L'invention des sciences modernes
L'invention des sciences modernes
Isabelle Stengers (1995), Paris: Flammarion
As condicionantes sociais da ciência
Stengers começa por lembrar que a sociologia das ciências põe em causa a
tradicional separação entre ciências e sociedade. Esta inquietação do campo
científico repete uma outra inquietação, de 1962, quando Thomas Kuhn propôs a
categoria de ciência normal: o cientista prático não é a ilustração gloriosa
do espírito crítico e do racionalismo lúcido, cada paradigma determina as
questões legítimas e os critérios com que devem ser reconhecidas as respostas
aceitáveis. Porquê então o escândalo actual acerca da sociologia das ciências?
Kuhn não sublinhou a dimensão social das ciências ao mostrar que o cientista
deve ser descrito como um membro de uma comunidade e não como um indivíduo
racional e lúcido? (pp.11 e 12).
Kuhn e o conjunto dos historiadores internos desenvolvem o tema da grande
diferença dos últimos quatro séculos europeus, em que se criou a ciência
moderna. Segundo Kuhn, foi aqui que se realizou a condição da possibilidade da
ciência, ou seja, a existência de sociedades que dão às comunidades científicas
os meios de existir e de trabalhar sem interferência nos seus debates. Mas os
historiadores externos sublinham que outras condições singulares marcaram
esses quatro séculos, perguntando: a indústria, o estado, o exército, o
comércio, não entram verdadeiramente na história das comunidades científicas
senão apenas no duplo título de fontes de financiamento e de beneficiários da
produção? (p.18).
Vulnerabiblidade da ciência e o debate com terceiros
Uma condição da ciência moderna é a sua artificialidade. Por exemplo, a
velocidade dos corpos galileanos ' que é definida pela dinâmica clássica ' é
inseparável dos móveis que ela definiu, pertence unicamente aos corpos
galileanos, pois esses corpos, definidos pela existência dum dispositivo
experimental, permitem sustentar, face à multiplicidade de proposições rivais,
que essa velocidade é apenas uma maneira entre outras de definir o
comportamento desses corpos. Assim a abstracção é relativa à invenção duma
prática experimental ou artefacto de laboratório (p.99) que a distingue de
uma ficção entre outras ao criar um facto que singulariza uma classe de
fenómenos entre os outros (p.101). Repare-se no sublinhado da autora na
referência à invenção de uma prática experimental, que delimita uma certa
classe de fenómenos.
Mas a autora analisa as complicadas relações da ciência com os interesses
económico-sociais que actualmente a podem impulsionar: Entre a constituição de
um território disciplinar e a construção social de um mundo que permite aos
produtos da disciplina fazer história com os interesses sociais, económicos
políticos e industriais, a relação é ao mesmo tempo intensa e mascarada. A sua
vulnerabilidade situa-se assim face a uma multiplicidade de factores de
influência: as ciências não são, por destino, aliadas do poder, mas são, por
definição, vulneráveis a todos aqueles que podem contribuir para a criação de
diferenças, para a estabilização de interesses, para a desqualificação das
questões incómodas, para a facilitação da promoção dos laboratórios. Esta
singularidade põe o problema da sua coexistência com a de outros actores ( )
num mundo concebido como campo de manobra (p.144).
Daí também o risco do individualismo: o cientista escolhido pelo poder, aliás
mobilizado (ou seleccionado como representante legítimo de um problema,
linhas acima) ficará feliz e orgulhoso por se ver chamado como especialista
por um poder que o reconhece como único representante legítimo de um problema.
Poderá considerar que o essencial é que o valor da sua pesquisa seja
reconhecido e receba (enfim) o financiamento que merece (p.147).
Mas a discussão dos problemas com terceiros, numa postura clássica de distinção
entre sujeito(s) e objecto(s), aparece como processo de independência face ao
poder: O desafio que me proponho, o de desligar ciência e poder sem por isso
desligar ciência e polémica, pode ser posto em termos de distinção entre
sujeito e objecto, divisão clássica mas polémica (p.150). Ora, para a
autora, a singularidade das ciências modernas mantém essa distinção, porque é
dessa distinção que nasce o risco. Assim, já não se trata de superar o poder da
ficção ou invenção inerente às ciências modernas, trata-se sempre de o pôr à
prova, de submeter as razões inventadas a um terceiro susceptível de as pôr em
risco (p.151).
Como exemplo significativo a autora refere o campo da artificial life que
congrega uma multidão de cientistas muito diferentes, todos aqueles que
conseguem, através de técnicas recentes (robótica, simulação em computador)
capturar e reproduzir um traço de um ser vivo (p.155). Não se trata de reduzir
as alianças, mas de fazê-las proliferar e, correlativamente, tais alianças não
se passam no cume: nenhuma disciplina é rainha, lugar prometido onde a vida
se tornará objecto de ciência. Assim robóticos e simuladores interessam-se
apaixonadamente por tudo o que os etólogos sabem sobre tal traço do
comportamento, próprio de tal espécie, em tais condições ( ) (p.156)
Da ciência de laboratório à ciência de terreno: a controvérsia
Mas a autora sublinha que actualmente algo de diferente se passa por comparação
com o estudo do movimento por Galileu: entramos numa problemática própria das
ciências de terreno, que as distingue das ciências de laboratório. Não se
encontram aqui os dispositivos experimentais no sentido galileano, que dão ao
cientista o poder de pôr em cena a sua própria questão, isto é, de purificar um
fenómeno e de lhe dar o poder de testemunhar a esse respeito; os instrumentos
do naturalista ou do cientista de terreno dão-lhe a possibilidade de coligir
indícios que o guiarão na tentativa de reconstituir uma situação concreta, de
identificar relações, não de representar um fenómeno como uma função munida das
sua variáveis independentes. Além disso: nenhum terreno vale por todos ( )
aquilo que um terreno permite afirmar, pode um outro terreno contradizê-lo
(pp.156 a 159).
Em vez de juízos individualizados em laboratório, a análise é essencialmente
colectiva, os cientistas já não juízes, mas investigadores, as suas ficções
implicam intrigas cada vez mais inesperadas: verdade, realidade e pesquisa
entrelaçam-se mutuamente numa operação que cria narrativas onde antes
compreendíamos por discernimento (p.161).
Daí a controvérsia como condição da ciência moderna: é como cientistas que
aqueles que hoje tentam modelizar o efeito estufa, as consequências da
desflorestação, os efeitos da poluição, contribuem para incomodar os cálculos
político-económicos, pois os novos dados, apresentados pelos cientistas, já
não são provas estáveis, mas incertezas (p.163).
O homem e as suas paixões, medida de todas as coisas
O enunciado sofista de que o homem é a medida de todas as coisas é, assim,
uma caracterização da aventura humana que liga verdade e ficção, enraiza ambas
na paixão que nos torna capazes tanto da ficção como de pôr à prova essas
ficções (p.187). A invenção das ciências modernas exigiu um estilo de paixão
que faz do autor científico um híbrido singular, entre juiz e poeta. O
cientista-poeta cria o seu objecto, fabrica uma realidade que não existe
tal e qual no mundo, mas que é antes da ordem da ficção. O cientista-juiz tem
de conseguir fazer admitir que a realidade que ele fabricou é susceptível de
conter um testemunho fiável.
Por isso, os historiadores da ciência têm como princípio fundamental o de que o
conhecimento humano é constantemente transformado, são narradores que assumem a
evolução como condição essencial da ciência: A paixão dos narradores
darwinistas não faz deles nem poetas, no sentido de fabricantes, nem juízes,
nem profetas, mas torna-os vulneráveis à ironia, porque a medida das histórias
da Terra que eles aprendem a contar exige deles uma estética da contingência.
Assim, o historiador de ciência vive no inter-face da contingência da vida
humana e da exigência de rigor: o humor do narrador darwinista reside na
maneira como ele pode ao mesmo tempo dizer a contingência e a exigência não
contingente que o faz existir e o liga à aventura humana.
Finalmente, o humor não tem de ser somente muro protector das paixões
científicas, mas pode ser constitutivo dessas paixões. Assim, os cientistas
poderiam tornar-se medida de um devir que não autorize a separação entre
produção de saber e produção de existência. Porque é sem dúvida aqui que
convergem os dois sentidos do enunciado sofista, o que conjuga medida e
política e o que conjuga medida e devir. Nos dois casos, a ficção torna-se
vector de devir, e a diferenciação entre representação legítima e opinião, o
poder atribuído à verdade de vencer a ficção, torna-se o hábito de pensamento
que nós temos de aprender a pôr em risco. Nos dois casos, a nossa paixão
ocidental pela verdade exigirá dela que saiba separar verdade e poder, e saiba
ligar verdade e devir (p.189).
A qualidade democrática do debate científico
O cientista é, correntemente, mobilizado pelos poderes. A proposta da autora
é a de que a ciência actual deverá procurar desligar ciência e poder, sem por
isso desligar ciência e polémica, o que pode ser posto em termos de distinção
entre sujeito e objecto, como vimos. É que a invenção actual da ciência é de
base interdisciplinar e congrega uma diversidade de cientistas muito
diferentes, onde nenhuma disciplina é rainha e onde a relação entre
representação legítima e opinião é vista como um hábito de pensamento.
Essa tensão entre os pólos da representação especializada e o da opinião, que
se vive no âmbito de ciências de terreno como são fundamentalmente as actuais,
torna-se a proposta fundamental da autora, vista como um risco a assumir. Por
isso, sublinha uma inseparabilidade de princípio entre a qualidade
democrática do processo de decisão política e a qualidade racional da
controvérsia especializada (p.180). Por fim, lembremos que esta obra de
Stengers prenuncia a temática de uma outra obra posterior, de Latour (2004),
que recentemente recenseámos nesta revista: Politiques de la nature. Comment
faire entrer les sciences en démocratie.
José B. Duarte
j.b.duarte@netcabo.pt
Revista Lusófona de Educação
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