PALOP: de Copenhaga a Inhambane, um itinerário atulhado
PALOP: de Copenhaga a Inhambane, um itinerário atulhado
René Pélissier *
Generalidades e Reagrupamentos
Comecemos por um livro intimidante
1
. E porque é que intimida? Pelo seu volume. Pela extensão da ambição do autor e
também pela sua personalidade conflituosa. Militante antimarxista, muitas vezes
ostracizado por numerosos africanistas universitários, minimiza certos aspectos
das colonizações europeias e recorda, pelo contrário, que não foram unicamente
predadoras. Evidentemente, denuncia os que persistem, contra todas as
evidências, em negar o factor étnico e o tribalismo em África. Tem, em geral,
um espírito claro e um estilo de fácil leitura. Por falta de espaço,
limitar‑nos-emos aqui ao período contemporâneo (até 2008), às poucas páginas
que dedica a Portugal e a Espanha. «Quem muito abarca pouco aperta»,
inevitavelmente. E as suas fontes, neste domínio, nem sempre são fiáveis. Por
exemplo: Silva Porto nunca atingiu, pessoalmente, o oceano Índico.
Estranhamente, consagra uma página a Serpa Pinto, mas não tem absolutamente
nada a dizer acerca da conquista portuguesa de 1885 a 1915, ainda que nos cite
de passagem. Atribuir 59 páginas à França em África (1885‑1914) justifica-se,
devido ao público a que se destina. E por isso também dedica 28 páginas à
Alemanha, de quem é fervoroso admirador. Mas apenas quatro páginas e meia
dedicadas a Portugal mostra que não se livrou ainda de um certo desdém pelas
colonizações pobres, mas não secundárias. Curiosamente, e tendo em conta as
suas posições políticas, limitar a três páginas e meia a descolonização
portuguesa (contra cinco e meia para a espanhola) parece-nos insuficiente.
Em compensação, as secções referentes a Angola e Moçambique após a
independência são bem mais sóbrias e factuais, mas a inversão de cinco-seis
páginas na impressão dos dois textos torna a sua leitura difícil, quase
incompreensível para um não especialista. Escreve que 400 (?) europeus foram
massacrados, a 21 de Outubro de 1974, em Moçambique. Ainda mais surpreendente,
vindo da sua pena, lemos, incrédulos, que as forças do mpla (as fapla) tomaram
Mavinga em Dezembro de 1987, o que é falso, e duplamente espantoso da parte de
um admirador dos boers e do Exército da África do Sul. Na verdade, se tivesse
redigido mais lentamente esta obra, útil no seu princípio, teria podido ocupar
um lugar de primeiro plano no género «grande síntese» da história de África.
Que não tenha um único dado sobre as perdas portuguesas registadas durante a
Guerra Colonial não agradará, tão-pouco, ao autor que se segue nem,
evidentemente, a algumas centenas de milhares de antigos combatentes lusófonos
que revisitem as suas memórias feridas.
A macrocompilação de José Brandão
2
tinha um objectivo simples: estabelecer, ano após ano, de 1961 ao 25 de Abril
de 1974, um máximo de datas marcantes da Guerra Colonial e indicar os nomes dos
soldados mortos (em acidentes ou em combate), as unidades às quais pertenciam,
a sua patente, o dia do falecimento e o seu local de nascimento. O problema com
este livro é que não utilizou todas as fontes oficiais tornadas públicas. Desde
logo, dos 8831 mortos oficialmente reconhecidos (número que nos parece, desde
já, discutível), o autor conseguiu apenas identificar pouco mais de três mil
nomes, o que é totalmente insuficiente. Além disso, temos as maiores reservas
em relação ao número de "mais de 800 mil metropolitanos" enviados para África,
mas o autor não é responsável por ele. Foram os serviços do Estado-Maior que
lançaram esta estatística fantasma, que poderá ser reduzida a partir do momento
em que os militares forneçam a lista nominal de todos os soldados da metrópole
realmente embarcados. Teremos surpresas. Mas será que as queremos? Talvez já vá
sendo altura.
Desejamos agora uma descida de tensão, talvez uma anomalia recreativa? Quando
um historiador descobre um romance susceptível de lhe trazer elementos
sociológicos ou uma cor local, como uma intriga que ponha em cena personagens
emblemáticos, não sabe onde a sua curiosidade o conduzirá. A ficção de Aurore
Costa
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, mestiça residente em França, com duas avós originárias de Angola e de
Moçambique, à partida anunciar-se-ia promissora.
