Editorial
Editorial
1. O Estado Novo desenvolveu, de forma sistemática, um processo de
desprofissionalização da actividade docente, retomando um discurso e uma
concepção de professor anterior à laicização e estatização do sistema de
ensino. A par de um apertado controlo da profissão docente nos campos
ideológico e político, mas também no plano privado da moral e dos costumes,
verifica-se durante os longos quarenta e oito anos de ditadura um acentuar da
concepção missionária do professor. No período de implantação do Estado Novo, a
proibição de todas as formas associativas e sindicais dos professores do ensino
público, o encerramento das escolas normais e a posterior diminuição da duração
e dos níveis de exigência de acesso, o recrutamento massiço de regentes
escolares para fazer face à expansão da escolarização primária, ou a
desqualificação salarial dos professores comparativamente a outros
trabalhadores da administração pública, ficam como exemplos dessa política de
desprofissionalização da actividade docente. No pós-guerra, essa política
manteve-se e alargou-se aos níveis de ensino pós-primário, ao permitir que a
natural expansão do ensino secundário verificada nos anos 1950 e 1960
assentasse no que então eram designados de professores eventuais e provisórios,
um exército de mão-de-obra barata, sem qualificações pedagógicas e com
condições de trabalho e de salário indescritíveis. No ano lectivo de 1972-1973,
na véspera da Revolução, apenas 13% dos professores do então ensino
preparatório do ensino secundário (5.º e 6.º anos) eram efectivos, ou seja,
pertenciam a um quadro de escola, enquanto que nos ensinos liceal e técnico-
profissional essa percentagem, ligeiramente superior, situava-se de qualquer
modo nos 33,8% e 17,8%, respectivamente.
A Revolução de Abril de 1974 significou um momento de ruptura, com profundas
repercussões na situação profissional dos professores.
A primeira e imediata consequência da Revolução foi a conquista de condições de
liberdade que permitiram a livre organização de associações sindicais de
professores, o que, num contexto de grande participação e intervenção cívica,
conduziu a importantes e rápidas melhorias no campo salarial e no estatuto
profissional. Nunca, em tão curto período de tempo, se verificaram tantas e tão
profundas mudanças na condição docente em Portugal.
A segunda consequência resultou da iniciativa tomada nos primeiros dias da
Revolução por parte da maioria esmagadora dos professores (e também dos
estudantes, no ensino superior) de afastar as antigas administrações das
escolas e liceus nomeadas pela ditadura, substituindo-as por comissões eleitas,
num processo de inequívoco recorte autogestionário. Apesar de todas as medidas
legislativas tomadas posteriormente, o actual modelo de gestão das escolas
básicas e secundárias em Portugal tem as suas raízes nesse processo único em
que a iniciativa da periferia se antecipou a qualquer decisão legislativa e
impôs práticas de participação e de representação democráticas singularíssimas
no contexto europeu.
A terceira consequência decorreu da prevalência de uma política educativa
centrada no objectivo da democratização do ensino, onde o princípio da
igualdade de oportunidades, de acesso mas igualmente de sucesso, se tornou o
elemento polarizador das políticas públicas. Num plano mais próximo, sublinhe-
se a criação do ensino secundário unificado, resultante da fusão entre os
correspondentes ciclos dos ensinos liceal e técnico-profissional, apresentado
como uma forma de romper a dualidade entre uma via nobre, frequentada com o
fito do ensino superior pelos jovens oriundos dos grupos sociais dominantes, e
uma via destinada a uma inserção precoce no mercado de trabalho, frequentada
esmagadoramente por jovens oriundos dos meios populares.
A forma como, em 1974, foi conquistado o direito de cidadania e se iniciou o
processo de profissionalização da actividade docente marca ainda hoje,
indelevelmente, a cultura profissional dos professores e a forma como estes se
relacionam com a administração da educação e os parceiros educativos. As
profundas alterações que o Ministério da Educação de Maria de Lurdes Rodrigues
pretende(u) impor em áreas como o Estatuto da Carreira Docente e a Gestão das
Escolas Básicas e Secundárias visam, em última instância, romper com essa
tradição ancorada no processo democrático que se seguiu à Revolução de Abril.
