço onde as
Autoridades Tradicionais têm medido forças
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com o Estado que as subordina.
Na época colonial, as sociedades tradicionais viram os seus territórios
incorporados numa ou mais divisões político-administrativas estatais, do mesmo
ou de diferentes Estados. Estes, para melhor controlarem o território,
integraram na base do seu aparelho administrativo Autoridades Tradicionais,
criadas ou eleitas, que usavam como intermediários entre eles e as sociedades
tradicionais (Dias, E. C., 2011).
Após as independências, os modelos político-administrativos coloniais foram
substituídos e as Autoridades Tradicionais desacreditadas e rejeitadas. Numa
primeira fase, o Estado pós-colonial, para intermediário entre ele e as
sociedades tradicionais, criou autoridades modernas que adicionou às suas
estruturas administrativas. Findo o período do partido único, o Estado
recuperou o uso das Autoridades Tradicionais como intermediárias entre ele e as
sociedades tradicionais (Carvalho, 2009; Dias, E. C., 2010, 2011).
As funções das Autoridades Tradicionais têm, desta forma, sofrido diferentes
modificações ao longo do tempo. No entanto, a sua capacidade de adaptação tem-
lhes permitido moldar os seus papéis de acordo com a relação de forças que,
nos diferentes contextos e conjunturas, estabelecem com o Estado (Dias, E. C.,
2011, p. 148). Nalguns casos, as estruturas das sociedades tradicionais
incorporaram diferentes intermediários criados ou eleitos pelos vários Estados.
Noutros casos, o investimento das Autoridades Tradicionais em garantir e
reforçar o seu papel (ou a sua legitimação) no espaço local tem sido alargado
com sucesso a outros campos e actores, como, por exemplo, o papel de mediação
das Autoridades Tradicionais do reino de Húluf, um outro subgrupo Joola, no
conflito de Casamança
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(Tomàs, 2005a, 2005b, 2014). Apesar da diferença das lógicas próprias de cada
espaço, tradicional e estatal, as Autoridades Tradicionais constituíram-se uma
ligação única entre o Estado e a sociedade civil (Nieuwaal, 1999).
Secção de Suzana
A Secção de Suzana está situada no noroeste da Guiné-Bissau. O território deste
país é dividido administrativamente em regiões, secções e sectores. As
primeiras são administradas por um governador, as segundas por um administrador
e os sectores por comités de Estado. A Secção de Suzana é uma das três secções
(São Domingos e Campada, as outras) do Sector de São Domingos, da Região de
Cacheu. Nesta Secção está estabelecida a sociedade Felupe (ou Joola-ajamaat),
um subgrupo Joola.
Este grupo tem como seu chão a área compreendida entre o rio Gâmbia, na Gâmbia,
e o rio Cacheu, na Guiné-Bissau, um território dividido por três países
(Gâmbia, Senegal e Guiné-Bissau). Apesar disso, as relações de interdependência
e de complementaridade entre os vários subgrupos permaneceram, ajustando-se à
porosidade das fronteiras.
Sociedade Felupe
A sociedade Felupe é uma sociedade agrária dedicada à orizicultura em bolanhas
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, retiradas ao mangue por meio de um sofisticado sistema de diques, que regulam
as entradas e saídas de água salgada e/ou salobra e permitem controlar a
salinidade e acidez dos solos.
Esta sociedade é composta por um conjunto de povoações, maioritariamente
situadas na Guiné-Bissau (dezasseis na Guiné-Bissau e três no sul de Casamança,
Senegal), autónomas no domínio político e religioso e economicamente auto-
suficientes. O conjunto é ligado e regido por um mesmo calendário orizícola e
um complexo conjunto de calendários iniciáticos e de cerimónias religiosas,
promotoras do sentimento de pertença e de identificação.
Sem autoridade centralizada nem estruturas hierárquicas e organizada através de
santuários (ukin-aku)
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, a sociedade Felupe tem sido gerida por um sistema religioso-político,
sustentado numa cadeia iniciática complexa, que escolhe, prepara e legitima os
detentores de autoridade.
Tradicionalmente, a estrutura política desta sociedade é constituída,
principalmente, por representantes/elementos de quatro linhas da sua cadeia
iniciática: Ay-âu, Aramb-âu, Amangñen-au e Hulang Amâk-âu.