Mas a história, não datada nem localizada, fala de um confronto entre uma
sociedade africana, com os seus feiticeiros, e os colonizadores portugueses, de
amores multi-raciais contrariados e de muitas outras coisas provavelmente
tiradas de um contexto histórico impreciso mas lusófono (pelo menos em parte).
É necessário ser mais sagaz que Sherlock Holmes para explorar este romance.
Ao invés, eis outro que agradará aos amantes de super-heróis. Mais importante
ainda é que é palpitante do início ao fim. Concebido por um médico americano,
antigo boina verde no Vietname, depois alistado na Rhodesian Light Infantry, é
o texto de um anticomunismo encarniçado, uma luta vitoriosa contra as "forças
do Mal".
A vantagem do romance para nós é que tenta apoiar-se numa cronologia, ainda que
algumas vezes deficiente ou insuficiente, e em experiências vividas e de
seguida reinventadas e embelezadas. Vemos então, nesta história-ficção, o nosso
herói americano bater-se em Angola (pp. 115-199) onde, sozinho, pulveriza um
campo de soldados cubanos em 1975, em nome da FNLA e, por isso, contra o MPLA.
Esqueçamos os erros e as inverosimilhanças e reencontremos este Rambo
inoxidável junto dos rodesianos, intervindo em Moçambique onde funde as
lembranças de operações em que participou, contra a ZANLA de Mugabe e a FRELIMO
(Outubro de 1976). Transferido para os Selous Scouts, a ponta de lança dos
rodesianos, torna-se um mito invencível, inacessível ao medo e à piedade. O
interesse do livro reside, portanto, na centena de páginas que nos permitem ver
como funcionavam as tropas rodesianas a leste da sua fronteira. Mas Keith A.
Nelson
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deixa-se levar demasiado pela sua imaginação se nos quer fazer crer que
realizou operações na Tanzânia e em Cabo Delgado contra a ZANLA, que ainda
está, aliás, por provar que tenha tido comandos militares soviéticos, em
Moçambique.
Equatoria
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apresenta-se, também, como um romance mas é, em vez disso, um relato de viagem
apaixonante e original de um escritor reconhecido. O argumento do autor é a
reconstituição literária das viagens e da vida de Savorgnan de Brazza e de
Stanley, seguindo mais ou menos o equador. Segue os passos do franco-italiano
em São Tomé em 1885, "um inferno esclavagista" na época e, em Fevereiro de
2006, um refúgio para os antigos "mercenários Buffalos" de Pretória. Visita-os
a eles e à poetisa Alda Graça. Stanley condu-lo pela mão em Luanda, onde o
olhar cínico do viajante pousa sobre o Carnaval, sobre Pepetela e sobre Manuel
Rui (de quem recorda o passado de procurador no processo dos mercenários
anglófonos com os quais trabalhava o herói do autor precedente). Como o mundo é
pequeno para a confraria dos romancistas, Patrick Deville faz surgir Jonas
Savimbi e evoca o seu cadáver desaparecido do seu túmulo em Lucusse (Angola
oriental). O que é bom em Deville, que por vezes toma certas liberdades com a
história, é que também ele é um shadow tracker (em princípio a sua sombra é
constituída pelos despojos errantes de Brazza, entre Argel e Brazzaville). Mas
é sobretudo um gato-pingado sarcástico, com um assomo de desespero diante do
estado da África. Este homem é Kurtz entre os lusófonos.
Mudança completa de registo com o estudo aprofundado de Gail Wanneburg
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e o seu importante relatório (ao estilo ONG) sobre a criminalidade organizada
no fim de uma guerra civil ou de um conflito interno na sociedade local. Três
anos de trabalho na Serra Leoa, na República Democrática do Congo, no Zimbabwe
e, naturalmente, em Angola e Moçambique. Segundo o autor, a luta é desigual
entre as redes mafiosas e o fracassado Estado africano. Para Angola (pp. 228-
262), disseca todas as formas de actividade ilegal (corrupção, tráfico de
diamantes e de influências, droga, mercado negro, roubo de viaturas, moeda
falsa, tráfico de armas, de mulheres e de crianças para a África do Sul).
Ficamos a saber o que são os Pablos (os grandes traficantes de droga de Luanda,
com a alcunha proveniente de Pablo Escobar, um dos antigos reis da cocaína
colombiana) que estão infiltrados na Polícia e no Exército.
O autor também não poupa a UNITA. Deville já nos tinha falado de um grupo de
jovens gangsters de Luanda mas não sabíamos que alguns desses bandos são
dirigidos pelos filhos de grandes famílias locais. O que é dito sobre as redes
mafiosas, detalhadas segundo as origens (libanesa, congolesa, zambiana, oeste-
africana, forças armadas [FAA], UNITA, criminosos europeus e americanos)
parece-nos muito novo.
Em Moçambique (pp. 309-346), encontram-se mais ou menos as mesmas formas de
criminalidade mas, para além disso, com actividades específicas (branqueamento
de dinheiro, fraudes bancárias, assassinato de crianças para a exportação de
pedaços de cadáveres para os feiticeiros da África do Sul). O país é uma
plataforma giratória da droga. Uma parte dos lucros é investida na construção,
nos hotéis, nos casinos, nos bancos paquistaneses. As redes são portuguesas
(com a importação de produtos roubados na África do Sul), nigerianas (com a
droga), sul-africanas, sul-americanas (em Maputo há um enclave chamado Little
Colombia), paquistanesas, etc. Estamos longe de António Enes!
Regressamos ao clássico com o exame de um aspecto das relações diplomáticas
entre Lisboa e o Governo de Juscelino Kubitschek para chegar ao paradoxo de uma
democracia brasileira apoiante do regime salazarista e da sua política colonial
que exploravam, um e outro, os mitos do luso-tropicalismo estendidos à África e
ao Oriente. O autor
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trabalhou nos arquivos de Lisboa que lhe pareceram mais abertos do que os do
Brasil. Não possuindo competências sobre assuntos brasileiros, limitar-nos-emos
a notar que o interesse do breve estudo de Rampinelli parece situar-se na
descoberta cruzada da riqueza da documentação existente sobre este episódio nos
dois países. É evidente que tem razão para insistir sobre a contradição
aparente entre os dogmas proclamados de um lado e de outro do Atlântico Sul.
Mas explica-nos porquê e é aí que se torna mais inovador, pois as motivações
dos brasileiros na época não eram simples.
NAS ILHAS
Não tenhamos medo dos contrastes insulares e comecemos pelo "bom aluno da
África Ocidental", ou seja, destaquemos Cabo Verde como o único PALOP a receber
as felicitações da maioria dos autores e - mais importante - a injecção de
fundos que o ajudam a sair de uma pobreza endémica e sistémica. Libertado das
quimeras de antanho e tornado realista e pragmático, o arquipélago não poderá
em caso algum queixar-se do colectivo dirigido por Michel Lesourd
8
. Em princípio trata-se de um guia turístico de luxo que descreve, ilha a ilha,
as curiosidades e as particularidades do país, mas o livro vai bem mais longe:
a geografia, a flora e a fauna, a história, a religião e as tradições, as
artes, a cultura e a economia ocupam cerca de 60 páginas, com grandes
pormenores por vezes desconhecidos mesmo da maioria dos especialistas dos
grandes PALOP. A única reserva que pode ser feita a esta verdadeira
enciclopédia é a ausência de uma bibliografia. Não obstante, e sem serem todos
laudatores cegos pelo seu amor a Cabo Verde, os autores conseguiram obter um
balanço francamente positivo da situação depois da independência. Este texto
mereceria, portanto, uma tradução em português. E se não fizer viajar centenas
ou milhares de novos turistas e dezenas de homens de negócios, então nada
sabemos sobre o ofício de bibliógrafo! Abaixo do equador, infelizmente, o
quadro não é assim tão cor-de-rosa.
Existem já vários atlas publicados sobre os países da CPLP, mas nenhum nesta
colecção lusófona atingiu o nível consagrado a São Tomé e Príncipe, por uma
razão simples: quanto mais o território e a população são reduzidos mais o
autor pode ir ao fundo das coisas. O texto de Augusto Nascimento
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é por isso recomendado pela sua minúcia, a sua concepção globalizante da
história, do contexto socioeconómico, da política interna e externa e da
cultura do arquipélago. É uma enciclopédia ilustrada, sem iludir os
constrangimentos devidos à insularidade e à herança da escravatura, e depois do
trabalho forçado. Conhece bem o seu terreno e as fraquezas de uma população que
não ultrapassou ainda o estado de uma dependência aceite e talvez mesmo
desejada por alguns.