Tomando como justificação um discurso de racionalização e defesa da eficácia,
as medidas aprovadas vão todas elas no sentido do que o sociólogo inglês
Stephen Ball designa de performatividade competitiva, e que visam ampliar o
individualismo nos professores e destruir solidariedades baseadas numa
identidade profissional comum, onde a filiação sindical e a participação
associativa são elementos constituintes.
A resposta dada massivamente pelos professores neste início de 2008 (em
especial na imponente Marcha da Indignação de 8 de Março) a estes propósitos
ministeriais mostra que, apesar doar do tempo - este neoliberalismo que
atinge todos os sectores sociais -, se vislumbram condições para
equacionar uma outra política educativa, que não seja a mera adequação das
agendas das agências transnacionais globalizadoras (em particular da OCDE) e de
uma Comissão Europeia demasiado seduzida pelas soluções neoliberais, mesmo
quando elas começam a mostrar claros sinais de esgotamento. Era bom que alguns
sectores da esquerda institucional (e de governo) não se esquecessem que a
alternativa ao neoliberalismo passa, necessariamente, pelo reforço dos
movimentos sociais e a criação de um espaço público onde os cidadãos se possam
conceber, a todo o momento, "como os autores do direito ao qual estão
submetidos enquanto destinatários" (J. Habermas, Droit et
démocratie,Gallimard, Paris, 1997, p. 479). Esta construção de uma alternativa
é, como nos lembra I. Wallerstein, um exercício a realizar, simultaneamente,
nos campos da ciência, da política e da moral. Aqui estamos, no nosso campo, a
dar esse contributo.
2.O número que agora se apresenta é particularmente rico na análise crítica e
na criação de bases para a construção de uma alternativa radicalmente
democrática no campo das políticas públicas de educação.
No primeiro artigo, Construir a Europa através do Espaço Europeu de Educação, o
sociólogo britânico Roger Dale faz uma incisiva (e actualizada) análise da
relação entre a construção de um espaço europeu de educação e a construção da
"Europa" como entidade, defendendo que esse processo é
particularmente importante pelos efeitos que produz nas políticas educativas
dos Estados membros. No seu desenvolvimento, o artigo sugere que é possível
identificar três fases na construção das políticas educativas europeias: (i) o
estabelecimento da "qualidade", (ii) a afirmação da "soft
governance" (o Método Aberto de Coordenação) e (iii) a agenda da
Aprendizagem ao Longo da Vida, formatadas por mudanças nos contextos globais e
nas respectivas interpretações a nível europeu. Um artigo de leitura
obrigatória para a compreensão dos processos em curso no espaço europeu, cada
vez mais uma "normative area, pioneering a system of transnational
law" (Therborn, 2002: 15).
O segundo artigo, A Reestruturação do Modelo Nórdico de Educação, de Ari
Antikainen, discute o chamado modelo Nórdico ou o modelo de Estado-Providência
e a educação. Este artigo mostra como os processos de reestruturação estão
acontecendo a nível político e a nível institucional e, ainda, como é que as
estruturas básicas do modelo e exemplo nórdico, especialmente os princípios
subjacentes às comprehensive schools e às escolas locais, estão a ser
abandonados. Antikainen realça que as mudanças na política e nas formas de
organização ocorrem de forma muito mais rápida do que nos contextos sócio-
culturais, apontando exemplos de histórias de sucesso, como a reforma
dinamarquesa do mercado laboral e o crescimento do cluster finlandês do
conhecimento intensivo em TIC, como os principais responsáveis por essa
transformação. Por último, debate a possibilidade de uma estratégia de Estado-
Providência e de uma estratégia de Estado Competitivo poderem coexistir.
