Sangue e raiva: a cultura do terror
Sangue e raiva: a cultura do terror
António de Araújo
*
Michael Burleigh
Blood & Rage.A Cultural History of Terrorism
Londres,
Harper Press,
2008, 545 páginas
Escrever nos nossos dias um livro sobre terrorismo é um gesto audacioso.
Michael Burleigh teve essa coragem. De resto, não é a primeira vez que
Burleigh, um dos mais conhecidos historiadores da actualidade, se aventura por
caminhos há muito percorridos. Integrando-se na mais recente vaga da produção
historiográfica anglo-saxónica sobre a II Guerra Mundial, o autor já havia
escrito The Third Reich. A New History, queganhou em 2001 o Prémio Samuel
Johnson. Michael Burleigh, aliás, possui uma grande ligação à Alemanha, sendo
membro do Institut für Zeitgeschichte de Munique. Grande parte da sua obra é
dedicada à história desse país, sobretudo ao período do nazismo e, mais
particularmente ainda, à questão racial e ao genocídio do povo judeu.
Mais recentemente, deu à estampa Earthly Powers e Sacred Causes, duas obras
sobre as relações entre religião e política desde a Revolução Francesa aos
nossos dias. Porventura por ter sido o primeiro a ser publicado, Earthly
Powers, que cobre um arco temporal que vai de 1789 até à Grande Guerra, foi
aclamado pela crítica. Mas, em nosso entender, Sacred Causesé um livro muito
mais apelativo e susceptível de interessar o grande público.
E é ao grande público que se destinam os livros de Burleigh. Tal não significa
considerá-lo um «vulgarizador» no pior sentido do termo. Mas é inquestionável
que os seus volumosos livros (este Blood & Rage tem 545 páginas) são
concebidos com um propósito, por assim dizer, «comercial» e são escritos para
cativar os leitores, terreno em que Burleigh se revela excepcionalmente dotado.
A sua prosa é, de facto, extremamente sedutora, não só pelas qualidades da
escrita, pela capacidade que o autor revela em descrever uma situação complexa
num simples parágrafo, mas também porque Burleigh encontra detalhes e faz
cruzamentos inesperados de factos aparentemente sem qualquer ligação entre si.
Este programa, naturalmente, comporta riscos. O primeiro deles, claro está,
reside na simplificação por vezes excessiva dos seus trabalhos, todos ou quase
todos dedicados a «grandes questões» (a Prússia, a Alemanha nazi, religião e
política, terrorismo). Mas em lugar algum se pode dizer que Burleigh ceda ao
facilitismo ou sacrifique o rigor dos factos à elegância da escrita. O que pode
dizer-se, isso sim, é que os livros de Burleigh ' e refiro-me em particular a
Sacred Causes e a Blood & Rage ' possuem uma estrutura interna linear e
«límpida» mas evitam qualquer análise global do tema sobre o qual incidem. Em
Sacred Causes, por exemplo, encontramos páginas apaixonantes sobre o misticismo
na Alemanha em crise do primeiro pós-guerra, mas não temos uma interpretação
global da questão das relações entre política e religião no século XX. Tal como
não existe em Blood & Rage uma digressão teórica sobre o fenómeno do
terrorismo. É o leitor que, por indução, é convocado a fazer esse trabalho ' o
que nem sempre constitui uma tarefa fácil.
O QUE É O TERRORISMO?
No caso de Blood & Rage, Burleigh fornece na primeira página uma definição
de terrorismo e não vai mais além. «Terrorism is a tactic primarly used by non-
state actors, who can be as acephalous entity as well as a hierarchical
organisation, to create a psychological climate of fear in order to compensate
for the legitimate political power they do not possess» (p. IX). O prefácio,
onde se contém esta definição, possui não mais do que três páginas. Aí, existem
frases de efeito poderoso: «If you imagine that Osama bin Laden is going to
evolve into Nelson Mandela, you need a psychiatrist rather than an historian.»
Ou: «the millieu of terrorists is invariably morally squalid, when it is not
merely criminal.»
De seguida, Burleigh apresenta, numa vertiginosa sequência, diversos casos: os
terroristas irlandeses do princípio do século XX, os niilistas e os
revolucionários russos, os anarquistas, as lutas de libertação nacional e, numa
das partes mais felizes do livro, o crescimento da «internacional do terror»
(para usarmos uma expressão famosa de Claire Sterling), o terrorismo «juvenil»
das Brigate Rosse e do Rote Armee Fraktion, concluindo, obviamente, pelo
terrorismo islâmico. Não há, todavia, um fio condutor entre os diversos
capítulos, como não há uma explicação convincente para o autor ter escolhido
estes casos, mas omitindo outros, como os Tupamaros e as FARC, a guerrilha
urbana na América Latina ou os tamil do Sri Lanka. E, por outro lado, se
Burleigh considera que o terrorismo é, por natureza, uma realidade alheia ao
Estado, ficam por explicar muitas das atrocidades perpetradas pelos franceses
na Argélia, que aqui são descritas de forma notável. É certo que, para
explicações teóricas, até excessivamente teóricas e demasiado conceptuais,
possuímos livros como Inside Terrorism(1998), de Bruce Hoffman, só para citar
um caso entre a inabarcável literatura. É certo, também, que outras obras, como
o estudo clássico de Walter Laqueur, abriram pistas que não necessitavam ser
aqui repisadas. Mas não pode deixar de se reconhecer que, para uma compreensão
global do terrorismo, o contributo deste livro é manifestamente pobre. Para
mais, o subtítulo, «A Cultural History of Terrorism», firma um compromisso com
o leitor que de forma alguma é cumprido nestas mais de quinhentas páginas.