O Ay-âu é uma figura masculina, orientador de todos os actos sociais ou
políticos (Nogueira, 1947, p. 714), existente apenas em Caroai e Sucujaque,
duas povoações situadas muito perto da fronteira. Para os Felupe, estas
povoações são parte de um conjunto composto por cinco povoações (Sucujaque,
Tenhate, Basseor e Caroai, na Guiné-Bissau, e Kahème, no Senegal), entendido
como capital política e sagrada e por eles intitulada Hassuka. Com carácter
sagrado e secreto, o Ay-âu é o líder espiritual da sociedade Felupe,
responsável por zelar pela paz e coesão social e é, também, símbolo da unidade
e exclusividade da estrutura social e iniciática desta sociedade, mas com
autoridade restrita. A singularidade desta figura é assim explicada pelos
Felupe: o Ay-âu é sempre o poder supremo, mas não tem todos os poderes
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. Apesar de não ser o único detentor de autoridade legítima suprema, esta
figura tem sido erradamente denominada rei. Esta designação, inicialmente
atribuída pelos exploradores europeus, acabou por se fixar, como refere Silva
(1960):
Criou-se um mito de que o tchina grande, isto é, o chefe dos tchinas
[Ay-âu], era uma espécie de rei de feição política, com autoridade
indiscutida sobre todos os Felupes. Nada mais falso: o tchina grande
é o chefe de todos os jambacoses
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e ninguém pode exercer a profissão sem que primeiro tenha obtido dele licença
para ir aprender com outro (p. 21).
O Aramb-âu é assessor do Ay-âu e o seu representante em cada povoação. Esta
figura, também exclusivamente masculina, tem como função supervisionar a
aplicação das regras, práticas e decisões tomadas pela assembleia da povoação,
mediar os conflitos e as disputas, testemunhar a divisão de terras entre
herdeiros e a sua transmissão em caso de cedência/empréstimo.
O Amangñen-au, figura masculina e feminina, é responsável pelo rito de passagem
de jovem a adulto. A este rito são submetidos indivíduos de ambos os sexos, mas
em processos totalmente distintos, sendo o rito de passagem masculino um
processo longo (cerca de 30 anos) e muito visível.
O Hulang Amâk-âu é um regulador religioso. Esta figura, exclusivamente
masculina, é detentora do conhecimento completo das regras religiosas, dos
processos iniciáticos de todas as linhas iniciáticas e rituais, estando
presente em todas as cerimónias que envolvem o conjunto da população.
Esta simbiose/dependência entre processo iniciático e legitimação da autoridade
tem-se mostrado flexível, apropriando-se de representantes das administrações
externas (colonial, primeiro, e estatal, depois) e incorporando-as no seu
conjunto de autoridades, por forma à manutenção da coesão social e identidade
(Bayan, 2010).
Época colonial
Com uma presença muito antiga no seu chão, os Felupe estabeleceram o primeiro
contacto com os portugueses com a chegada de Estevão Afonso à enseada de
Varela, em 1446 (Mota, 1954, 1972). Guerreiros, temidos pelos vizinhos e hostis
a estrangeiros, os Felupe recusaram qualquer comércio com os portugueses. Com a
chegada do colonialismo e a instalação da quadrícula político-administrativa
colonial, a sociedade Felupe e a sua estrutura política foram sujeitas a
condicionalismos externos promotores de dinâmicas intrusivas. O chão felupe foi
dividido por uma fronteira de separação de duas colónias, portuguesa e
francesa, ficando maioritariamente inserido na Guiné Portuguesa. Fazendo jus à
reputação de sociedade hostil, os Felupe dificultaram a ocupação do seu
território e a delimitação da fronteira entre as duas colónias, originando uma
vaga de acções militares (Mota, 1954; Pélissier, R., 1989). Os confrontos
directos terminaram em 1935, mas os Felupe mantiveram sempre uma resistência
passiva à administração colonial, para Nogueira (1947), orientada pelos
jambacosses:
Não tenho dúvidas que eles – os «jambacosse» – foram os orientadores
da maioria das revoltas dos Felupes, como não tenho relutância em
afirmar [ ] que eles são os grandes responsáveis [ ] por contrariarem
as ordens emanadas das autoridades, aconselhando aquela resistência
passiva mais difícil de vencer que a rebeldia (pp. 715-716).