ANGOLA
Todos os exércitos têm, uns mais e outros menos, unidades favoritas cujo valor,
reputação ou eficácia as colocam no lugar dos mitos. Mas é raro - salvo a
Legião Estrangeira em França e em Espanha - que se procurem os heróis entre
soldados vindos d'além das fronteiras nacionais. Ora, desde os anos 1990
assistimos ao florescimento de livros sul-africanos consagrados a dois "corpos"
totalmente incongruentes no seio do regime do apartheid, pois eram compostos
essencialmente por africanos negros, mestiços ou "amarelos" oriundos de Angola
(e também, em menor grau, de São Tomé): os "Buffalos" e os Bushmen. Depois de
muitos outros títulos, eis que apenas no ano de 2008 aparecem sobre este
assunto dois novos textos traduzidos do afrikaans. À data de publicação, a obra
de L. J. Bothma
10
é a mais pormenorizada sobre os "Buffalos". Apoiando-se nos depoimentos de
oficiais e suboficiais sul-africanos, numa pesquisa pela imprensa e
bibliografia anterior, o relato é muito personalizado (com diálogos
reconstituídos). As descrições das operações são particularmente elaboradas,
sobretudo para as que se desenrolaram em Angola de 1976 a 1986. O autor é mais
sintético para as actividades do batalhão (na verdade tinha efectivos bem
superiores) nas operações maciças de 1987-1988 na região do Cuíto Cuanavale. Um
trabalho indispensável para conhecer o papel destes "mercenários
arregimentados" e, talvez ainda mais útil, o estado do Sudeste angolano tal
como o autor o reviu ao regressar ao local em 2003. É necessário completá-lo
com as recordações de um jovem tenente que escolheu combater neste corpo de
elite onde mesmo os oficiais afrikaners deviam aprender português para se
fazerem entender pelos seus homens. A utilidade do texto
11
está contida na descrição detalhada do dispositivo sul-africano para e diante
do Cuíto Cuanavale em Novembro de 1987 (retirada dos sul-africanos e mesmo da
UNITA). Mas em Dezembro de 1987, o batalhão regressa a Angola pois os cubanos
começam a reforçar as FAPLA do MPLA. A companhia do autor tem de ir até
Menongue para tentar cortar a linha de abastecimento da frente. Atacados pelos
Mig, conseguem mesmo assim destruir um comboio de cubanos-FAPLA (em Janeiro de
1988). Em Abril-Maio de 1988, torna a partir para o norte da Ovamboland para
bombardear os campos da SWAPO. Em Julho (?) de 1988, enfrenta a ofensiva cubana
(Calueque-Ruacana). Um livro onde o leitor pode comparar a ferocidade desta
guerra convencional moderna com as recordações portuguesas da contraguerrilha
que nunca precisou de contratar intérpretes espanhóis, alemães ou russos para
decifrar as telecomunicações do inimigo. Uma diferença de escala incomensurável
a quinze anos de distância.
Com a mesma origem, mas mais técnico, o grande livro do general Dick Lord
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pode ser considerado como a história para-oficial das operações aéreas da
África do Sul em Angola. De um anticomunismo virulento, apoia-se nos arquivos
pessoais e nos testemunhos de antigos pilotos, o que torna a leitura menos
árida. As intervenções militares de Pretória em Angola remontam a 1971 ao
Sudeste angolano, nas regiões do Cuíto Cuanavale, Nriquinha e Mavinga. Os
portugueses pedem-lhes que cartografem igualmente Cabinda e uma parte de
Moçambique. Os problemas começam a sério em 1975, quando perdem dois pequenos
aparelhos abatidos pelos cubanos. E a grande ofensiva desencadeia-se,
entretanto, com a operação "Protea", entre a fronteira e a linha Humbe-Mupa.
Uma centena de aviões e helicópteros são destacados para apoiar as tropas no
terreno no Cuanhama (Agosto-Setembro de 1981). De seguida, em quase 300
páginas, é-nos fornecido o plano de todas as intervenções em socorro da UNITA
ou para empurrar a SWAPO para o Norte. A partir de 1984, são as FAPLA-cubanos
que se transformam no inimigo número um. O enorme reforço do seu arsenal
soviético conduzirá às grandes batalhas clássicas de 1987-1988, em que os sul-
africanos se apercebem que, mau grado a habilidade dos seus pilotos, os Mig
soviético-cubanos são superiores à maior parte dos seus aparelhos. Esta
história triunfalista deveria interessar algumas bibliotecas militares
lusófonas. Sem falar nos aviadores profissionais ou em simples amadores.
