Pela definição de um conceito estratégico nacional
Pela definição de um conceito estratégico nacional
Ana Rita Moreira *
José Palmeira
O Poder de Portugal nas Relações Internacionais
Lisboa,
Prefácio,
2006, 299 páginas
José Palmeira tem feito toda a sua carreira académica na Universidade do Minho,
onde se licenciou em Relações Internacionais, se tornou mestre em Estudos
Europeus com uma tese sobre a posição de Portugal nas políticas europeias de
defesa, e se doutorou, em 2003, em Ciência Política e Relações Internacionais,
com uma dissertação intitulada Portugal e o Sistema Geopolítico Mundial (1945-
2000) que é, em 2006, transformada para publicação neste livro.
A obra é prefaciada por Adriano Moreira e divide-se em três secções principais,
sendo que as duas iniciais ' debruçando- se primeiro sobre as teses clássicas
da geopolítica e o sistema mundial e depois sobre uma descrição dos factores
permanentes e da evolução política de Portugal no século xx ' podem ser
consideradas como secções introdutórias ao terceiro capítulo, mais longo, onde
se explanará o cerne da tese, e que se intitula, finalmente, «Portugal e o
Sistema Geopolítico Mundial». A publicação apresenta-se como um compêndio de
oito séculos de relacionamento internacional do Estado português, com um
privilégio da atenção sobre o século xx, e neste, nos acontecimentos
contemporâneos e posteriores à II Guerra Mundial, e recorre preferencialmente a
fontes secundárias, percorrendo alguns títulos da bibliografia historiográfica,
nacional e estrangeira.
O autor pretende, com este exercício de síntese, avaliar com rigor o poder e a
relevância geoestratégica, presente e passada, de Portugal no sistema de
relações internacionais.
Recensearemos aqui algumas ideias mais salientes nos três capítulos que compõem
o percurso da narrativa no caminho para a enunciação das conclusões, as quais
se apresentam com o objectivo declarado de servirem como marcos orientadores na
definição de um conceito estratégico nacional, assente em três triângulos
estratégicos.
O primeiro capítulo assenta então numa reflexão sobre três conceitos nucleares:
oconceito clássico de Estado, na sua articulação com as noções de território e
de nação; a noção de poder, entendido aqui estreitamente como o poder dos
estados, e as teses que ensaiam uma enunciação dos factores que o determinam
através das conjunturas históricas, sendo consensual que se caminhou, durante o
século xx, e sobretudo no seu último quartel, no sentido de uma dispersão dos
centros de poder; e a definição de geopolítica, entendida como, na enunciação
de Pascal Boniface e perfilhada pelo autor, «uma combinação da ciência política
e da geografia que estuda as relações que existem entre a condução da política
exterior de um país e o quadro geográfico no qual ela se exerce» (p. 36).
O autor prossegue com uma apresentação sobre a evolução do conceito,
percorrendo os autores clássicos e as escolas mais influentes.
O segundo capítulo é dedicado à enunciação das características geopolíticas de
Portugal, onde se destaca o contraste entre a exiguidade da sua dimensão
continental e a extensão da sua Zona Económica Exclusiva ' com um milhão e 683
quilómetros quadrados, a maior da Europa e a quinta maior do mundo ', e o
significado da sua posição geográfica: peninsular, com a Espanha como única
fronteira terrestre, na confluência entre o Alântico Norte e Sul, e de acesso
ao mar Mediterrâneo.
O autor dedica ainda alguns parágrafos ao que diz ser a homogeneidade cultural
do país, tecida em oito séculos de história, que o classificam como um «Estado-
nação perfeito». Esta perenidade das fronteiras nacionais será ainda
complementada pela história de exploração pluricontinental que forjou mais
tarde o império colonial, e que, na terminologia de Jacques Huntzinger, o
qualificam como um Estado «histórico » detentor de um conhecimento sobre outras
sociedades e povos que resultará numa vantagem diplomática no jogo estratégico
internacional (sabe-se, porém, como foi incipiente e tardia a colonização
científica do Ultramar, comparada, por exemplo, com o esforço britânico, pelo
que podemos adivinhar que este conhecimento poderá ser mais gerador de
equívocos que de clarividência). O autor segue então para uma breve narrativa
da evolução política do País nos últimos sessenta anos, e enumera três fases no
relacionamento internacional: até 1974, guiado por um regime autocrático
centrado na figura do Presidente do Conselho, conservar o império; depois de
1977, com a descolonização e a democratização do regime em marcha segura, a
integração europeia; e, no início do século XXI, a consolidação do espaço
lusófono.