Estabelecida a divisão territorial, a sociedade Felupe foi integrada no Posto
Administrativo de Suzana, instalado na povoação felupe com o mesmo nome, a mais
populosa e situada sensivelmente no centro do chão desta sociedade. Segundo
René Pélissier (1989, pp. 233-247), nos anos 30 do século XX, Suzana já era um
posto administrativo e, nos arquivos coloniais, é mencionada pela primeira vez
no início do século XX.
A divisão territorial da Guiné Portuguesa sofreu diversas reorganizações até à
aprovação, em 1963, do Estatuto Político-Administrativo da Guiné
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, estabilizando a ordenação do território até à sua independência. Dividido o
território em nove concelhos (Bafatá, Bissau, Bissorã, Bolama, Cacheu, Catió,
Farim, Gabu e Mansoa) e três circunscrições (Bijagós, Fulacunda e São
Domingos), a sociedade Felupe manteve-se, até à independência, integrada no
mesmo Posto Administrativo de Suzana, na Circunscrição de São Domingos.
Para a administração territorial da Guiné, o governo colonial português adoptou
ou criou a figura do Régulo. O Régulo é, em pequenos reinos ou chefaturas,
o indivíduo detentor de autoridade para a resolução de questões de ordem social
e judicial, como as referentes a conflitos resultantes da divisão de terras.
Subordinado ao chefe de posto, o Régulo era o elemento mais próximo das
populações locais e, como intermediário entre estas e a administração colonial,
tinha a responsabilidade da recolha do imposto de palhota e angariação de
mão-de-obra. Recrutado localmente, nem sempre a sua autoridade era legitimada
pela população, mas imposta pelo poder colonial (Carvalho, 2009). Isso mesmo
aconteceu no Posto Administrativo de Suzana, chão felupe, pois na Circunscrição
de São Domingos todos os regulados foram de criação portuguesa (Dias, J. M. B.,
1974, p. 112), como explica um administrador da mesma circunscrição: quando
vaga um chefado, procura conhecer-se o «jambacosse» da povoação, para o nomear
chefe (Nogueira, 1947, p. 716).
Obrigados a indicar um seu representante às autoridades coloniais portuguesas,
os Felupe apresentavam indivíduos que detinham uma autoridade muito limitada ou
nula, como refere o mesmo administrador da Circunscrição de São Domingos: por
ocasião da eleição de qualquer chefe de povoação, com raras excepções, o
indivíduo escolhido era dos que nenhuma importância possuía. Sabia-se que a
escolha era ditada pelo «jambacosse», mas raramente se conhecia quem ele era
(Nogueira, 1947, p. 716). Esta situação manteve-se, apesar de ser do
conhecimento das autoridades coloniais, como atestam os estudos de Amadeu
Nogueira (1947), Cunha Taborda (1950) ou Artur Augusto da Silva (1960).
No entanto, a sociedade Felupe acabou por adoptar a figura do Régulo,
incorporando-a no seu conjunto de autoridades. Dando-lhe uma carga religiosa,
agregou-a a uma figura muito visível, mas com autoridade muito restrita: o
Amangñen-au, sacerdote
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responsável pelo rito de passagem dos jovens a adultos. De facto, as
características deste rito tornam-no difícil de esconder, assim como o seu
responsável, pois a longa periodicidade da sua realização (cerca de 30 anos) e
a sua própria natureza obrigam à paragem dos trabalhos agrícolas, à
movimentação de muitas pessoas e ao enorme consumo de arroz, carne
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e vinho de palma, instalando-se um clima de festa, expresso por música e dança
contínua. Para suprir a autoridade restrita, apesar de muito visível, desta
figura e cumprir os requisitos coloniais foi-lhe atribuída parte dos atributos
não religiosos do Aramb-âu. Assim, resolvia os conflitos entre indivíduos da
mesma povoação, assistia à divisão de terras entre herdeiros, acompanhava a
transmissão de lotes de terreno em caso de cedência ou empréstimo e era
mediador de conflitos ou disputas de terras e bolanhas.
Esta solução, por um lado, possibilitou que o Régulo cumprisse as exigências
das autoridades coloniais e, como representante da comunidade, era considerado
o interlocutor entre esta e a administração colonial, assim como relativamente
aos grupos exógenos. Por outro lado, esse arranjo permitiu à sociedade Felupe
continuar a manter oculta do poder colonial a estrutura das suas Autoridades
Tradicionais.
