Para que serviu o Plano Marshall?
Para que serviu o Plano Marshall?
Álvaro Garrido
*
Maria Fernanda Rollo
Portugal e a Reconstrução Económica do Pós-Guerra. O Plano Marshall e a
Economia Portuguesa dos Anos 50
Lisboa,
Instituto Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Col. «Biblioteca
Diplomática», 2007, 730 páginas
Se fosse necessário nomear dois episódios de história portuguesa das relações
externas capazes de persuadir que a memória colectiva carece da memória
histórica (da história laboriosamente investigada, debatida e publicada, a
exemplo do livro em epígrafe) para corrigir as versões mais ou menos
espontâneas do passado que as sociedades sempre tecem de si próprias, bastaria
evocar duas «ideias feitas» sobre o nosso passado recente, que este e um
anterior livro de Fernanda Rollo desmentem com argumentos convincentes: 1) a
ideia, aliás dominante até aos anos 90 do século XX, de que Portugal não
participou no Plano Marshall nem tão-pouco beneficiou de qualquer ajuda
financeira americana após a II Guerra Mundial; 2) a noção, mais recente e em
parte alimentada pela historiografia económica e das relações internacionais,
segundo a qual, ao arrepio da imagem isolada, auto-suficiente e antieuropeia
que o Estado Novo projectou de si mesmo, afinal foram os próprios governos de
Salazar que iniciaram o processo de integração de Portugal na Europa,
precisamente porque o envolvimento do País na ajuda Marshall a tal obrigou.
Contraditórios, estes ardis da memória (ou melhor, do esquecimento) são dois
dos problemas mais relevantes que este volumoso livro, resultante da
dissertação de doutoramento da autora, defendida em 2005, permite debater. Não
por acaso, na sólida introdução com que abre a síntese, Fernanda Rollo toma
como ponto de partida os «desencontros da memória» ' assim lhes chama. E com a
mesma questão fecha as conclusões finais.
A título de começo, o livro recupera a principal conclusão que a autora
estabelecera na sua tese de mestrado, publicada em 1994[1]: a persuasiva
demonstração de que Portugal «participou mesmo da ajuda americana concedida aos
países da Europa Ocidental a seguir à II Guerra Mundial». Dada a persistência
no tempo da ideia contrária, afinal em tudo semelhante à opinião que o ministro
dos Estrangeiros português, Caeiro da Mata, expressou em Paris a 22 de Setembro
de 1947[2], recusando peremptoriamente a oferta que o general George Marshall
anunciara em Harvard a 5 de Junho, teria sido oportuno aprofundar esse exame
crítico da memória e esclarecer as razões pelas quais, não obstante a
propaganda, segundo a opinião comum Portugal não participou no Plano Marshall
porque «Salazar recusou o dinheiro americano».
COOPERAÇÃO NÃO É INTEGRAÇÃO
Começando por vincar as conclusões axiais da sua tese de mestrado e
aprofundando a análise que antecipara num artigo publicado em 1998[3], Fernanda
Rollo explica que, de acordo com a leitura pragmática de Salazar, os movimentos
de cooperação económica resultantes da participação de Portugal no European
Recovery Program (ERP) (designação formal do Plano Marshall) foram apenas isso
mesmo ' cooperação para fins económicos, expressa na adesão à Organização
Europeia de Cooperação Económica (OECE), em 1948, e à União Europeia de
Pagamentos, em 1950. Nunca uma efectiva integração.
A distinção não é meramente semântica, embora possa ser útil para combater o
entusiasmo dos autores que vêem na adesão de Portugal à OECE, à EFTA, em 1960,
e no próprio acordo comercial celebrado com a cee, em 1972, actos precursores
de uma integração europeia supostamente compatível com o regime autoritário e
colonial. A este propósito, são muito claros alguns escritos do embaixador Ruy
Teixeira Guerra, em especial a conferência «Cooperação económica europeia»,
proferida em 1959 e entretanto publicada numa preciosa antologia organizada por
Nuno Valério[4].
No termo da II Guerra Mundial, os movimentos de exportação de capitais
americanos para a Europa organizados por iniciativa política norte-americana
tinham vários precedentes. A principal novidade do Plano Marshall consistia na
escala da ajuda financeira e na obrigação de os países aderentes cumprirem as
regras de administração da ajuda no âmbito de uma organização multilateral
europeia que implicava compromissos inéditos de cooperação técnica, económica e
política.
O objecto da obra em apreço reside no «estudo da participação de Portugal no
European Recovery Program [ ], observado no contexto geral da economia
portuguesa do pós II Guerra Mundial» (p. 21). Mais do que reconstituir o
«contexto» externo e interno em que Portugal acabou por solicitar a ajuda
Marshall, questão de que já se ocupara no seu primeiro livro sobre o tema, a
autora propôs-se continuar o caminho e, em sede de doutoramento, «estudar a
natureza e a forma como foram utilizadas as verbas concedidas ao nosso País no
âmbito do ERP e tentar avaliar a sua influência no percurso da economia
portuguesa do pós-Guerra» (p. 24). Como salienta, no termo da guerra diversos
observadores internacionais notaram bem o principal paradoxo da economia
portuguesa: o país enriquecera muito mas crescera pouco. Realidade que se
transformou em problema quando uma crise externa de pagamentos denunciou a
relativa inutilidade das reservas de ouro e divisas acumuladas por meio de
negócios de guerra.
Partindo deste retrato geral das vicissitudes que a «neutralidade colaborante»
trouxe à economia e finanças portuguesas, Fernanda Rollo convida o leitor para
uma viagem audaz. O itinerário de pesquisa implicava estabelecer a perspectiva
de que o estudo da aplicação do Plano Marshall em Portugal não se deve limitar
à determinação dos seus montantes em termos financeiros, nem apenas atender às
consequências que daí resultaram. No essencial, Rollo optou por um estudo de
fôlego, exaustivo ou mesmo totalizante ' a investigação foi conduzida no
sentido de «procurar tudo», adverte o leitor na introdução. A sua pesquisa foi
votada à análise dos impactos do auxílio americano sobre as políticas
económicas adoptadas em Portugal no pós-guerra e sobre a própria evolução da
economia portuguesa no correr dos anos de 1950.
Quase espontaneamente, este largo programa de investigação permite-nos
compreender a importância do Plano Marshall no processo de transição da
«economia de guerra» em que o País se habituou a viver entre 1939 e 1947 e a
«economia de paz» que a aplicação dos fundos americanos ajudou a estabelecer
nos anos seguintes. Análise que a primeira parte do livro, «As heranças da
guerra», oferece ao leitor de maneira clara e percuciente. Entre outros
caminhos de análise, a autora revisita o património de ideias políticas e
económicas de Salazar ' o autoritarismo antidemocrático e antiliberal, o
corporativismo teórico, o dirigismo prático e instituído e uma certa autarcia,
necessariamente avessa à cooperação internacional, mesmo que estritamente
económica.
AS HESITAÇÕES DE SALAZAR
Volvido este enquadramento, Fernanda Rollo coloca em evidência as hesitações do
chefe do Governo perante a ordem internacional que emerge da II Guerra Mundial.
Articulando com mestria a moldura externa e as vicissitudes da política interna
salazarista, que em 1947 e 1948 ainda se prendiam muito à «questão dos
abastecimentos», examina detidamente a passagem do «industrialista» Daniel
Barbosa pela pasta da Economia, cuja acção se pautou pela execução de uma
política de conjuntura, destinada a romper o círculo vicioso da escassez de
bens de consumo e da alta dos preços em geral. Evidenciando um sólido domínio
das fontes e dos métodos da crítica histórica, Fernanda Rollo termina o balanço
das heranças da guerra fazendo prova dos efeitos conjunturais da crise de
pagamentos que atinge Portugal nos inícios de 1948.
Inesperadamente, a crise financeira precipitou a «cambalhota diplomática» de
Salazar ' a viragem para a solicitação desesperada da ajuda americana, que uma
vez concedida permitiria obter os dólares necessários ao reequilíbrio da
balança de pagamentos portuguesa e às próprias tarefas de estabilização
económica e social. Não se limitando a descrever, a autora realça o sentido
ambivalente desta inflexão de política: a um tempo, assistia-se a uma abertura
de Portugal ao sistema económico e financeiro internacional do pós-guerra e a
um esforço de cooperação nas respectivas instituições, em especial na área do
comércio e dos pagamentos; por outro, fiel ao seu ideário e ao pragmatismo
cautelar a que acostumara a nação, Salazar promove o retorno a políticas de
substituição de importações de sugestão autárcica e admite a necessidade de
revitalizar a «economia corporativa».
Assente numa perspectiva de história institucional, o livro em debate examina
este corpo de hesitações a dois níveis: no campo da política externa e no plano
das políticas económicas, domínios indissociáveis quanto se trata de
compreender uma viragem de ciclo ditada por um tremendo conflito militar que
transformou o sistema internacional.
