O general «renitente»
O general «renitente»
António Paulo Duarte
LUÍS NUNO RODRIGUES
Marechal Costa Gomes. No Centro da Tempestade. Biografia
Lisboa, Esfera dos Livros, 2008, 405 páginas
UM GENERAL POLÍTICO
O género biográfico não era, há vinte anos, acarinhado ou sequer grandemente
considerado pela historiografia portuguesa. Alguém observou então que as
grandes personalidades da história portuguesa não tinham merecido estudos de
relevo. Havia, de facto, um profundo menosprezo pelo género biográfico,
considerado como uma coisa menor na produção historiográfica. Em menos de uma
década, no entanto, o género biográfico passou de desprezado a apreciado, e
começou a ser acarinhado pelos historiadores e pelo público em geral,
acompanhando a mudança dos fundamentos do pensamento histórico, que da busca
das grandes estruturas e movimentos subterrâneos do devir humano passou, de
novo, a revalorizar o indivíduo, o acontecimento e os factos políticos.
Ademais, a narrativa biográfica, pela sua idiossincrasia própria, presta-se
sobretudo ao estilo fluido do romance, o que a torna mais atraente para o
público em geral.
A revalorização dos fenómenos políticos na análise historiográfica,
curiosamente catalisada, de início, pela busca das suas estruturas, estimulou o
estudo dos acontecimentos e das personalidades neles envolvidas. As
personagens, os «grandes homens», retornavam à História.
A biografia escrita por Luís Nuno Rodrigues sobre o marechal Costa Gomes
exprime bem este retorno da política e das «grandes personalidades» à
historiografia. Na realidade, a despeito de se afirmar como uma biografia, a
obra de Luís Nuno Rodrigues estuda essencialmente a personagem político-militar
do marechal Costa Gomes: 90 por cento do livro dedica-se à análise de um curto
período da vida do biografado, um período que vai de finais dos anos 1950 a
1976, quando este deixa a Presidência da República, cerca de uma quinzena de
anos, numa vida que se prolongou por oitenta e sete anos. E nesta quinzena de
anos, o eixo da narrativa centra-se ainda mais no ano e meio em que o marechal
Costa Gomes foi Presidente da República, no meio da convulsão política
engendrada pela Revolução de Abril. Mas este curto período é a época em que o
marechal Costa Gomes participa e tem influência decisiva na vida pública e
política portuguesa.
A biografia de Luís Nuno Rodrigues é, por isso, essencialmente, uma biografia
política do Marechal Costa Gomes. Mas uma biografia que merece o título, pois
procura fazer justiça à memória do marechal Costa Gomes, vindicando a sua
personalidade histórica.
A APRENDIZAGEM DA ARTE DA «PRUDÊNCIA»
A figura que sai das páginas de Luís Nuno Rodrigues é a de um general
renitente. Da obra ressalta, desde logo, que a carreira militar de Costa Gomes
deriva não tanto de um gosto pelas armas, mas sobretudo de uma evolução imposta
pelas necessidades materiais da família. Do Colégio Militar à Academia Militar,
o percurso de Costa Gomes resulta de uma evolução natural imposta pelas
condicionantes familiares. A carreira militar não satisfazia em pleno Costa
Gomes, que acabou por frequentar a Universidade do Porto, aí concluindo a
licenciatura em Ciências Matemáticas (1939-1944). Este facto não o impediu de
percorrer, ainda jovem, um extraordinário caminho como militar, ganhando
prestígio no meio castrense, não deixando, contudo, de evidenciar uma
renitência: a renitência ao uso e ao abuso da violência. Para o futuro marechal
Costa Gomes, a violência (a força armada) só devia ser aplicada enquanto fosse
útil ao equilíbrio e à paz na sociedade. O uso excessivo da violência, assim
como a utilização da violência de forma inútil, eram-lhe repugnantes.
Na lógica do marechal Costa Gomes, cabia aos militares dosear o uso da
violência, tendo sempre como fim assegurar os objectivos de ordem e paz social.
Esta visão da utilização da violência, ou seja, da força armada, é, pode dizer-
se, axiomática para o marechal Costa Gomes, e observar-se-á em todos os
momentos em que o biografado teve de comandar forças militares, com o objectivo
de defrontar determinadas ameaças bélicas ou revolucionárias: em Macau, na
Índia, enquanto subsecretário de Estado do Exército, e, mais tarde, aquando da
Guerra Colonial em Moçambique e em Angola, assim como nas eleições de 1958 e
durante o prec. É esta renitência à utilização da força armada, da violência '
que só deve ser aplicada enquanto tiver utilidade social para a paz ', que
explica, desde o início, a hostilidade do então jovem Costa Gomes às armas
nucleares. De que serviriam as armas, quando o seu uso tinha como único
resultado o extermínio da humanidade?