No terceiro artigo, Mercado,Performance, Accountability. Duas décadas de
retórica reaccionária na educação, o investigador francês Romuald Normand
reconstitui o percurso que, a partir dos EUA e do Reino Unido, tem sido seguido
nos últimos vinte anos de crítica à escola compreensiva e ao aparecimento do
modelo da escola eficaz (school effectiveness). Depois de uma análise detalhada
dos argumentos da direita conservadora americana, centrados na tese do declínio
da escola pública e condensados no documento da Presidência de George W. Bush,
No Child Left Behind, Romuald Normand suscita a reflexão sobre o papel dos
sociólogos da educação na compreensão da interacção dos vários agentes
educativos a uma escala globalizada e das implicações do novo espíritodo
capitalismo (Boltanski & Chiapello, 1999) nas políticas educativas. Uma
leitura obrigatória para todos quantos necessitam de fazer uma arqueologia dos
conceitos da moda, adoptados pelo discurso político dominante sobre a educação,
algumas vezes sem qualquer sentido crítico ou tomado como uma fatalidade a que
não se pode resistir.
No quarto artigo, Progressão continuada: por que a revisão dos ciclos?, Maria
Lúcia Vasconcelos discute uma das questões centrais nas políticas públicas do
ensino fundamental no Brasil (ensino básico em Portugal): a organização por
ciclos de aprendizagem (fases, na designação adoptada em Portugal). A autora,
que, durante cerca de um ano ocupou o cargo de Secretária de Educação do Estado
de S. Paulo, justifica a razão porque encurtou a duração dos ciclos de 4 para 2
anos. Sendo uma das medidas mais polémicas na educação brasileira (e não só!),
o contributo vivido de Maria Lúcia Vasconcelos é um bom contributo para um
debate que tem e deve ser feito, pois, como afirma, "a progressão
continuada, em que pese seus pontos positivos(...), não pode ser tomada como
sinônimo de não avaliação e, pior, de não aprendizagem".
O quinto artigo, Conselhos Escolares: análise de sistema municipal de ensino no
Brasil, de Flávia Werle e Alénis de Andrade, discute o perfil dos
representantes dos segmentos da comunidade escolar num município do sul do
Brasil, analisando as implicações decorrentes de sua diferenciação para a
dinâmica de funcionamento dos Conselhos Escolares. Com base no trabalho
empírico realizado, os autores registam que os indivíduos que já tiveram
vivência em Sindicatos, Entidades Comunitárias ou Partido Político respondem
mais ativamente a espaços de participação dentro da escola. Sublinhando essa
participação heterogénea, Werle e Andrade concluem que os Conselhos Escolares
são espaços de construção comunitária, de aprendizagem, de elaboração e de
acompanhamento da proposta da escola pública.
O sexto artigo, Do colo à construção da cidadania: por uma escola acolhedora,
de Óscar C. Sousa, apela aos educadores para adoptarem uma atitude terapêutica
expressa pelo acolhimento quando estão face a crianças com comportamentos
desviantes. O autor lembra que o desvio pode ser, eventualmente, manifestação
de um desequilíbrio de natureza afectivo-social que só pode ser restabelecido
por uma experiência positiva de segurança, de confiança e de partilha de
direitos e de deveres, para defender, em consequência, "uma escola com
missão terapêutica, capaz de reconstruir as identidades danificadas, porque uma
escola cidadãos para cidadãos", uma escola que assegure "um clima
de estado de direito" e garanta a todos um "caloroso
acolhimento".
No sétimo artigo, Estudos de caso em Educação. Investigação em profundidade com
recursos reduzidos e outro modo de generalização, José B. Duarte retoma uma
problemática que lhe é muito cara, defendendo o estudo de caso como alternativa
a estudos mais exigentes em recursos humanos e materiais, que pode ser seguida
por (jovens) investigadores com parcos recursos e, muitas vezes, trabalhando
sózinhos. Apoiando-se em Robert Stake e Robert Yin, o autor procura delinear os
procedimentos a seguir na adopção do estudo de caso em problemas educacionais,
e inclui, em complemento, as ideias-chave de alguns estudos de caso tal como
são inventariados por Yin. Trata-se de um excelente contributo metodológico,
sobretudo para os nossos jovens investigadores em processo de formação,
nomeadamente a nível de mestrado.