Para agradar aos raros especialistas das Lundas de Angola limitar-nos-emos a
assinalar uma publicação que talvez possa esclarecê-los se se quiserem orientar
nos labirintos da etno-história da África Central. Para nós, que não temos o
fio de Ariadne, o livro de Matadiwamba Kamba Mutu Tharcisse
13
é bastante mais impenetrável que a imensa - e luxuosa - história de Angola de
Jan Klíma
14
, que segue uma cronologia séria e fornece uma bibliografia respeitável em mais
de 40 páginas. Mesmo que as suas entradas sejam impossíveis de encontrar na
República Checa, há pelo menos um esforço de divulgação meritório da parte
deste historiador checo que demonstrou uma vontade e uma constância notáveis em
dar a conhecer aos seus compatriotas os PALOP com os quais a República Checa
teve, até agora, laços muito limitados. É mesmo extraordinário para um só
homem. Tem o génio do detalhe e, usando os trabalhos dos seus antecessores,
consegue uma síntese verdadeiramente incrível, porque é ao mesmo tempo
generalista na sua ambição e cintilante pela massa de personagens que inclui.
Por exemplo, o índice, que ocupa, a duas colunas, 26 páginas, inclui dez
Almeidas, desde um governador do século XVI até ao ícone sacrificial do MPLA,
Deolinda Rodrigues de Almeida, assassinada pelos homens de Holden Roberto.
Mutatis mutandis, é como se um autor e um editor portugueses estivessem
bastante optimistas e redigissem e publicassem, em português, um livro de 400
páginas muito densas sobre a história do Sudão, esperando vendê-lo. Tendo em
conta a debilidade das relações históricas entre a República Checa e Angola, o
autor e Karel Sieber (uma contribuição de 18 páginas sobre as relações entre os
dois países entre 1961 e 1984, marcadas duramente pelo rapto de técnicos e suas
famílias pela UNITA), foram buscar aos sítios mais recônditos checos que
estiveram no terreno ou que colaboraram com os angolanos, de perto ou de longe.
Não é inocente notar que Savimbi aparece em 60 páginas, mais do que José
Eduardo dos Santos, e que a edição foi, em parte, financiada pelo Banco de
Poupança e Crédito.
Portanto, não há apenas Pablos em Angola. Também encontramos homens da finança
menos "friorentos" que os bancos e empresários portugueses (ou americanos)
quando se trata de favorecer trabalhos científicos que nenhum proveito lhes
trazem mas que os honram. Chega-se aos antípodas do que espera obter todo o
ditador que deseja branquear a sua reputação.
Será por isso que ainda não houve - em nosso entender - ditadores dignos desse
nome nos PALOP, apesar de algumas tentativas interessantes? Não era essa a
opinião de uma figura marcante no angolanismo francês, especialidade em vias de
rarefacção, depois do desaparecimento da sua némesis em pessoa, Christine
Messiant (1947-2006). Trotskista incondicional e apaixonada inconsolável por
uma Angola ideal, de 1982 a 2005 publica ou deixa inéditos uma vintena de
artigos ou pedaços de livros fundamentais sobre a Angola pós-colonial. Diluídos
em publicações de público modesto, arriscavam-se a cair no esquecimento. É
portanto uma excelente ideia tê-los reunido e editado, dado que a sua massa
"crítica" (mais de 800 páginas) nos recorda que esta socióloga exigente se
tornara na investigadora muito crítica e segura que, provavelmente, melhor
conhecia as sombras e os abismos da situação em Angola após a independência. Os
subtítulos dos dois volumes
15
indicam bem a orientação do pensamento da autora. Não tinha ilusões;
incansavelmente denunciava. O quê? Praticamente toda a política do MPLA e da
UNITA e em particular esse imenso atoleiro que foi a guerra civil, a ausência
de democracia, a corrupção, a miséria das populações, o que ela denominava a
"oleocracia", a etnicidade, a impotência das igrejas ou a sua timidez, etc.
Impiedosa, mas magistralmente documentada, esta dialéctica omnisciente não era
do género de fazer concessões. Tinha amigos nas oposições ao MPLA, bastante
menos no aparelho do partido, pelo menos nos estratos que tiravam e tiram
partido das suas larguezas. Nada mais diremos. Além disso, o leitor pode ler
num posfácio revelador as 21 páginas da sua biografia, onde se documenta o seu
itinerário intelectual e mesmo privado.
Pela mesma ordem de ideias (consagração de um pensador marxista angolano tido,
retroactivamente, em alta estima), consultar-se-á igualmente um livro relativo
à vida e obra de Viriato da Cruz
16
. Morreu por acreditar nas quimeras do maoísmo, e na miséria, junto daqueles
que julgava serem os seus defensores, mas que simplesmente se serviam dele.