As circunstâncias da adesão de Portugal ao ERP vieram abalar algumas certezas
de Salazar em matéria de política económica. A propósito, fica claro o refluxo
conjuntural do «industrialismo» ' quer enquanto o Plano Marshall funcionou como
«plano director» da economia portuguesa, entre 1949 e 1952, quer nos anos
subsequentes da década de 1950.
Suficientemente densos e complexos, estes roteiros de análise conduzem o leitor
para o debate de uma outra questão, aliás central nas problemáticas do livro.
Embora subsidiária das anteriores, trata-se de uma pergunta que conjuga a
curiosidade histórica com um problema historiográfico mais espesso, já colocado
em relação a diversos países que participaram da ajuda Marshall e mesmo em
relação à Europa Ocidental como um todo: em que medida as autoridades
portuguesas souberam aproveitar o Plano Marshall, potenciando as suas
possibilidades?
Embora delimitados com clareza, estes propósitos analíticos ' muito relevantes
para a historiografia portuguesa e internacional, pese as diminutas
possibilidades de estabelecer comparações internacionais, como a autora
justifica ' e, mais ainda, o desenrolar da síntese, acabam por frustrar a
possibilidade de esclarecer um problema nitidamente articulado com a agenda de
pesquisa do livro. Refiro-me ao estudo dos impactos sociais da ajuda Marshall;
à presumível importância da «ajuda directa» e «indirecta» na imposição das
chamadas políticas de estabilização económica (e social, repita-se) do regime
ditatorial, cujas práticas persistiram por toda a década de 1950, coabitando
com as renovadas políticas de fomento agrícola e industrial, que Fernanda Rollo
analisa em profundidade. Tratar-se-ia de construir um capítulo final,
necessariamente fértil em diálogos com a história política e social do Estado
Novo, capaz de fechar o estudo do impacto do Plano Marshall em Portugal com um
ensaio sobre os usos políticos da ajuda americana. Tal exercício poderia aditar
à historiografia do período salazarista ' em particular às sínteses
referenciais de Fernando Rosas ' alguns argumentos explicativos da construção
política dos «anos de chumbo» que foram os de 1950.
O exemplo mais saliente desta omissão reside, a meu ver, no capítulo quarto da
segunda parte ' «A ajuda directa, ou como financiar um programa de
importações». Fica claro que a maior parcela da «ajuda directa» atribuída a
Portugal no âmbito do ERP (cerca de 50 milhões de dólares, no total) foi
empregue na compra de bens de consumo. Isto é, de acordo com as orientações de
Salazar, serviu para fazer «comércio de Estado», privilegiando a aquisição de
bens alimentares no sentido de aumentar os níveis de oferta no mercado interno
e, com certeza, para acalmar crispações sociais. Os processos negociais e o
aproveitamento da «ajuda directa» por sectores e ramos de actividade económica
são-nos descritos com extraordinária clareza e rigor. Pouco ficamos a saber,
porém, sobre a acção do Fundo de Abastecimento e acerca das relações entre a
política de preços do Estado nos anos de 1950 ' sempre conduzida pelo próprio
Salazar ' e a aplicação da «ajuda directa» do ERP.
O capítulo oitavo (e último) da segunda parte do livro, em especial o trecho
que se socorre da metáfora de «o pão e a enxada» ' uma espécie de parábola que
Salazar usa num discurso de 1950 para recordar ideias simples de «economia
política» ' procede, todavia, a algumas análises neste campo. Nele se
descrevemas formas de aproveitamento da ajuda americana e nele se analisam os
destinatários das verbas Marshall. Os dados quantitativos reunidos nas tabelas
apresentadas são muito esclarecedores. Fazendo uso do discurso económico
emitido pelo Governo e de informação vertida numa série imensa de metafontes
(relatórios, estudos e memorandos), Fernanda Rollo não evita a questão crucial
do capítulo: avaliar a importância da adesão de Portugal ao Plano Marshall na
abertura do ciclo de «crescimento económico moderado» que pautou os anos de
1950. Ciclo que havia de prosseguir, a ritmo mais acelerado, na década
seguinte. Não apenas a título de curiosidade, seria interessante que um
historiador economista se desse ao exercício de medir o real impacto da ajuda
Marshall na trajectória de relativa convergência económica que Portugal
evidenciou até 1973. A informação reunida neste livro facilitará muito a
tarefa.
UM IMPACTO EMINENTEMENTE CONJUNTURAL
É provável que as opções analíticas de Fernanda Rollo, privilegiando as
políticas públicas e o discurso económico (não propriamente a economia),
induzam o leitor na ideia de que o Plano Marshall teve, entre nós, uma lógica
de aplicação auto-suficiente. O facto de Portugal ter sido dos países que, em
termos absolutos, menos beneficiou do auxílio Marshall (51,2 milhões de
dólares, a preços correntes) não diminui, antes amplia, a profundidade dos
impactos da ajuda americana na «economia nacional» e no próprio processo de
desenvolvimento económico português. O livro não deixa dúvidas sobre a natureza
eminentemente conjuntural do impacto económico dos capitais americanos.
Menos tangíveis e mais estruturais terão sido os efeitos de formação e
«cultura» resultantes do envolvimento português em todo o processo, em
particular na planificação de investimentos. Como salienta a autora, antes de
mais «o processo de candidatura às verbas do ERP obrigou o governo português a
estruturar um programa económico projectado a quatro anos» (p. 675), um
compromisso multilateral inédito ao nível do planeamento económico, da partilha
de estatísticas e da própria formação de quadros.
Apoiando-se em remissões bibliográficas e conceptuais bastante oportunas, esta
edição acaba por exprimir as vantagens e desvantagens da publicação de teses de
doutoramento que, por extensas e empiricamente densas, só poderão resultar num
«livro de história» acessível ao leitor comum caso o original seja amplamente
adaptado. Não foi essa a opção da professora Fernanda Rollo, nem me parece que
seja essa a linha orientadora da colecção «Biblioteca Diplomática» do
Ministério dos Negócios Estrangeiros, que já conta com uma série notável de
títulos publicados.
Considerando a qualidade do trabalho em apreço e a conveniência da partilha de
informação inédita com o leitor especializado, julgo que a dimensão e estrutura
do livro acabam por se justificar. Por indispensável a vários domínios de
investigação e por muito útil a diversos perfis profissionais, esta obra
constitui um precioso instrumento de consulta para historiadores, diplomatas e
economistas. Pela sua extensão e diversidade de fontes consultadas, dadas as
exigências hermenêuticas que a pesquisa colocou à autora, estamos perante uma
tese «performativa», difícil de replicar nos padrões mais recentes da
investigação académica. A variedade de arquivos portugueses e estrangeiros
consultados, nomeadamente em Paris e Washington, permitiu a recolha e
sistematização de uma série extraordinária de fontes cuja identificação e
consulta poderão alimentar outros projectos científicos.
Entre os arquivos portugueses da administração central cujos organismos mais
exprimem o envolvimento no Plano Marshall, importa realçar os fundos
documentais da Comissão Técnica de Cooperação Económica Europeia, um espólio
que hoje se encontra devidamente preservado e disponível para consulta no
Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Num tempo (ou num momento?) em
que a historiografia do século XX português, em especial a «História do Estado
Novo», acusa dificuldades de adaptação às agendas transnacionais de
investigação em ciências sociais e vai perdendo autonomia crítica na formulação
de problemas de investigação, o presente livro pode ser muito inspirador.
Poderá inspirar projectos académicos mais audazes e conjugar temas de «história
nacional» com problemáticas relevantes para o mercado editorial da
historiografia europeia e norte-americana.
[1] ROLLO, Maria Fernanda ' Portugal e o Plano Marshall. Da Rejeição à
Solicitação da Ajuda Financeira Norte-Americana (1947-1952). Lisboa: Editorial
Estampa. Trabalho distinguido nesse mesmo ano com o Prémio de História
Contemporânea Victor de Sá, instituído pela Universidade do Minho.
[2] «As felizes condições internas de Portugal permitem-me declarar que o meu
País não precisa da ajuda financeira externa» [ROLLO, Maria Fernanda ' Portugal
e o Plano Marshall. Da Rejeição à Solicitação da Ajuda Financeira Norte-
Americana (1947-1952), p. 147].
[3] «Salazar e a Construção Europeia». In Penélope,N.º 18, pp. 51-76.
[4] Ruy Teixeira Guerra. Lisboa: Edições Cosmos, Col. «Diplomatas Portugueses»,
2000, pp. 71-93.
*
Docente da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e investigador do
CEIS20.
Rua Dona Estefânia, 195, 5 D
1000-155 Lisboa
Portugal
ipri@ipri.pt