Um slogan demasiado bom
Um slogan demasiado bom
Ivan Nunes [*]
Com o seu instinto para a frase sonante, para a formulação provocadora,
Huntington suscitou enorme polémica com a tese do choque das civilizações, logo
que ela foi apresentada, na sua primeira versão, num artigo na Foreign Affairs
em 1993. Do ponto de vista da notoriedade pública, O Choque das Civilizações
tornou-se incontestavelmente o seu livro mais importante. O facto de ter sido
pessimista a contracorrente, no imediato pós-Guerra Fria, funcionaria poucos
anos mais tarde a seu crédito: a década de 1990 é hoje encarada como um fugaz
intervalo de optimismo, iniciado com a queda do Muro de Berlim, em Novembro de
1989, mas enterrado nos escombros das Torres Gémeas de Nova York, em Setembro
de 2001. Ao dispor de uma linguagem aparentemente adequada para explicar os
acontecimentos do 11/9 logo no momento em que eles se deram, a tese de
Huntington ganhou uma importância extraordinária no debate político. Além
disso, Huntington soube antecipar o tema do declínio da hegemonia ocidental
numa altura em que o poder dos Estados Unidos estava no seu auge, e valorizar a
importância da religião ' não da ideologia ' na política internacional. Não
tardou que a sua obra fosse vista como premonitória.
De acordo com Huntington, o fracasso do comunismo não se traduziu na vitória
universal do modelo liberal democrático, mas sim no fracasso, ou pelo menos na
crise, das ideologias seculares em grande parte do mundo subdesenvolvido. A
distância a que o Egipto de hoje se encontra em relação ao tempo de Nasser, a
Turquia em relação a Atatürk, a Índia em relação a Nehru, ilustra bem este
ponto; também na China, o marxismo é hoje pouco mais que uma retórica vazia que
ecoa outros tempos, enquanto a legitimidade do regime depende agora de uma
ideologia nacionalista que combina Mao Tsé-Tung com Confúcio. Da mesma forma, o
conflito entre Israel e a Palestina, até à Guerra dos Seis Dias, em 1967,
configurava uma disputa territorial entre duas partes perfeitamente seculares,
ao passo que hoje se tornou um choque intratável entre visões opostas sobre
territórios sagrados e direitos históricos. No Iraque e no Afeganistão, os
Estados Unidos travam actualmente uma guerra contra movimentos insurreccionais
cuja arma principal são bombistas suicidas de inspiração religiosa; e a lista
de casos em que a religião ocupa agora o centro dos conflitos internacionais
poderia prosseguir. A religião progride também nas camadas mais prósperas das
sociedades mais modernas; ela não é um atavismo dos mais pobres. Nos próprios
Estados Unidos, desde o início do novo século, a filiação religiosa é o
indicador mais fiável do sentido de voto dos indivíduos.
Mas reconhecer o sentido de oportunidade, a pertinência do ângulo de análise,
os méritos do pessimismo de Huntington, não equivale a uma confirmação em
concreto das suas teses. Para os críticos, as civilizações de Huntington são
construções ideológicas, arbitrárias e imprecisas. Neste curto texto, procuro
fazer um balanço dessas críticas.
OS VERDADEIROS VALORES DAS CIVILIZAÇÕES
De acordo com Huntington, com o fim da era dos alinhamentos ideológicos, as
«afinidades civilizacionais», em si mesmas muito antigas, ficaram livres para
se manifestarem. Além disso, a globalização enfraquece as identidades puramente
locais e nacionais, e estimula sentimentos de afinidade cultural mais vastos. O
resultado é que a Humanidade, não se dissolvendo numa única família, se
organiza hoje em comunidades amplas que têm raízes muito antigas na história.
As civilizações são «básicas», diz Huntington, mais fundamentais do que
quaisquer ideologias modernas, com raízes históricas mais profundas. As
metáforas biológicas que o autor usa para falar das civilizações (referências
aos laços do «sangue», à «família») reforçam a impressão de que nos remete para
uma explicação naturalista. Sabemos que as civilizações existem, embora porque
é que existemnão seja explicado. As identidades civilizacionais são como uma
«segunda natureza» da espécie humana.