Pode mesmo perguntar-se se a vida deste intelectual mestiço não foi a
prefiguração do que se tornarão as relações sino-angolanas nas próximas
décadas. Talvez então surja um verdadeiro ditador. A parte mais "digesta" do
livro é dedicada ao Viriato poético e ao Viriato político pelos que o
conheceram ou admiraram de mais longe. O capítulo mais trabalhado é o de um
politólogo e historiador sinólogo sobre o percurso chinês de Viriato (1958-
1973). A última centena de páginas reúne escritos doutrinários e documentos de
arquivo acerca do herói sublimado, fulminado antes de ter visto o que iria
acontecer às suas aspirações revolucionárias.
Regressemos a um livro de viagens que há muito esperávamos, pois mesmo os
historiadores têm o direito de evocar os seus amores de juventude. Neste caso
trata-se do Sul de Angola, entre Julho de 1894 e Janeiro de 1895, a nossa
"madalena de Proust" angolana. Como demorámos trinta anos a encontrar o livro
de Rosenblad em sueco, estamos muito contentes por agora existir uma reedição
anotada e em inglês
17
. Trata-se de um relato de viagem e das caçadas efectuadas na companhia do
grande Axel Eriksson entre Moçâmedes e o Cuanhama do rei Weyulu onde os
viajantes foram muito bem recebidos. O texto e as notas são úteis para se
conhecer a Angola meridional (pp. 17-54) antes da conquista portuguesa para
além do Cunene. Depois das destruições operadas pelos sul-africanos, nem
ousamos pensar no que subsistirá de Weyulu na memória dos ovambo locais.
Esta incursão escandinava incita-nos a abordar Moçambique através da Dinamarca.
MOÇAMBIQUE
Um lusófono médio pode interrogar-se sobre o sentido do título do livro de
Peter Tygesen
18
. É simplesmente "A Terra da Boa Gente" dos primeiros portugueses, e uma
reportagem de iniciação e de sensibilização do leitor dinamarquês a Moçambique,
visto por um jornalista que visita e entrevista alguns cooperantes
dinamarqueses e personalidades africanas em Maputo, em Moçambique, e sobretudo
na província de Tete, em especial nos distritos próximos do Malawi e da Zâmbia.
O autor encadeia a trama histórica, a denúncia do colonialismo, as reportagens
no mato, os testemunhos sobre a Guerra Colonial e depois civil, a cooperação
dirigida pelos organismos de assistência dinamarqueses, os missionários, a
corrupção, os meandros da política de ajuda oficial, etc. Texto indispensável
para seguir a evolução dos programas agrícolas lançados pela DANIDA na Angónia
e em alguns distritos do Noroeste. É o primeiro livro em dinamarquês de várias
centenas de páginas sobre Moçambique, a quem a Dinamarca concedeu de 1993 a
2006 uma ajuda (707 milhões de dólares) superior à de Portugal (637 milhões de
dólares) durante o mesmo período, segundo o livro que se segue.
Joseph Hanlon
19
é o observador estrangeiro provavelmente melhor informado acerca do problema
do desenvolvimento em Moçambique. Atrás de si tem trinta anos de estudos sobre
o tema, com cinco ou seis livros publicados. De marxista vituperante em 1984
contra o abandono dos princípios revolucionários e contra o pacto de não-
beligerância com Pretória, passou para uma visão mais apaziguante dos
constrangimentos geopolíticos que motivaram a reorientação da FRELIMO.
Permanece ainda muito crítico, mas já não está totalmente cego pelas
considerações apriorísticas dos seus anos de juventude. As suas bêtes noires
mantêm-se, evidentemente, o Banco Mundial e os seus diktats, mas é senhor de
uma documentação económica em inglês e em português imparável e sem rival.
Milita actualmente a favor da concessão de uma maior ajuda por parte das
autoridades, ONG e bancos aos pequenos produtores, através de crédito e de
conselhos. Estamos longe dos grandes complexos agro-alimentares dos anos loucos
do colectivismo, mas é convincente quando analisa alguns sucessos (o cajú após
o relançamento posterior ao abandono das ordens do Banco Mundial). A sua
obsessão é libertar Moçambique da sua dependência em relação à ajuda externa e
ao capitalismo desenfreado. O seu texto não tem, portanto, ilusões sobre no que
se tornaram as elites da FRELIMO, sobre a corrupção e sobre a atitude
suplicante do "mendigo" que agora tem honra. Um capítulo do seu livro,
relativamente legível, trata do fim do milagre em Manica onde 42 agricultores
individuais e grupos de zimbabweanos brancos se tinham instalado em 2001-2004,
encorajados pelas ofertas de créditos generosos. Sozinhos, criaram 4385 postos
de trabalho entre o campesinato local. No fim de 2006 o milagre tornara-se
miragem. Já só havia 16 agricultores comerciais, as fábricas de tratamento de
produtos agrícolas estavam encerradas e o emprego entre a população rural
descera para 600 pessoas. Um exemplo simples das falsas esperanças, de uma e
outra parte.
Em relação a Manica e aos seus agricultores brancos, recebemos com alguns dias
de intervalo as memórias
20
de um sul-africano criado na Rodésia, uma cabeça queimada que se alista no
Exército rodesiano (de 1967 a 1980) e relata com um talento humorístico algumas
das suas incursões no Moçambique da FRELIMO. No seu último capítulo oferece-nos
uma visão muito sombria dos agricultores brancos que, envelhecidos e magoados,
tentaram refazer a vida na Manica moçambicana na agricultura comercial (2003-
2005) alugando os seus terrenos às autoridades. Confirma, do ponto de vista
pessoal, as constatações de Hanlon (falta de crédito e problemas resultantes de
uma produção pouco rentável num contexto climático e humano pouco propício).
Esta sobrevivência dos brancos pobres e estrangeiros, num sistema onde o país
vive da caridade internacional, tem um perfume de tragédia que já não o faz
sorrir.
Não sabemos se se sorri muito nos gender studies tal como são ministrados nas
universidades americanas, mas podemos adivinhar. O interesse do livro de
Jennifer Leigh Disney
21
reside no facto de se apoiar essencialmente em entrevistas a 146 mulheres, das
quais umas sessenta são activistas moçambicanas, em 1999 e 2004. Trata-se de
quadros de formação dependentes da FRELIMO (e duas deputadas da RENAMO), ou de
ONG ou de universitárias. Há poucas camponesas. Comparando essas situações com
a Nicarágua, o autor examina as reivindicações feministas em sociedades
fortemente machistas. Passa em revista o papel das mulheres nas fases militares
da luta, a sua participação na economia, na vida política e sindical, a
evolução do direito, da cultura, dos casais, da democratização, etc. A
bibliografia citada é maioritariamente em inglês, com um mínimo de textos em
português.
O livro de 1975 de Michèle Manceaux sobre as mulheres de Moçambique, à saída da
Guerra Colonial, é ignorado, o que é estranho.
Como temos agora de terminar a viagem na "Terra da Boa Gente", não evitaremos o
pitoresco graças a Simon Reeve
22
. Jovem repórter da televisão britânica, tem uma influência bem superior à de
todos os autores que encontrámos no caminho, pois trata-se de formar a opinião
pública. Fazendo a volta ao mundo em torno do Capricórnio, não pode deixar de
ser rápido ao abordar Moçambique. Tendo, apesar de tudo, preocupações
ecológicas e sociais, nota que no Parque Nacional do Limpopo as autoridades
expulsam as populações, a quem interditam a caça. Ao visitar Xai-Xai e um campo
de desminagem, fascina-nos com as já famosas ratazanas da Gâmbia, capazes de
desminar 100 metros quadrados em trinta minutos graças à acuidade do seu
olfacto. Estas ratazanas providenciais detectam igualmente os tuberculosos
apenas pela sua saliva. Um técnico de laboratório pode testar 20 amostras por
dia, mas uma destas ratazanas testa 150 pessoas em vinte minutos. Não é um
detalhe folclórico num país destroçado pela doença. Visita Inhambane invadida
por turistas. A pesca artesanal na região foi arruinada pelas gigantescas
traineiras chinesas, japonesas e espanholas. Os insulares do arquipélago de
Bazarutos vivem por isso numa miséria profunda, ao passo que os hotéis de luxo
(dormida a mil libras por suite) proliferam, enriquecendo os seus proprietários
(cuja origem dos seus investimentos não é muito clara). Vasco da Gama não
previra os Pablos, nem os campos de minas, nem a sida. Para ele era a Terra da
Boa Gente. Quando a equipa de televisão da BBC 2 chega, estamos em 2007 e já
não se vive, de forma alguma, uma situação eufórica. O navegador não previra,
tão-pouco, os "operadores de viagens".
TRADUÇÃO DE MARTA AMARAL
NOTAS
1
LUGAN, Bernard - Histoire de l'Afrique. Des origines a nos jours. Paris:
Ellipses, 2009, 1245 pp., numerosos mapas a preto e branco.
2
BRANDÃO, José - Cronologia da Guerra Colonial: Angola-Guiné-Moçambique. 1961-
1974. Lisboa: Prefácio, 454 pp.
3
COSTA, Aurore - Perles de verre et cauris brisés. Nika l'Africaine. Paris:
L'Harmattan, 2008, 515 pp.