Da independência à década de 1990
Após a independência, a ordenação territorial desta zona manteve-se idêntica à
estabelecida pelo regime colonial, mudando apenas as denominações. Assim, o
Posto Administrativo de Suzana tomou o nome de Secção de Suzana e a
Circunscrição de São Domingos mudou para Sector de São Domingos.
Já o mesmo não se passou quanto à organização administrativa. Considerando as
chefias tradicionais como manifestações de tribalismo e até mesmo de
feudalismo, bem como os régulos colaboradores das autoridades coloniais
portuguesas, o governo da Guiné-Bissau instaurou uma nova estrutura
administrativa regional, transpondo o modelo de gestão local aplicado às zonas
controladas pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde
(PAIGC) durante a luta de libertação. Com esta organização foram instaurados,
por ordem hierárquica decrescente, os comités de estado de região, comités de
estado de sector, comités de estado de secção e comités de estado de tabanca
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. Estes últimos eram compostos por cinco pessoas eleitas pela população – dois
membros efectivos do PAIGC, uma mulher, um jovem e um homem-grande
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– e presididos por um dos membros efectivos do PAIGC (Carvalho, 2009, p.
25).
Para a sociedade Felupe, esta nova forma de autoridade continuava a ser
externa, imposta e não legitimada. Considerados os representantes do novo
Estado como a continuação da situação colonial, a sociedade Felupe adaptou as
funções do Régulo, transpondo algumas para o Comité: a autoridade do Comité
foi retirada ao Ây e Régulo, porque a terra agora não pertence à tradição, mas
pertence ao Estado e é a autoridade moderna que está representada pelo Comité
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. Com esta adaptação, o Régulo manteve as suas funções, essencialmente
internas, e ao Comité coube o papel de intermediário entre o mundo felupe e o
governo central.
Década de 1990
Na década de 1990, deu-se o fim do período do partido único e a administração
regional até então vigente foi anulada. O multipartidarismo e a necessidade de
apoio das populações rurais conduziram à renovação do quadro administrativo
regional e à reabilitação das Autoridades Tradicionais, possibilitando que
estas assumissem cargos directivos no poder local. Assim, os régulos ganharam
um novo olhar, foram efectuadas diversas campanhas de mobilização dos chefes
tradicionais e alguns deles nomeados presidentes de sector.
Em 1996, foi aprovada a actual Constituição da República da Guiné-Bissau, que,
nos artigos 105º a 118º, do Capítulo VI, define a organização do poder político
local. Esta compreende a existência de autarquias locais, dotadas de órgãos
representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das
comunidades locais
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e estabelece que as atribuições e a organização das autarquias locais, bem
como a competência dos seus órgãos, serão reguladas por lei, de harmonia com o
princípio da autonomia do poder local
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. No entanto, a instabilidade política que, desde o fim da mesma década, se
instalou na Guiné-Bissau, não permitiu a implementação da nova estrutura
administrativa regional. Desta forma, os órgãos institucionais oficialmente
extintos mantêm-se activos e as populações adaptam as suas formas de poder
local mediante os ditames do governo em exercício.
No chão felupe, este vazio foi apropriado pela estrutura política desta
sociedade. O papel do Régulo foi transferido do Amangñen-au para o Aramb-âu e o
do Comité foi adaptado. O primeiro retornou às suas funções pré-coloniais, ou
seja, responsável pelo longo e muito visível processo do rito de passagem
masculino. O segundo, tradicionalmente considerado principal representante do
Ây, assumiu para o exterior o papel de chefe tradicional da povoação. Quanto ao
Comité, a sua figura continuou a existir de facto, apesar de não ser
reconhecida oficialmente e de ter sofrido algumas alterações. Com efeito, o
nome Comité foi atribuído a um indivíduo, normalmente sem nenhum cargo
tradicional ou apenas com um cargo menor. Gradualmente, os jovens e as
mulheres foram deixando de ter acesso a este cargo; apesar de eleito, o lugar
de Comité adquiriu cariz vitalício, excepto se o seu detentor desapontar a
comunidade, caso em que é substituído; e, no interior da sociedade Felupe,
tornou-se mais um cargo de prestígio do que de acção efectiva (Bayan, 2010).
Esta figura, assim adaptada, continuou a ser considerada pelas populações e
pelas organizações externas como representante do Estado, como atesta o
depoimento, recolhido no terreno em 2009, de um felupe deputado da Assembleia
Nacional da Guiné-Bissau, representante do Sector de São Domingos:
O Comité é o elemento principal da tabanca. Quando, por exemplo, o
administrador ou alguém superior quer falar com a tabanca é o Comité
que é responsável. Vai casa a casa comunicando à população que amanhã
vamos para o Comité de Estado ouvir o que o nosso presidente tem para
nos dizer.
Utilizado pela administração regional como elo de ligação com a povoação, este
representante informal, mas efectivo, do Estado, não aufere qualquer
remuneração, nem tem documentos de certificação do cargo ou função. A sociedade
Felupe encara esta situação informal-formal como uma carga a mais porque está
sujeita a duas chefias: a estatal, constituída pelos comités de base que se
reúnem no Comité de Secção e no de Sector; e a tradicional, constituída pelo
rei e Régulo
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.
Na verdade, no interior da sociedade Felupe, Comité e Régulo trabalham em
conjunto, sendo o Comité porta-voz do Régulo, o Aramb-âu. Os Felupe consideram
que a sociedade tradicional Felupe tem uma organização mais abrangente que a
organização estatal
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, pelo que a sociedade Felupe faz o que tradicionalmente sempre fez e só
recorre ao Estado para determinados assuntos
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. Aprovada, assim, a partilha de poder entre o Régulo e o Comité, a sociedade
Felupe integrou este último na sua estrutura organizativa tradicional.
Desta forma, os conflitos são resolvidos pelo Régulo ou pelo Comité, conforme a
sua natureza ou a escolha dos interessados. Quando a escolha recai sobre o
Comité e a decisão não agrada aos intervenientes, estes recorrem, então, ao
método tradicional, ou seja, à Autoridade Tradicional responsável pela questão.
De uma forma ou de outra, i.e., recorrendo às Autoridades Tradicionais ou ao
Comité, dificilmente o problema não é ultrapassado, não sendo, por isso,
necessária a intervenção da autoridade estatal, à excepção dos casos de morte.
Após a década de 1990
Nos últimos anos, este quadro foi-se fixando. As Autoridades Tradicionais
felupe foram recuperando o seu espaço tradicional e o termo Régulo foi-se
gradualmente tornando apenas uma identificação para o exterior do Ay-âu e do
seu representante nas tabancas, oAramb-âu, sendo o primeiro referenciado como
Régulo dos Régulos e o segundo como Régulo da Tabanca.
Por sua vez, o Comité foi sofrendo algumas adaptações, enquanto a definição e a
separação entre a sua legitimidade tradicional e legal foi diminuindo. Assim, o
Comité, de eleito, tornou-se escolhido ou nomeado. A decisão da escolha deixou
de depender exclusivamente do conjunto da população, assim como a duração do
seu mandato foi deixando de estar sujeita apenas ao seu julgamento. Uma e outra
passaram a ser efectuadas pelos chefes dos agregados familiares (vulgarmente
denominados Mais-velhos) ou pelas Autoridades Tradicionais da povoação,
podendo ambas depender dos laços de parentesco
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e da forma de subordinação ao Aramb-âu. Escolhido desta forma, o Comité foi
alterando a sua forma de actuar e, gradualmente, foi deixando de informar a
população do conteúdo das suas comunicações com o Estado, passando a reportar
apenas ao Aramb-âu, que filtrava a informação e decidia o momento de a
comunicar à população. De modo semelhante eram tratadas as propostas das
Organizações Não Governamentais para o Desenvolvimento (ONGD). Inicialmente
apresentadas pelos membros das ONGD a um grupo de pessoas, previamente
escolhidas pelo Comité, as propostas eram posteriormente discutidas pelas
Autoridades Tradicionais e os Mais-velhos da tabanca e a decisão comunicada
pelo Comité às ONGD e à restante população.
Este novo modelo de actuação do Comité, cada vez mais idêntico ao das
Autoridades Tradicionais, provocou o descontentamento dos jovens. Insatisfeitos
com esta forma de desempenho, excluídos do processo de escolha do Comité e
considerando-se melhor preparados para o exercício desta autoridade, os jovens
exigiram o retorno ao modelo anterior, aquele em que o Comité era tido como
representante da autoridade moderna, ou seja, o Comité era escolhido pela
população, informava-a, participava das decisões e os jovens podiam aceder ao
cargo. Em algumas povoações, como, por exemplo, Catão e Varela, esta exigência
foi parcialmente bem-sucedida. Apesar de ainda nomeado e não eleito, o cargo de
Comité foi atribuído a jovens e, actualmente, apenas aos que frequentaram a
escola. Esta nova condição, por um lado, permite, pelo menos teoricamente, um
relacionamento melhor e mais proveitoso do Comité e, por acréscimo, da
população com os organismos estatais e com as ONGD e, por outro lado, reduz as
hipóteses de acesso dos Mais-velhos a este cargo. Para contentar os
destituídos, o título Comité tornou-se vitalício, mesmo não exercendo o cargo.
Este modelo foi bem recebido pois, apesar de o Comité continuar a ser escolhido
ou nomeado, um número crescente de jovens passou a ter acesso a este cargo e os
mais velhos, embora dele despojados, não perderam prestígio.
Acalmados os jovens e contentados os destituídos, as Autoridades Tradicionais,
para manterem o seu controlo e influência, trataram rapidamente de incluir no
seu seio estes jovens comités, apanhando-os
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para integrarem uma das linhas iniciáticas. Um bom exemplo é o caso de Catão,
uma das primeiras povoações a substituírem o seu Comité: em 2012, foi nomeado
um jovem e um ano depois foi apanhado e empossado Amangñen-au. Esta
estratégia permitiu o reforço da legitimidade tradicional imbricando-a, ainda
mais, com a legal e cativou o respeito dos comités jovens e da sua geração pela
autoridade tradicional. Assim, actualmente, o Comité, mesmo que jovem, já
raramente está isento de uma iniciação, abrangendo as quatro grandes linhas
iniciáticas anteriormente referidas, apesar de a maioria ter apenas um grau
secundário de uma das linhas.
Situação actual (2012 a 2015)
Esta situação alterou-se de novo após o golpe de Estado em 2012. O governo de
transição dele imanado, necessitado de encontrar apoios internos, desenvolveu o
Projecto de Decreto sobre Estatutos das Autoridades Tradicionais. Sob a
alçada do Ministério da Administração Territorial, este documento de
construção do estatuto jurídico dos regulados e das Autoridades Tradicionais,
visa modernizar e reestruturar o poder tradicional, promover a dignificação
dos dignitários, e articular a administração local e as Autoridades
Tradicionais para assegurar a harmonia das instituições em prol do
desenvolvimento
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.
Na Secção de Suzana, esta recuperação da figura do Régulo foi iniciada, ainda
em 2012, com a oferta de veículos motorizados ao Régulo de cada tabanca, o
qual, como já referido, é oAramb-âu. No entanto, por desconhecimento da
orgânica do poder local nesta Secção, ou por insuficiência de verbas, só foram
ofertadas oito motorizadas. As restantes oito foram entregues um ano depois, em
2013.
Nesse ano, foram atribuídos cartões de identificação de Régulo aos Buramb-abu
(plural de Aramb-âu) e a outros elementos das Autoridades Tradicionais e foram
realizados dois encontros nacionais com os régulos já institucionalizados. Além
destes encontros nacionais, foram também realizadas, em 2013 e em 2014,
reuniões com os régulos do Sector de São Domingos e outras só com os régulos da
Secção de Suzana, ou seja, com os régulos institucionalizados da sociedade
Felupe.
A implementação do Projecto de Decreto sobre Estatutos das Autoridades
Tradicionais tem, no entanto, contrariado os seus objectivos, principalmente o
de assegurar a harmonia das instituições. Iniciado sem consulta nem
informação prévia à população, às Autoridades Tradicionais e aos comités, é
desenvolvido apenas com os régulos instituídos pela administração regional.
Estas nomeações retiram autoridade a uns (os comités) e atribuem-na a outros,
sem respeitar hierarquias ou legitimidades. Revelando desconhecimento da
organização tradicional felupe e excluindo os diversos representantes desta
sociedade, ou seja, o conjunto das Autoridades Tradicionais, comités e
representantes da população, este projecto tem gerado alguns conflitos no seio
das Autoridades Tradicionais, dos comités e da população felupe e, também,
entre uns e outros.
De facto, o apoio dos novos régulos ao Projecto de Decreto sobre Estatutos das
Autoridades Tradicionais foi, aparentemente, conseguido com a oferta das
motorizadas e a promessa de atribuição de um subsídio, assistência médica e
medicamentos, previstos nas suas alíneas f e g do Artigo 3º. Contudo, se o
subsídio é atractivo, a sua contrapartida, a participação do Régulo na cobrança
de impostos, reaviva memórias desagradáveis, projectando possíveis conflitos
com a população. Acresce que, apesar de os régulos instituídos considerarem que
o poder tradicional não é respeitado pelo governo da Guiné. Só estes últimos
anos estamos a ver, estão a sensibilizar, a tentar chamar os Grandes para ouvir
também a voz de tradição
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, os critérios de escolha destes régulos, a sua identificação e a oferta das
motorizadas provocaram desconfianças no seio das Autoridades Tradicionais,
alimentando tentativas de contestação interna, até aqui controladas, mas cada
vez mais visíveis nos últimos anos, devido à inexistência prolongada do Ay-âu
(falecido em 2003).
Os critérios de escolha dos régulos e a distribuição das motorizadas não
seguiram nenhum padrão da organização social felupe. Sem respeitar hierarquias
ou legitimidades, a escolha abrangeu elementos das linhas iniciáticas do Aramb-
âu e do Amangñen-au e, em algumas tabancas, foi mesmo escolhido mais do que um
indivíduo. Isso aconteceu, por exemplo, em Jufunco e em Iale, onde foram
nomeados régulos dois indivíduos da mesma linha iniciática (Aramb-âu), mas
atribuída motorizada apenas a um deles. Além disso, os cartões de identificação
dos régulos foram preenchidos com dados atribuídos (não se sabe por quem) e não
recolhidos localmente, exibindo assim informação errada, como as datas de
empossamento ou o nome de alguns elementos.
Além da contestação no seio das Autoridades Tradicionais, estes factores
alimentam também a longa desconfiança da sociedade Felupe em relação às
autoridades estatais. Internamente, para acalmar as tentativas de contestação e
atenuar a possibilidade de desenvolvimento de outras no seio das Autoridades
Tradicionais e da sociedade, os régulos entregaram as motorizadas recebidas a
irmãos, filhos ou sobrinhos não iniciados e, quando convocados para reuniões
com a administração regional, raramente comparecem todos.
Em relação aos comités, o Projecto de Decreto sobre Estatutos das Autoridades
Tradicionais não foi bem recebido. As diferenças de tratamento são por demais
evidentes, pois a estes representantes, de facto, do Estado, apesar do seu
estatuto informal, nunca lhes foi ofertada nenhuma motorizada, nem atribuído
nenhum subsídio ou assistência médica, sendo obrigados a custear as suas
despesas de deslocação e a retirar tempo ao seu trabalho na lavoura e na
recolha de vinho de palma para cumprir os requisitos do governo.
Excluídos da implementação deste projecto e, repentinamente e sem explicações,
despidos da sua autoridade, atribuída ou reconhecida, de únicos representantes
do Estado, os comités vêem o seu espaço de actuação em relação ao mundo
exterior diminuir, não sabendo se manterão ou não alguma parte do seu estatuto
de representantes do Estado. Apesar desta incerteza, continuam a ser o
principal interlocutor da sociedade Felupe com os grupos exógenos,
especialmente as ONGD. No entanto, esta diminuição do espaço de actuação dos
comités e a forma como tem sido efectuada pelo Estado alimentam a sua
desconfiança em relação às autoridades estatais e aos novos régulos.
Para a sociedade Felupe a imposição externa de autoridades não é novidade mas,
actualmente, esta sociedade encontra-se muito fragilizada e sob grandes
tensões, devido à inexistência prolongada do Ây de Caroai (recorde-se que o
último faleceu em 2003) e aos esforços que actualmente tem desenvolvido para a
sua substituição. Um deles tem sido a reocupação de Kahéne, uma tabanca
localizada no Senegal e abandonada, em 1995, devido ao conflito de Casamança,
que é imprescindível para a realização de algumas cerimónias deste processo.
A forma de desenvolvimento do projecto do Ministério da Administração
Territorial e as suas consequências imediatas – suspeição entre régulos e entre
estes e comités – geraram um mal-estar no interior da sociedade Felupe que
reforçou a confiança na organização tradicional, levando os Felupe a investir,
quer na realização da principal cerimónia de iniciação masculina (bukut-abu),
também uma forma de promover a organização tradicional, quer no processo de
escolha e entronização do novo Ay-âu, pois acreditam que quando houver Ây
começam todos a cumprir regras
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e, assim, será possível resolver as tensões internas e também explicar às
autoridades estatais a orgânica desta sociedade.
Em Maio de 2014, foram realizadas eleições que puseram fim ao governo de
transição da Guiné-Bissau. O novo executivo, sem rejeitar a institucionalização
dos régulos, alterou o seu relacionamento com os Felupe: as reuniões do Sector
de São Domingos e as da Secção de Suzana passaram a integrar régulos, comités e
representantes de associações populares, visando solucionar as situações
conflituosas na região. É desta forma que tem estado a ser tratado o conflito
entre os Felupe, a administração regional e a empresa russa Poto SARL, gerado
pela exploração de areias pesadas em Varela.
A incorporação dos vários sectores da sociedade Felupe nas reuniões com a
administração regional acalmou o anterior mal-estar criado pela implantação do
Projecto de Decreto sobre Estatutos das Autoridades Tradicionais. Esta
mudança de relação entre a administração regional e a sociedade Felupe suscitou
a tolerância das Autoridades Tradicionais em relação à administração regional e
ao seu desconhecimento da organização desta sociedade.
Assim, Autoridades Tradicionais e sociedade Felupe concentraram-se na
realização da importante cerimónia de iniciação masculina (bukut-abu), que se
realizou entre 17 de Março e 9 de Junho de 2015, em Hassuka, povoação sagrada e
residência da morança
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do Ay-âu. A realização desta cerimónia era passo imprescindível para a
entronização do futuro Ay-âu e é também uma estratégia de promoção dos valores
tradicionais e de reforço da organização tradicional.
Conclusão
Entretanto, novas alterações se avizinham na relação entre sociedade Felupe e
administração regional. O actual governo anunciou a sua pretensão de realizar
eleições autárquicas em 2016, para implementar a estrutura administrativa
regional definida pelos artigos 105º a 118º, Capítulo VI, da Constituição da
República de 1996. Segundo esta, nas secções administrativas funcionarão as
secções autárquicas
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, representadas pela assembleia dos moradores e a comissão directiva dos
moradores
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e as atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a
competência dos seus órgãos, serão reguladas por lei, de harmonia com o
princípio da autonomia do poder local
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. A possível participação de todos os elementos adultos da sociedade Felupe na
gestão da Secção de Suzana e a promessa da autonomia do poder local são, à
partida, bem vistas por esta sociedade, pois permitem a participação de todos
sem a destituição do poder tradicional. E isto é entendido, por um lado, como
predisposição do Estado para conhecer e ouvir a sociedade Felupe e, por outro
lado, como uma forma de assegurar a participação desta no Estado da Guiné-
Bissau. Ou seja, para os Felupe esta é a hipótese de poderem participar no
Estado e não serem simplesmente a ele submetidos.
No entanto, a actual tensão política, instalada entre a presidência e a chefia
do governo da Guiné-Bissau, e a possibilidade de o presidente José Mário Vaz
demitir o governo, levou o primeiro-ministro Domingos Simões Pereira a convocar
uma reunião com os régulos
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. Esta busca ou reforço de apoios internos traz de novo os fantasmas do
passado: pressões e modelos de gestão local ao sabor da instabilidade política
na Guiné-Bissau.
Na verdade, até hoje, a sociedade Felupe, sujeita a organizações
administrativas alheias e perturbadoras, foi sendo capaz de moldar o seu
sistema de gestão, adaptando e incorporando novos elementos no conjunto das
suas estruturas políticas. Esta situação levanta algumas questões: será a
sociedade Felupe capaz de se continuar a adaptar às dinâmicas externas, sendo
elas, actualmente, muito mais intrusivas e rápidas? A sua coesão social sairá
enfraquecida? Ou, pelo contrário, o seu reforço aumentará a já tradicional e
generalizada desconfiança desta sociedade em relação ao Estado, a quem
continuam a apelidar de Alulum-âu, i.e., o Branco?