O terceiro capítulo é composto por sete secções, iniciando-se por uma revisão
das principais linhas de força da estratégia nacional através do século XX, a
que se sucede uma circunscrição das fronteiras políticas do Estado português,
avaliando o alcance da esfera de influência em termos de soberania, segurança,
económica e cultural. Nas duas secções seguintes, «Enquadramento geopolítico» e
«Grandes espaços» são inventariadas, respectivamente, as relações bilaterais
com as regiões vizinhas (Espanha e Magrebe), e o comportamento no seio de
organizações multilaterais, destacando-se, neste âmbito, a NATO, a União
Europeia e a CPLP.
Os ultimos capitulos sao dedicados, por esta ordem, a uma avaliacao do
potencial estrategico do Pais, no ambito terrestre, maritimo e aeroespacial,
seguido de uma exposicao das coordenadas da politica externa portuguesa, onde
identifica tres triangulos estrategicos, e finalmente, de uma sintese
conclusiva do capitulo. Retém-se, da exposição do autor, a caracterização dos
três paradigmas sucessivos na definição da estratégia portuguesa ao longo da
segunda metade do seculo XX, e a inventariação dos três triangulos estratégicos
- nacional, lusófono e mundial - que deverão, segundo o autor, constituir o
âmago da política externa portuguesa.
SINTETIZANDO O SÉCULO XX PORTUGUÊS
O primeiro período, que serve a caracterização de um paradigma estratégico
dominado pelo imperativo de defender o império colonial, tem a sua origem
remota em séculos de exploração marítima que terão, com alianças felizes na
Santa Sé e em Inglaterra (a potência marítima dominante), "dado viabilidade
estratégica a um território que parecia «condenado» a espanholização da
Peninsula Ibérica" (p. 62).
Um receio que não era, como se veio a demonstrar, infundado. O Estado português
terá, na opinião do autor, conseguido com sucesso "maximizar as potencialidades
e minimizar as vulnerabilidades" (p. 63). Na alvorada da II Guerra Mundial,
Portugal deu prioridade a defesa dos arquipélagos e dos territórios africanos
(terá beneficiado da ajuda da Inglaterra para desencorajar o interesse
americano pela anexação dos Açores), mantendo, durante o conflito, uma
colaboração discreta comos Aliados (cedendo facilidades na Terceira e em Santa
Maria), enquanto se supõe uma proximidade ideológica, também ela discreta, aos
países do Eixo. É nesta altura que se enraíza na visão estratégica do chamado
«bloco ocidental» a relevância do território português insular para a sua
segurança colectiva, facto que será determinante, em várias ocasiões, no
destino político de Portugal. A adesão à NATO (recusada à Espanha) terá sido
entendida, pelo regime, como favorável ao interesse colonial português, ainda
que, nas décadas seguintes, apesar dos apelos, não tenha encontrado nesta
organização, liderada pelos Estados Unidos, o apoio esperado para combater as
guerrilhas independentistas que o ameaçavam.
O segundo período paradigmático é marcado pela integração europeia, depois de
décadas de reservas do regime de Salazar, geralmente céptico a qualquer
movimento de cooperação internacional, o que não impediu, no entanto, a adesão,
com o apoio britânico, ao Plano Marshall e às organizações que daí resultaram.
Portugal acabou por entrar, ainda que com um défice de entusiasmo, no comboio
da cooperação económica europeia, logo em 1948. Em 1976 a opção europeia é
formalizada, e desenvolvida com empenho nas décadas seguintes, tomando os
sucessivos governos do Bloco Central como prioridade a ocupação de um lugar no
chamado «pelotão da frente».
Sem esmorecer a convicção em consolidar a integração no espaço europeu, o autor
identifica um último período, iniciado em meados dos anos 1990, com o fim da
Guerra Fria, de aprofundamento das relações entre estados do chamado «espaço
lusófono». Este aparece como corolário do processo histórico iniciado no século
xvi e desenvolvido no projecto colonial, e tem paralelos com os projectos da
Commonwealth e da Organização Internacional da Francofonia. A CPLP engloba
estados em quatro continentes e institucionaliza o que o autor define como a
fronteira linguístico- cultural de Portugal, em complemento das fronteiras de
segurança, circunscrita na nato, e económico-política, expressa no espaço da
União Europeia. Enquanto que na CPLP Portugal se apresenta como força motriz,
nas duas outras, actores globais de relevo, participa como personagem
secundária. Mas é, segundo José Palmeira, pelo sucesso no aprofundamento da
cooperação no seio da CPLP, que Portugal aumentará a sua influência no seio
daquelas organizações, uma vez que o Brasil e Angola, sobretudo, se posicionam
como actores cimeiros em mercados regionais relevantes para as ambições
europeias, e, para a nato, como apoios fundamentais na ampliação do seu
espectro de influência ao Atlântico Sul.
TRÍADES DA POLÍTICA EXTERNA PORTUGUESA
O autor define então, e finalmente, três triângulos estratégicos, de amplitude
geográfica crescente, que identificam as coordenadas da política externa
portuguesa.
Estas coordenadas sistematizam-se numa «geometria variável» que deve tomar em
conta e articular de forma dinâmica a multiplicidade de laços, bilaterais e
multilaterais, que se foram forjando ao longo da história. O primeiro destes
triângulos, que o autor denomina «nacional», agrupa os vértices Continente-
Açores-Madeira. Este é o território, minguado com as independências, com que o
Estado português entra no século XXI. Os arquipélagos dão-lhe uma profundidade
atlântica, que lhe falta no lado continental, posicionando-se na confluência de
vários «grandes espaços», e pelo qual passam importantes rotas comerciais e
militares, marítimas e aéreas, ligando a Europa e as Américas, a África, o
Índico e o Pacífico. Neste contexto, será exigível que o País tenha capacidade,
nas palavras de Francisco Lucas Pires, de «atrair para Portugal nós de redes
internacionais » (p. 202), afirmando-se como um «europorto». Esta ideia é
reforçada com a proposta de que Portugal retome a sua «vocação marítima»,
afirmando-se no seio de uma Europa guiada por uma política externa comum como
embaixador no diálogo com as várias margens do Atlântico.
E é em relação com esta vocação que se desenha o segundo triângulo estratégico,
unindo no seio da comunidade lusófona, que reagrupa os antigos territórios
imperiais, Portugal, Brasil e Angola. Será este o valor acrescentado de
Portugal na União Europeia (UE). Brasília, Luanda e Lisboa são os vértices de
um triângulo que liga três continentes distintos, sendo que os dois países
meridionais detêm potencial de desenvolvimento por explorar, arrastado por
condições internas diversas, e que impedem a libertação de ambos para um
empenho mais consistente na cooperação internacional.
O terceiro e último triângulo, que o autor apelida «mundial», engloba a Aliança
Atlântica, a União Europeia e a CPLP, e pode ser traduzido numa outra tríade: a
que define os objectivos essenciais dos estados na participação em organizações
internacionais, e que se declinam na segurança (assente na nato), na
prosperidade (procurada na UE) e na independência (que, aceitando-se o
raciocínio de que foi o Império que a proporcionou, se afiançará com a CPLP).
Na vinculação a estas três organizações multilaterais Portugal assegura a
participação nas principais decisões que afectam a geopolítica mundial, e, por
inerência, o seu próprio destino político. É expectável que, de entre as três,
se venha a sobrepor a ligação com a Europa, dado o grau de desenvolvimento da
integração de Portugal na UE, a qual caminha, com passos gradualmente mais
seguros, para a união política. Este aprofundamento poderá, segundo José
Palmeira, suscitar um condicionamento indesejável da actual liberdade
(relativa) de Portugal em gerir a geometria variável dos três triângulos
estratégicos supracitados. Portugal terá interesse em manter ' com o Reino
Unido e a Holanda ' a opção atlantista no que toca à segurança comum. Nas
palavras do autor «com um passado vivido de costas para a Europa, Portugal,
que desde 1986 integra o processo de construção europeia, poderá ver a sua
importância geoestratégica limitada caso agora vire as costas ao Atlântico '
à aliança preferencial com os eua e com os restantes países lusófonos, entenda-
se» (p. 209).
A obra de José Palmeira tem, em suma, o mérito indiscutível de fazer um voo de
águia sobre as opções e os constrangimentos da política externa portuguesa,
compendiando pelo menos cinquenta anos de eventos e protagonistas, e
permitindo, a um nao-iniciado, familiarizar-se com as principais pedras-de-
toque do discurso politico português no âmbito das relações internacionais. Mas
e talvez nesse esforço todo-englobante que se perde inevitavelmente, por um
lado, o detalhe - tantas vezes mais revelador e significante -, e, por outro,
alguma profundidade teórica - o primeiro capítulo peca por um tom apressado e
descomplexificante. O corolário desta opção, restringindo-se frequentemente a
uma verve descritiva, é cair na armadilha comum de confundir-se a voz do autor
com as teses que inventaria. José Palmeira está ciente do risco quando aponta,
a páginas tantas, as debilidades da análise geopolítica: a excessiva
simplificação, a carga ideologica (referindo-se à ligação ao nazismo), e,
citando Geroid O Tuathail, a sua vocacao nacionalista, chauvinista e
conservadora (pp. 56, 217).
São, porém, ressalvas sem consequências de monta no tom predominante da obra. O
texto tem, afinal, o propósito explicito de elaborar um plano programático para
o incremento da relevância política internacional de Portugal, e realiza-
o apoiando-se, sem uma preocupação crítica saliente, nas premissas discursivas
dominantes das últimas décadas.
* Licenciada em Antropologia pela Universidade Nova de Lisboa (2000) e mestre
em Ciências Sociais (2006) pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade
de Lisboa. Desenvolve actualmente um projecto de doutoramento sobre a política
externa portuguesa e o mundo árabe.
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Portugal
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