No oitavo artigo, As "intermitências da Morte": debate acerca do
direito à literatura lusófona no processo de alfabetização de jovens e adultos,
Nilce da Silva discute o direito à literatura lusófona, tomando Saramago como
exemplo, na formação de professores e na alfabetização de jovens e adultos por
meio de pesquisa-formação na cidade de São Paulo. Fruto de uma concepção de
universidade assente em três pilares básicos - "o pesquisar, o
ensinar e a possibilidade de devolver à sociedade o conhecimento produzido
nesta instância social" -, a autora rebela-se contra o uso
constante e inadequado de material infantil nos cursos com jovens e adultos,
afirmando a terminar o seu artigo: "ensinar com Saramago é uma forma de
valorização dos nossos alunos, pois ao invés de lerem textos infantis, escritos
para crianças entre seis e dez anos, estaremos alfabetizando com um texto de um
autor notório, valorizando a qualidade da língua portuguesa, com temática
apropriada, ou seja, que reflete o mundo subjetivo dos adultos, e estaremos
dizendo: vocês são capazes de ler e compreender um Prêmio Nobel".
O nono artigo, Vidas reconhecidas: o projecto de Educação e Formação de Adultos
na Câmara Municipal de Lisboa,de Alexandra Aníbal, Helder Touças, Luísa
Dornellas, Paula Morgadinho, Mafalda Seoane e Vanessa Veríssimo, descreve o
modo como, no município de Lisboa, se concretizou o Processo de Reconhecimento,
Validação e Certificação de Competências, processo em que são valorizadas as
competências adquiridas pelos adultos através da sua experiência de vida e de
trabalho, permitindo-lhes obter uma certificação equivalente aos diplomas
escolares oficiais. Sublinhando que as implicações se manifestam sobretudo a
nível individual, com a elevação da auto-estima e o conhecimento de si
próprios, os autores defendem que o Projecto constitui uma "janela de
oportunidade" para adultos há muito afastados do sistema de ensino
formal.
A secção Diálogos inclui uma interessante entrevista com o matemático Ubiratan
D'Ambrósio, Professor Emérito da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) e, actualmente, Professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC)
de S. Paulo. Na entrevista conduzida por Nuno Vieira, D'Ambrósio lembra
que há muitos modos de "comparar, classificar, quantificar, medir,
organizar e de inferir", construídos nos contextos culturais e de
trabalho pelos seres humanos. A Etnomatemática, movimento de que foi fundador
no Brasil, busca associar essa diversidade de contextos culturais, onde estão o
idioma, a música, a culinária, os costumes, à Didáctica da Matemática. Uma
entrevista a ler e debater por todos aqueles que procuram encontrar estratégias
que combatam o insucesso e o desinteresse dos jovens pela Matemática e que
defendem a criação das bases de uma Educação Multicultural.
Na habitual secção Recensão, incluem-se duas leituras críticas de obras muito
diferentes. Na primeira, Adriana Tenreiro apresenta (e descobre) o livro de
Immanuel Kant, Observations sur le sentiment du beau et du sublime,
originalmente publicado em 1764. Na segunda, Maria João Couto apresenta ao
público leitor de Português o livro de metodologia recentemente publicado na
Alemanha, Generalization in Qualitative Psychology(Verlag, 2007). Ambas as
recensões têm uma característica comum que a RLE tem incentivado desde primeiro
número: são apresentadas por estudantes de pós-graduação (mestrado e
doutoramento); neste caso, a primeira, é da Universidade Lusófona e, a segunda,
da Universidade de Vigo.
O número termina com três das suas habituais secções. Em Sítios Digitais, Vasco
B. Graça apresenta, desta vez, os blogs mais populares (em Portugal) no âmbito
da Educação. Em Notícias dá-se uma pequena ideia da multifacetada actividade
científica da UI&D Observatório de Políticas de Educação e Contextos
Educativos, o centro de investigação onde nasce a Revista. Por último, os
resumos das Dissertações de Mestrado em Ciências da Educação realizadas em 2007
na Universidade Lusófona.
Fazer (e afirmar) uma revista científica só é possível com muitas
cumplicidades, a começar pela confiança dos autores que submetem os seus
artigos para publicação. Aos nossos leitores habituais deixamos um desafio
nesta teia de cumplicidades: dêem-nos a conhecer a sua leitura crítica do
número que agora se torna público.
Aroeira, Abril de 2008
António Teodoro