Em Macau, o então capitão Costa Gomes demonstrará, desde cedo, esta postura. Em
1949, Portugal decidiu reforçar as defesas de Macau. O triunfo dos comunistas
na Guerra Civil Chinesa engendrara o receio de uma invasão da colónia
portuguesa. E, como os britânicos estavam também a fortalecer a defesa do
território de Hong Kong, Lisboa decidiu enviar para Macau, contra o parecer do
governador-geral, o comandante Albano de Oliveira, uma força de cerca de seis
mil homens. Este último considerava que, independentemente de Portugal enviar
seis mil, 12 mil ou o Exército português inteiro, os chineses, se quisessem,
invadiriam Macau sem problemas. Como subchefe do Estado-Maior da força
expedicionária, o capitão Costa Gomes acabou por concordar com o prisma do
governador e propôs a redução da guarnição de Macau a uma força essencialmente
de controlo da pirataria e de garantia da paz e da ordem social (e que
controlasse rapidamente uma sublevação). Quando ambas estivessem asseguradas,
não dariam pretexto algum à China para justificar uma invasão de Macau. Era o
uso útil e aceitável da força. E nada mais se requeria. Lisboa acedeu à visão
do governador-geral e do subchefe do Estado-Maior da força expedicionária, e a
guarnição militar foi paulatinamente reduzida.
Uma década depois, a postura do então tenente-coronel Costa Gomes, agora também
subsecretário de Estado do Exército, não mudara. Tal como em Macau, também para
o biografado a Índia portuguesa era indefensável, pelo que só requeria o
território uma pequena guarnição que assegurasse a ordem interna da Índia
portuguesa. Opor-se a uma invasão era uma impossibilidade que não valia a pena
intentar: «não tínhamos meios, nem espaço para manobrar. Nós tínhamos de ficar
agarrados ao sítio onde estivéssemos a apanhar, só a apanhar.» É o próprio
marechal Costa Gomes que diz, e Luís Nuno Rodrigues cita o biografado, que a
rendição de Vassalo e Silva foi fruto das conversas tidas com o subsecretário
do Exército aquando da sua passagem por Goa em 1960.
Luís Nuno Rodrigues refere também um facto nebuloso na biografia do marechal
Costa Gomes. Este, depois de ter vindo de Macau e de ter passado pela nato,
tornou-se um dos elementos de confiança do general Júlio Botelho Moniz,
passando a ser chefe de Estado-Maior de um quartel-general operacional na I
Repartição da Defesa Nacional em 1958. Coube ao então tenente-coronel Costa
Gomes o policiamento das acções da candidatura do general Humberto Delgado. A
sensação que a obra de Luís Nuno Rodrigues dá acerca da postura do marechal
Costa Gomes relativamente à candidatura do general Humberto Delgado é a de que
ele não gosta de se lembrar do que se passou nessa data. De alguma forma,
transparece a ideia de que Costa Gomes pretende camuflar, ou mesmo olvidar, o
facto de ter estado com o regime do Estado Novo contra o candidato
oposicionista. Não seria de admirar. O marechal Costa Gomes esteve sempre do
lado da ordem e da paz social, e as referências a um general Humberto Delgado
com «uns parafusos um pouco fora do lugar» e com «emotividade à flor da pele»
não parecem abonar a personalidade do candidato oposicionista aos olhos do
biografado. A convulsão por ele engendrada com a famosa frase «obviamente,
demito-o» teria impulsionado o tenente-coronel Costa Gomes para a ordem e a paz
social. Estava de acordo com os seus impulsos: entre o perigo de uma convulsão,
induzido por um general emotivo que produzisse um arrebatamento de violência
política e social, e um regime que garantiria a ordem e a paz, o tenente-
coronel Costa Gomes sabia o caminho que tinha de trilhar.
Eis a razão pela qual falhou a abrilada. Como é sabido, em Abril de 1961, uma
série de manobras políticas efectuadas pelo ministro da Defesa, Botelho Moniz,
apoiado, entre outros, pelo subsecretário do Exército, Costa Gomes, procuraram
impor ao Presidente da República, Américo Thomaz, a demissão do Presidente do
Conselho, Oliveira Salazar. Caso este não acedesse ao pedido pela ameaça do uso
da força militar, impor-se-ia o derrube da Presidência do Conselho e da
Presidência da República ao mesmo tempo. O pronunciamento militar não tinha por
fito acabar com o regime, mas visava, através da substituição das figuras do
topo do governo, assegurar uma transição pacífica, militarmente controlada, do
poder em Portugal, uma transição na ordem e na paz social. Luís Nuno Rodrigues
salienta de forma evidente esta posição ao citar as palavras de remate do
marechal Costa Gomes, ao reflectir décadas depois sobre o fracasso da Abrilada:
«(a decisão de recorrer ao uso da força) estava para além de todos os planos
[ ] e teria resultados mais do que duvidosos». A violência só seria aplicada se
os fins servissem a paz e a ordem: causar vítimas, sem garantias de eficácia e
sucesso, era para o marechal Costa Gomes repugnante e pouco sábio de um ponto
de vista estratégico.