Ora, as civilizações não são entidades materiais, nem são directamente agentes
políticos exercendo controlo sobre forças armadas, como estados. São filtros,
afinidades que emergem entre nações; são factores ideológicos, imateriais,
difíceis de demonstrar. Identificar civilizações não é uma tarefa evidente: a
questão de saber que civilizações existem, e onde é que elas se manifestam, é
altamente controversa. O Choque das Civilizações está repleto de exemplos, do
imediato pós-Guerra Fria, em que as civilizações se manifestam com uma força
decisiva na política internacional. Mas a escolha dos exemplos é selectiva, e a
sua interpretação controversa. Huntington vê, por exemplo, na venda de armas da
China ao Irão sinais da constituição de um eixo sino-islâmico, mas não vê na
venda de armas dos Estados Unidos à Arábia Saudita um eixo islamo-cristão.
Interpreta assim acontecimentos perfeitamente convencionais de realpolitik em
termos «civilizacionais». Também aceita como boa a tentativa de Saddam Hussein
de converter a I Guerra do Golfo num combate entre fiéis e infiéis, dando
dignidade religiosa a um conflito puramente político, e exagera o envolvimento
de muçulmanos estrangeiros na Guerra da Bósnia.
Além disso, as características que Huntington atribui a cada uma das
civilizações são também discutíveis. Baseando-se num inquérito conduzido em
mais de setenta países e que abarca mais de 80 por cento da população mundial,
os politólogos Ronald Inglehart e Pippa Norris confirmam a existência de
diferenças culturais significativas entre o mundo islâmico e o mundo ocidental.
Mas estes politólogos notam que as divergências não dizem respeito aos valores
políticos (o apoio à democracia é tão expressivo no mundo islâmico quanto no
Ocidente) e sim quanto ao problema das relações entre homens e mulheres.
Inglehart e Norris chamam-lhe um «choque sexual de civilizações», um aspecto
que Huntington, na sua tese sobre o Choque, significativamente omite.
Ao propor-se estabelecer, sem suficiente suporte empírico, as características
que definem cada civilização, Huntington expõe-se à crítica de que a sua
concepção das civilizações é uma pura construção ideológica. Ao aceitar que a
democracia e os direitos humanos são apenas valores ocidentais, a sua tese
presta-se a ser bem acolhida por líderes autoritários, que se permitem definir
eles mesmos a natureza autêntica das respectivas civilizações, mas agora com a
bênção teórica de Huntington. Admitindo que as civilizações existem, como é que
apuramos o núcleo essencial que constitui cada uma delas? Com a sua retórica
primordialista, Huntington vê as identidades civilizacionais como praticamente
imutáveis, perenes através da História; e assim faz da história humana o
desenrolar perpétuo das mesmas disputas, cujo conteúdo propriamente político é
esvaziado. Os povos combatem-se por causa de divergências culturais enraizadas
desde há séculos ou milénios. Huntington divulga concepções míticas sobre a
identidade e sugere que a natureza de entidades políticas (estados, alianças,
blocos) se encontra nos livros sagrados de cada civilização.
Uma crítica ainda mais radical é a de Amartya Sen, que assinala que, com
frequência, aqueles que criticam Huntington acabam involuntariamente por lhe
dar razão. Ao contestarem a definição que o politólogo de Harvard dá dos
valores de uma civilização, caem na ratoeira de propor uma outra versão desses
valores, tomando também cada civilização como um bloco, a que atribuem uma
identidade política unívoca. Aqueles que afirmam, por exemplo, que os
muçulmanos não são violentos, mas pacíficos, que a verdadeira natureza do islão
é a paz, acabam, tanto quanto Huntington, por procurar em livros sagrados a
«natureza essencial» dos povos e por atribuir a autoridades religiosas o poder
de definir identidades políticas: «Os clérigos muçulmanos [ ] são então
tratados como porta-vozes ex officio do chamado mundo islâmico [ ]. De repente,
o mundo é visto, não como uma série de povos, mas como uma federação de
religiões e civilizações.[1]
Os promotores da paz mundial através da paz entre «civilizações» não fazem mais
do que reproduzir a hipótese do Choque num espelho invertido.