4
NELSON, Keith A. - Shadow Tracker: Joanesburgo: 30º South Publishers, 2007,
444 pp.
5
DEVILLE, Patrick - Equatoria. Paris: Seuil, 2009, 332 pp.
6
WANNEBURG, Gail - Africa's Pablos and Political Entrepreneurs. War, the State
and Criminal Networks in West and Southern Africa. Joanesburgo: The South
African Institute of International Affairs, 2006, XV - 442 pp.
7
RAMPINELLI, Waldir José - As Duas Faces da Moeda. As Contribuições de JK e
Gilberto Freyre ao Colonialismo Português. Florianópolis: Editora da UFSC,
2004, 158 pp.
8
LESOURD, Michel (coord.) - Le Cap-Vert Aujourd'hui. Paris: les Éditions du
Jaguar, 2006 (reimpressão de 2008), 279 pp., numerosas fotos a cores.
9
NASCIMENTO, Augusto - Atlas da Lusofonia. São Tomé e Príncipe. Lisboa:
Prefácio, 2008, 106 pp., fotos a cores e a preto e branco.
10
BOTHMA, L. J. - Buffalo Battalion. South Africa's 32 Battalion. A Tale of
Sacrifice. Bloemfontein: edição do autor (bothmalj@mweb.co.za), 2008, 452 pp.,
estampas a cores.
11
VAN DER WALT, Nico - To the Bush and Back. A Story about the Last Phase of the
South African Border War as Experienced by a Junior Officer of 32-Battalion.
Pretória: edição do autor (P.O.Box 11447, Swartkops, Pretoria), 2008, 207 pp.,
fotos a cores.
12
LORD, Dick - From Fledgling to Eagle. The South African Airforce During the
Border War. Joanesburgo: 30º South Publishers, 2008, 528 pp. + 16 pp. com fotos
a cores, uma centena de fotos e diagramas a preto e branco.
13
THARCISSE, Matadiwamba Kamba Mutu - Espace Lunda et Identités en Afrique
Centrale. Lieux de Mémoire. Paris: L'Harmattan, 2009, 190 pp., fotos a preto e
branco.
14
KLÍMA, Jan - D_jiny Angoly. Praga: Nakladatelství Lidové Noviny, 2008, 402
pp., fotos a preto e branco.
15
MESSIANT, Christine - L'Angola postcolonial. Paris: Karthala, 2008, vol. I,
Guerre et paix sans démocratisation, 414 pp., uma foto a preto e branco; vol.
II, Sociologie politique d'une oléocratie, 431 pp., uma foto a preto e branco
16
ROCHA, Edmundo, SOARES, Francisco, e FERNANDES, Moisés (coord.) - Angola.
Viriato da Cruz. O Homem e o Mito. Porto Amboim (Angola) 1928 - Beijing (China)
1973. Lisboa: Prefácio, 2008, 446 pp., fotos a preto e branco.
17
ROSENBLAD, Eberhard [RUDNER, Ione, e RUDNER, Jalmar (eds.)] - Adventure in
South-West Africa (1894-1898). Windoek: Namibia Scientific Society, 2007, 184
pp., fotos a preto e branco.
18
TYGESEN, Peter - De gode menneskers land. Danmark i Mozambique. Copenhaga:
People's Press, 2008, 510 pp. + 8 pp. com fotos a cores.
19
HANLON, Joseph, e SMART, Teresa - Do Bicycles Equal Development in
Mozambique?. Woodbridge (Inglaterra): James Currey/Boydell & Brewer, 2008,
XIV-242 pp., fotos a preto e branco.
20
TAYLOR, Stu - Lost in Africa. Joanesburgo: 30º South Publishers, 2007, 200 pp.
+ 16 pp. com fotos a preto e branco.
21
DISNEY, Jennifer Leigh - Women's Activism and Feminist Agency in Mozambique
and Nicaragua. Filadélfia: Temple University Press, 2008, XXI-283 pp.
22
REEVE, Simon - Tropic of Capricorn. Circling the World on a Southern
Adventure. Londres: BBC Books/Ebury Publishing, 2008, 376 pp. + 16 pp. com
fotos a cores.
* Historiador especializado em questões ultramarinas portuguesas (séculos XIX e
XX). Autor de uma vasta bibliografia, publicou recentemente As Campanhas
Coloniais de Portugal, 1844-1941 (Estampa, 2006) e Timor em Guerra. A Conquista
Portuguesa (Estampa, 2007).
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