A «GUERRA CONTIDA» OU A ARTE DE VENCER A GUERRA SUBVERSIVA
Esta postura do biografado explicita por que razão foi ele o chefe militar que
melhor soube aplicar a teoria da guerra contra-subversiva. Luís Nuno Rodrigues
explana de forma brilhante a acção do então general Costa Gomes, como
comandante militar da 2.ª Região Militar de Moçambique, entre 1965 e 1969
(primeiro, como segundo-comandante, depois, como comandante) e, seguidamente,
como comandante da Região Militar de Angola. Para o general Costa Gomes, todo o
desiderato da acção bélica na guerra contra-subversiva era o de servir as
populações (e temos aqui, de novo, o problema da ordem e da paz social). A
guerra, dizia o biografado, devia ser feita «não contra os guerrilheiros», mas
«a favor das populações». Em suma, defender as populações, afastando-as da
guerrilha, assegurando o seu bem-estar, a ordem e a paz social. A acção bélica,
a utilização da violência, devia ser o mais possível focalizada, mobilizando a
nosso favor as populações. Para o general Costa Gomes, a violência exercida
sobre as populações contribuía mais para a guerrilha e para a subversão e era
uma desvantagem para Portugal. Mesmo a africanização da guerra era vista pelo
general Costa Gomes como um instrumento de comprometimento das populações com a
causa de Portugal.
Em Angola, o general Costa Gomes centralizou sobre si a condução total da
conflagração. Isso implicou o relacionamento, que o próprio biografado
sublinha, com a pide, que ele considerava imprescindível no campo das
informações. A utilização controlada da pide, como a africanização da guerra,
reflectiam a perspectiva do comandante-chefe, segundo a qual na contenda «não
tínhamos por principal missão combater os movimentos de libertação, mas
recuperar as populações».
Há uma determinada ironia da história relativamente à posição do marechal Costa
Gomes na Guerra Colonial: é que, dos grandes cabos de guerra que imprimiram a
sua marca na história da Guerra Colonial ' Spínola, Kaúlza de Arriaga e Costa
Gomes ', foi este o mais renitente em utilizar a força bélica em grandes e
pequenas operações, aquele que mais êxito teve em termos operacionais, em
termos bélicos. É sobrelevado por quase todos os que estudaram, de um ponto de
vista estratégico, as campanhas de Guerra Colonial, que as acções propriamente
bélicas do biografado tiveram relevantes efeitos para mitigar e para mirrar a
capacidade militar e operacional dos movimentos de libertação. No caso de
Angola, é reconhecido por quase todos que, em 1974, o território estava
praticamente pacificado e os movimentos de guerrilha tinham em vista a sua
capacidade militar reduzida a quase nada[1]. Para um general que afirmava
amiudadamente que a solução da guerra só podia ser política, este êxito
operacional não deixa de ser uma imagem paradoxal e de lastrar uma controvérsia
ainda hoje não assumida: poderia Portugal ter tido um maior êxito na Guerra
Colonial?
UM «CAMPO DE BATALHA» POLÍTICO (1974-1975)
A Presidência da República seria a prova de força desta atitude política e
militar. Na realidade, a obra de Luís Nuno Rodrigues concentra-se neste ano e
meio da vida do marechal Costa Gomes. Numa sólida obra de 350 páginas de corpo
de texto, cerca de 200 são dedicadas ao período que vai do 25 de Abril de 1974
a 14 de Julho de 1976.
Luís Nuno Rodrigues refere com frequência que os propósitos do marechal Costa
Gomes durante a sua estada na Presidência da República foram assegurar o
esfriamento das tensões, aplacar as dissensões e obviar ao desencadeamento de
uma guerra civil, com o fito último de garantir a transição para uma democracia
socialista pluralista. O autor da biografia nunca explícita bem o sentido do
termo que era empregado pelo marechal Costa Gomes, mas ao longo do texto
entende-se perfeitamente que o biografado desejava, efectivamente, que o povo
tivesse o direito de escolher as opções de governação, que se arquitectasse
pela primeira vez um efectivo sistema democrático em Portugal, no qual a
população pudesse, em consciência, votar naqueles que desejava para formar
governo. Para isso, o Marechal Costa Gomes tudo fez com vista a assegurar que
se realizassem as eleições previstas no programa do Movimento das Forças
Armadas. A dimensão socialista que o marechal Costa Gomes igualmente
apadrinhava referia-se aos direitos sociais do povo e dos trabalhadores. Neste
ponto, o marechal era um estrénuo defensor de uma via própria para a democracia
portuguesa, em que, lado a lado com o pluralismo político, existissem
igualmente direitos sociais, os mais avançados possíveis.
O autor da biografia dá a entender que, do ponto de vista do biógrafo, o
marechal Costa Gomes foi um dos grandes responsáveis pela instauração da
democracia em Portugal, fazendo-lhe plena justiça. Repetidamente, o Presidente
da República foi acusado, à época, de estar sob controlo das forças radicais de
esquerda, principalmente do pcp e dos seus aliados. Luís Nuno Rodrigues
desmonta esse mito de Abril e ajunta em defesa da sua tese não só uma poderosa
narrativa dos eventos desse período, conjugando o contexto geral, nacional e
internacional, bem como o papel do Marechal Costa Gomes nos acontecimentos que
se iam desenrolando, como suporta o seu texto em numerosas e variadas fontes,
nacionais e estrangeiras, nomeadamente, os arquivos norte-americanos. