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variedadeEu
ano2015
fonteScielo

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A autonomia das autarquias locais e a tutela do Estado em Angola: Da autonomia perdida nos períodos colonial e revolucionário (1482-1992) à autonomia frustrada no período democrático actual RECENSÃO Carlos Feijó. A autonomia das autarquias locais e a tutela do Estado em Angola: Da autonomia perdida nos períodos colonial e revolucionário (1482-1992) à autonomia frustrada no período democrático actual. Dissertação de mestrado.

Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2000.

Carlos Feijó. A coexistência normativa entre o Estado e as autoridades tradicionais na ordem jurídica plural angolana. Coimbra: Almedina. 2012. 491 pp. ISBN: 9789724047317

Augusto Nascimento*[1] *Centro de História, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Alameda da Universidade, 1600-214 Lisboa, Portugal, anascimento2000@yahoo.com

Deriva política e do saber? Apontamentos a propósito de dois textos sobre poderes locais Comecemos pelo que cumpre dizer: indubi8tavelmente, trata-se de duas dissertações de fôlego as que aqui se abordam, não do prisma da consistência da argumentação jurídica (que, mesmo se compreendida ou intuída, não nos é dado corroborar ou infirmar), antes de uma perspectiva externa, histórica e, algo inevitavelmente, política. Ambas se debruçam sobre os poderes locais em Angola: a primeira aborda as autarquias, enquanto a segunda se detém nos poderes tradicionais.

Do ponto de vista histórico discordar-se-á, por exemplo, da ponderação dos intentos colonialistas baseada no sentido literal da lei ou dos lemas (diga-se, ao longo do tempo, a política assimilacionista designou diferentes propósitos) ou da avaliação de um colonialismo que remontaria ao século XV. Mais do que do insucesso do municipalismo modelo que tende a universalizar-se desde os primórdios da presença portuguesa, talvez se devesse falar da duplicidade e da imoralidade insanáveis do colonialismo e, em particular, da quase obsessão dos governantes do Estado Novo. Conquanto, até pela invocação da historicidade para fundamento de opções políticas, tais questões não sejam irrelevantes, o uso inapropriado da história não diminui os textos.

Situando-nos, em 2000, Carlos Feijó considerava que em Angola existia uma manifestação específica de autonomia local, a administração ou poder tradicional, um verdadeiro poder, anterior ao Estado. Todavia, esta constatação surgia a propósito das autarquias locais, tidas como um imperativo do Estado de direito democrático, tendo, aliás, sido um item do redesenho do Estado debatido nas sucessivas conversações de paz na década de 1990.

Independentemente das perspectivas doutrinárias, nos planos político e jurídico, as autarquias eram consideradas inadiáveis. Mesmo convindo em que elas não seriam uma extensão do Estado (uma diferença jurídica decerto irrelevante para as pessoas que, escolhendo os decisores de proximidade, os olham, ainda assim, como braços do Estado), antes uma concretização do poder local, podendo inclusive demandar o próprio Estado, nem por isso deixavam de ser tidas como imprescindíveis à acção deste.

Logo, importava conhecer a evolução da administração local sob o colonialismo e no período pós-independência, marcado por tentativas de ‘socialismo científico' e ( ) pelo menos no plano constitucional, de esteios próprios dos Estados democráticos de direito. Ao tempo, o autor considerava a democracia local a pedra de toque de um verdadeiro movimento participativo, pelo que a autonomia local não podia ser um assunto marginal, a obliterar ad aeternum.

Porque a razão de ser dos conflitos em África e, inevitavelmente, em Angola passava também por aparentes reivindicações étnicas (regionais), quando a questão era, entre outras, a da distribuição territorial do poder, confundível com a organização territorial do Estado, impunha-se a democracia local. Em 2000, na fase democrática, a guerra empecia a implementação das autarquias locais. Contudo, no ver de Carlos Feijó, importava começar .

A situação política mudou. E, como que em contramão do refluxo do interesse pelos poderes tradicionais (pelo menos, se comparado com o dos anos 90), estes tornaram-se o objecto de estudo do autor. Apesar de lembrada a complexidade do cometimento, é dito que em vários países africanos se tenta a conciliação entre o moderno e o tradicional na administração. Paralelamente, foca-se a necessidade de os Estados chegarem às populações e o movimento no sentido da reconciliação e da afirmação de identidades comuns.

Não será abusivo descortinar na aproximação dos Estados às autoridades tradicionais um elemento de conveniência política, mesmo se esta é racionalizada pela convicção relativa ao fundado lugar daquelas autoridades nas sociedades africanas.

Pergunta-se se tal ditará um modelo para o futuro ou se estamos perante posições políticas tacteantes, dados, por um lado, o falhanço da almejada transformação social e, por outro, as incertezas da futura evolução política e social em razão, por exemplo, das dificuldades da integração de entidades pautadas por lógicas diversas e com poderes desiguais. Como no passado, podemos antever da parte dos agentes estatais uma atitude tecida, a um tempo, de prudência e de calculismo: não vale a pena hostilizar um poder autónomo e originário, que nem sequer se compreende plenamente, ao mesmo tempo que (porventura) se espera(rá) que a mudança social reconduza tais poderes à condição de entidades negligenciáveis[2], ainda que tal não signifique nem a homogeneidade social nem o desaparecimento de forças (eventualmente) avessas ao Estado. Ora, não é o que Feijó defende no mais recente dos textos, onde é manifesto o empenho na promoção dos poderes tradicionais.

Assim, se, em 2000, o autor sustentava que a consecução dos fins do Estado, importando na respectiva territorialização, implicava a criação de autarquias, em 2012 considerou que o reconhecimento dos modos de vida das comunidades que integram a comunidade nacional constitui um requisito da construção da nação e do Estado. Logo, de modo algum se deve encarar a integração das autoridades tradicionais como uma tentativa de manipulação levada a cabo por agentes de Estados falhados ou fracos.

Segundo Feijó, a Constituição angolana de 2010 confere dignidade institucional ao pluralismo normativo, até então apenas previsto na lei de forma assistemática e esparsa. Mais relevante, o reconhecimento do poder tradicional constitui-se num imperativo para o Estado de direito democrático. As autoridades tradicionais são uma emanação popular/comunitária e desempenham um papel socialmente relevante; por isso, num verdadeiro Estado democrático de Direito, não compete ao Estado, em nome dos interesses da maioria, ditar limitações às necessidades das minorias cuja estabilidade normativa é mais do que aceite tanto local como nacionalmente pelas respectivas comunidades. Ora, tal poderá implicar pressupor, por exemplo, que as sociedades tradicionais preservaram, ao cabo de décadas de tormentosas e desestruturantes mutações sociais, a sua integridade moral e política. Diga-se, historicamente não nada de mais duvidoso. Mas, por vezes, a história conta pouco.

Para a discussão da democratização da sociedade, retenha-se o argumento da necessária compaginação do Estado com o que é estranho à sua racionalidade (por exemplo, a religião) e lhe é anterior. Indubitavelmente, valoriza-se a consecução dos valores tradicionais, distintos dos interesses nacionais, reconhecendo-se, por isso, a relevância das autoridades tradicionais. Para o autor, estas nem sequer se apresentam diminuídas pela sucessão hereditária (em rigor, dita hereditária mas com concessões ao meio social), porque, sendo circunscrita, não viola os princípios republicanos do todo nacional.

Numa inusual inversão das relações entre política e direito, é-nos dito que, mais do que a democracia por vezes uma soma de vontades e passível de manipulações demagógicas , a lei e o direito são a garantia contra arbitrariedades. Advogar a valia da lei como salvaguarda da democracia (na circunstância, a capacidade de compaginar poderes tradicionais com lógicas do Estado) é interessante mas será efectivo? De que vale se a lei de pouco valer? Por exemplo, a explanação da dignidade humana enquanto fundamento do Estado, por isso mesmo limitado pelo Direito, é assaz sugestiva mas coaduna-se com laços orgânicos prevalecentes em contextos africanos? Por isso, outros elegeriam a cultura política das instituições e das pessoas como mais relevante do que a lei, enquanto prática, em consolidação.

Afora a matéria carreada, ambos os trabalhos oferecem fartos motivos para debate e ulteriores investigações, sugerindo, ademais, perguntas sobre o contexto. Com efeito, poderia a deriva para a valorização das autoridades tradicionais constituir uma subliminar justificação do protelamento das eleições autárquicas que reconheceriam comunidades de interesses referidas a um território? Sem poder ajuizar, mantenha-se o distanciamento crítico. O saber não tem de ser militantemente oposicionista, mas convirá que, a par da utilidade social incluindo para os governantes não aliene a dimensão crítica sem a qual perde pertinência.

Em 2000, asseverava-se que os princípios da autonomia local e da descentralização administrativa tinham sido incorrectamente situados no título dos órgãos do Estado, na lei constitucional de 16 de Setembro de 1992, porquanto os princípios incluídos dizem respeito à organização do poder político e não, apenas, à organização e funcionamento dos órgãos do Estado.

Ora, depois de corrigida esta distorção política e jurídica pela retirada do poder local dos órgãos do poder de Estado na constituição de 2010, nem por isso se adiantou um passo na concretização das autarquias locais, apesar de tal ser não uma reivindicação recorrente de vários sectores sociais mas também um suposto mecanismo de majoração de eficácia administrativa e de pacificação social.

Diga-se, num evento público em finais de 2014, alguém aduziu que a promessa de governantes relativamente à realização de eleições autárquicas em 2015 significava a certeza de que estas não se realizariam. Qualquer observador da dilação do processo de autarquização angolano não podia deixar de considerar como plausível aquele alvitre sobre as eleições autárquicas. Afinal, em conformidade com o preceito constitucional, a apresentação de um pacote legislativo, mesmo se juridicamente imperfeito, sobre as reformas da administração local do Estado e da administração local autárquica pelo Ministério da Administração do Território data de 1995 estando o processo de paz em curso desde 2002.

Contrariando promessas de décadas sobre a democratização do poder local, o Estado angolano não confere espaço ao poder local autónomo (aqui, glosando argumentação de Feijó, a ênfase e o pleonasmo têm sentido, não sendo inócuos!) estando por cumprir o clausulado constitucional relativo a autarquias eleitas. Em Angola, nem sequer se ensaia uma solução gradualista, nem no plano territorial, como a encetada em Moçambique, nem, consequentemente, no da transferência de poderes e de competências. Mas acolher-se-ão lógicas políticas diversas, tradicionais e politicamente não competitivas, como se os vínculos de pessoas sobrelevassem os interesses de cidadãos.

Quiçá na esteira da tendência para a africanização da democracia em tese, um objectivo louvável, mas de concretização comummente duvidosa respigam-se argumentos historicamente inconclusivos, no sentido em que são válidos mas não para o fim para que se os elenca. Descartando modelos importados e desgarrados da historicidade própria do Estado e das comunidades angolanas, subscreve-se a ideia de que o que alhures se designa de municipalismo foi, entre as populações do actual território de Angola, o exercício dos poderes tradicionais. Sem ser minucioso, mencione-se a historicamente problemática identificação das populações passadas do actual território com a população ou as populações angolanas e, mais relevante, a questão de saber se as autoridades tradicionais têm condições para atender às complexas necessidades derivadas dos actuais processos de mutação social.

Mesmo que, tal como outrora se atribuíram à Igreja, se prescrevam tarefas administrativas às autoridades tradicionais, não parece que estas e as autarquias sejam mutuamente excludentes, desde logo por não se imaginar poderes tradicionais dotados de um repositório de valores e normas para as complexas e modulares relações das sociedades de hoje (as autoridades tradicionais não estão condenadas ao imobilismo, mas nem por tal circunstância é mister atribuir-lhes aptidão e propensão para um desempenho administrativo de alguma forma distinto da tutela tradicional).

Legitimamente, pode entender-se que o reconhecimento constitucional dos poderes tradicionais é preferível à criação de autarquias propriamente ditas. Num primeiro momento, certamente as chefias tradicionais concitarão maior aceitação do que instâncias burocratizadas, não raro encaradas como um braço estatal! Mas poderá o poder tradicional substituir-se ao poder autárquico na representação do interesse próprio dos cidadãos? Em 2000, aduzia-se que, sem embargo da inclusão do poder tradicional na esfera da autonomia local respeitada pelo Estado unitário,

o futuro democrático de Angola cedo demonstrará que a principal instituição local será a autarquia local pois, entre outras razões, apenas os seus órgãos serão eleitos e é certo que o desenvolvimento económico, social, político e tecnológico se encarregará da modernização das instituições tradicionais.

 E embora se a postergasse para o encerramento da transição democrática, pela sua valia para a atenuação dos problemas de incidência tribal ou regional ou para a reconciliação nacional, a descentralização política, sucedânea à criação das autarquias locais, afigurava-se crucial para a ‘sobrevivência' das minorias políticas e a co-participação no exercício do poder pelos diferentes partidos políticos.

Não estamos fora do prazo antevisto para a concretização da autonomia local, quinze anos, e para o subsequente início da descentralização política, a concretizar a nível provincial ou da região. Mas, repetindo-nos, para além do fim da guerra, algo mudou. Mais do que a matriz identitária africana, ou angolana que um historiador, mesmo sopesando a aceleração dos tempos presentes, intui não poder alterar-se em tão curto tempo , mudou a política.

Em 1975, a concepção de poder local era densificada pelo poder popular, significando ambos a mesma realidade política e administrativa local, obviamente um ditame da conjuntura pós-independência. Na presente, o poder local o dos interesses próprios e comuns das comunidades distintos dos nacionais acabará densificado pelo poder tradicional? Se, agora, a concretização do poder local se atém aos poderes tradicionais, então tal reveste-se de significado político a ser explicitado e, obviamente, problematizado. Também para a competente relativização e, não paradoxalmente, valorização do saber.

NOTAS [1]   Centro de História da Universidade de Lisboa UID/HIS/04311/2013 [2]   Ainda que não sirva para caracterizar os Estados, antes para assinalar a constância (a priori, insuspeita) de problemas e expedientes em regimes políticos diversos e até antagónicos, vale a pena lembrar que, de algum modo, tal era a posição do Estado colonial, que foi assentando na coexistência com as autoridades tradicionais, umas vezes ignorando-as, outras tentando beneficiar do seu suporte ou, pelo menos, da sua não hostilidade.


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