Desengane-se quem procure encontrar nesta obra uma história compreensiva da
«cultura do terrorismo». O que temos, isso sim, são «casos», apresentados de
forma cumulativa, mas sem que do conjunto possamos concluir, no final, pela
existência de uma percepção mais rica da evolução do terrorismo enquanto
fenómeno cultural. Aliás, dando prevalência a descrições factuais, a recriação
da «cultura» em que emergem determinados fenómenos terroristas ' e até do
«apoio» que os terroristas beneficiam de muitos caracteres da cultura dominante
' sai claramente relegada para um plano secundário.
Encerrado o livro, o leitor é, assim, forçado a fazer por si o trabalho que o
subtítulo da obra anunciava e prometia. Por outras palavras, caber-lhe-á
reconstruir, a partir do que leu, uma «teoria geral do terrorismo», tarefa que
se revela francamente difícil, até pela profundidade que Burleigh dedica a cada
um dos casos que descreve ' mais do que analisa, insista-se. O motivo pelo qual
Osama bin Laden nunca será um Nelson Mandela é algo que este Blood & Rage
não permite descobrir. O livro termina algo abruptamente, sem uma conclusão
geral ou um ensaio de síntese. A descodificação de um fenómeno tão complexo e
plurifacetado como o terrorismo é fornecida, de forma muito aproximativa,
apenas nas primeiras três páginas do prefácio, e mais com finalidades de
delimitação do objecto de estudo do que de interpretação do mesmo.
Este será, porventura, um juízo demasiado severo relativamente a um livro de
excepcional qualidade e a um autor que já nos deu obras tão fascinantes como
Sacred Causes. Na verdade, há algo que até certo ponto redime Blood & Rage
das óbvias fraquezas atrás recenseadas: os extraordinários dotes de Burleigh
como narrador de factos. Estamos, sem dúvida, perante um dos mais talentosos
«cronistas» da historiografia contemporânea, cujas obras possuem uma
«orientação» que se pressente a cada parágrafo mas que contêm igualmente uma
qualidade de «escrita da História» que as converte em objectos
extraordinariamente atraentes para o leitor. Por muitas obras que tenhamos lido
sobre a Argélia, as páginas que Burleigh lhe dedica oferecem, se não um novo
olhar, pelo menos uma nova forma de olhar ' e uma forma altamente sedutora.
Compare-se, por exemplo, um clássico como A Savage War of Peace, de Alistair
Horne, e este livro de Burleigh: é forçoso concluir que a leitura do segundo é
muito mais atraente.
A NECESSIDADE DE «REGRESSAR AOS FACTOS»
Por outro lado, a proliferação em massa de obras interpretativas ou
«teoréticas», ocorrida no rescaldo do 11 de Setembro, e a desigual qualidade
das mesmas, tornava necessário um «retorno aos factos». Um regresso ao passado,
feito de um modo límpido e cristalino, ainda que envolto numa prosa que visa
nitidamente apresentar um «estilo». Daí o interesse deste livro. Se aqui é
difícil receber respostas sobre o que é o terrorismo, obtém-se ' o que não é
pouco ' uma narrativa apaixonante de alguns percursos do terror no século XX. A
pertinência da selecção desses caminhos poderá ser impugnada, sem dúvida. Mas,
uma vez entrados neles, dificilmente abandonaremos os trilhos por onde Michael
Burleigh nos guia e conduz. Esse é o grande mérito de Blood & Rage. Numa
altura em que já quase nada de novo haverá a dizer sobre o terrorismo, em que a
frequência das «análises» se torna insuportável, eis que surge um livro de
certo modo «novo» e refrescante. A capacidade que Burleigh tem de nos
surpreender em cada linha da sua escrita é surpreendente e inesgotável. Por
detrás de cada capítulo, há um árduo trabalho de investigação ' algo que fica
patente na história do III Reich e em Sacred Causes, porventura de forma até
mais vincada do que em Blood & Rage. Não nos encontramos perante um
vulgarizador simplista, mas ante um historiador com uma rara capacidade
expositiva, ainda que ideologicamente «orientado». Mesmo aí, todavia, Burleigh
consegue ser mais subtil ou contido do que um Paul Johnson, por exemplo (e só
para citar o nome de outro grande narrador da História).
Em suma: se o leitor preferir «análises» ou «ensaios», na generalidade dos
casos superficiais e efémeros, opte por outras obras. Ao invés, se quiser
conviver com o terrorismo de um modo informativo e, até certo ponto,
«atraente», este é um livro que se recomenda sem quaisquer hesitações.
Indubitavelmente, um grande livro de História.
*
Jurista. Assistente da Faculdade de Direito de Lisboa e consultor para
assuntos políticos na Presidência da República. Autor de vários estudos sobre
história contemporânea portuguesa, entre os quais Jesuítas e Anti-Jesuítas no
Portugal Republicano (2005) e A Lei de Salazar (2007).
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