O ESTRANHO CASO DA AMÉRICA LATINA
Pode-se criticar a definição que Huntington propõe dos valores que definem cada
civilização. Mas pode-se também, além disso, questionar a própria existência
das civilizações enumeradas por Huntington. Faz sentido falar de uma
civilização eslavo-ortodoxa? (O facto de a Bulgária, a Roménia, a Grécia e o
Chipre serem hoje membros da União Europeia constitui uma anomalia?) Todo o
continente africano ao sul do Sara integra uma única civilização? É possível
falar em termos globais numa «civilização islâmica», abstraindo das enormes
diferenças que separam árabes e persas, indonésios e paquistaneses, turcos e
curdos, xiitas e sunitas? No caso africano, o próprio Huntington admite
dúvidas; noutros casos, assinala que as civilizações têm níveis variáveis de
coesão interna, e que um dos casos mais fracturados é o do islão.
Sem espaço para discutir tudo, gostaria de chamar a atenção para um exemplo
especialmente intrigante, o da América Latina. Huntington [2] reconhece que,
tal como a América do Norte, a América Latina é descendente da civilização
europeia. Por quatro motivos, porém, atribui-lhe um estatuto separado: a) a
América Latina «teve uma cultura corporativista, autoritária, que a Europa teve
em muito menor grau»; b) ela é quase exclusivamente católica, praticamente não
conheceu os efeitos da Reforma protestante; c) o seu desenvolvimento económico
não tem seguido o padrão dos «países norte-atlânticos»; d) incorpora culturas
indígenas significativas, designadamente no México, na América Central, no Peru
e na Bolívia.
Esta lista é surpreendente, porque (pelo menos até à adesão à cee) Portugal e
Espanha parecem encaixar perfeitamente nos três primeiros critérios; e Brasil,
Argentina e Chile tão-pouco encaixam no quarto. Devemos por isso juntar
Portugal e Espanha à civilização latino-americana? Ou aceitar que a entrada das
nações ibéricas na União Europeia fez delas, na melhor das hipóteses, «países
dilacerados», estados cujas elites procuram alterar a identidade civilizacional
dos seus países? Mas repare-se que até a Itália e a França partilham algumas
das características que definem a América Latina e a separam do Ocidente: são
países de clara maioria católica, que só graças a intervenções políticas
directas efectuadas no pós-II Guerra Mundial tiveram experiências autoritárias
relativamente curtas e seguiram um modelo económico mais ou menos parecido com
o da Europa do Norte. Ora: pode a identidade civilizacional, essa origem
profunda da natureza dos povos, estar tão dependente de recentes contingências
políticas?
Para deslindar as inconsistências da «civilização latino-americana», parece
necessário olhar para outro lado na obra de Huntington. Uma das preocupações
centrais do autor diz respeito ao perigo que a identidade dos Estados Unidos
actualmente corre; de facto, é este o tema do seu livro seguinte, o último que
viria a publicar (Who Are We? The Challenges to American National Identity).
Huntington teme que os Estados Unidos se tornem incapazes de definir claramente
a sua pertença ao Ocidente e que se deixem resvalar para o que chama uma
identidade «meramente política», assente em princípios constitucionais
abstractos de liberdade, igualdade e reconhecimento dos direitos das minorias,
mas não civilizacionais. O grupo que põe em risco a identidade dos Estados
Unidos enquanto país ocidental são os imigrantes «hispânicos», do México e da
América Central, que, concentrados em algumas regiões de fronteira, mantêm
fortes laços com os países de origem e não falam inglês; além disso, têm taxas
de natalidade superiores às da população americana «tradicional», de tal
maneira que podem vir a tornar-se maioritários em estados como a Califórnia.
Huntington acredita que a proximidade geográfica e as facilidades de
comunicação levam estes imigrantes a resistirem à assimilação pela maioria
anglo-protestante, ao contrário do que aconteceu com as populações que no
passado vieram da Europa. Se os Estados Unidos cederem «aos cantos de sereia do
multiculturalismo», tornar-se-ão um país sem identidade num mundo organizado
por afinidades culturais; um fóssil ideológico num mundo de civilizações.
O que sobressai de tudo isto é que a civilização latino-americana vê a sua
identidade definida, não de acordo com uma lógica interna, mas segundo um
critério de exclusão: aquilo que não cabe ou não deve caber no Ocidente. Mais
uma vez, Huntington não oferece dados empíricos que suportem a tese de uma
discrepância entre os valores da maioria anglo-protestante e os dos imigrantes
hispânicos nos Estados Unidos. E muito menos é capaz de definir uma civilização
unida pelas afinidades dos habitantes que ocupam o vasto território que vai do
México à Argentina; há uma civilização que é organizada, por assim dizer, «pela
negativa».
Problemas similares ocorrem noutros pontos da tese do Choque. Huntington
acredita, por exemplo, estar actualmente a emergir um «eixo islamo-confuciano»
na política internacional; mas Kishore Mahbubani, antigo embaixador de
Singapura nas Nações Unidas, assinala que
«a verdadeira tragédia de sugerir uma ligação islâmico-confucionista
é que isso oculta a natureza fundamentalmente diferente dos desafios
que estas forças colocam. O mundo islâmico terá grandes dificuldades
em se modernizar. Até que o consiga, a sua turbulência transbordará
para o Ocidente. O Extremo Oriente, incluindo a China, está preparado
para alcançar a paridade com o Ocidente»2.
O único prisma pelo qual a China e o islão aparecem como um eixo é o de duas
civilizações que alegadamente desafiam o predomínio do Ocidente. São
civilizações «ascendentes»; mas «ascendentes» de formas muito diversas,
constituindo ameaças de natureza distinta.
CONCLUSÃO
O Choque das Civilizações teve um impacto tremendo sobre o debate político
internacional no pós-Guerra Fria; e não é impossível que tenha tido também um
impacto significativo sobre a própria política internacional neste período.
Consistiu num estímulo intelectual poderoso que abalou a autocondescendência
característica dos anos 1990. Porém, o projecto de compreender a política
internacional emergente do ponto de vista de um paradigma cultural revelou-se
frágil e reducionista.
Num novo artigo na Foreign Affairs, em 1999, o próprio Huntington introduziu
ressalvas importantes, deixando de encarar as civilizações como unidades
simultaneamente culturais e políticas. Embora mantenha a tese de que a
afinidade cultural favorece a cooperação entre estados, assinala que as
rivalidades de natureza puramente política podem funcionar em sentido
contrário. Uma potência regional secundária pode ter interesse em aliar-se com
a potência principal de uma outra civilização, a fim de contrabalançar o poder
dominante na sua própria região, mesmo que com este partilhe afinidades
«civilizacionais». Assim, é actualmente possível que os Estados Unidos criem
laços fortes com a Ucrânia (para contrabalançar a Rússia), com a Argentina
(para contrabalançar o Brasil) ou com o Japão (para contrabalançar a China),
mesmo que Ucrânia e Rússia, Brasil e Argentina, Japão e China sejam pares de
estados com grandes afinidades civilizacionais. O retrato da ordem mundial que
isto nos oferece está muito longe de uma geopolítica das civilizações: os
agrupamentos civilizacionais são afinal fracturados internamente pelo facto
quase inescapável da sua base regional, pela lógica da rivalidade entre
potências de uma mesma região.
Mesmo supondo que as civilizações existem, mesmo admitindo que elas são aquelas
que Huntington diz que são e com as características que lhes atribui, não é
possível tratar entidades culturais como agentes políticos. As afinidades
culturais são relevantes, mas a política internacional é outra coisa; os
impulsos da cultura e da disputa pelo poder não coincidem. Em suma: por
estimulante que seja (e é), aquilo que o livro de Huntington não oferece é um
«paradigma», uma grelha de leitura viável sobre a política internacional no seu
conjunto.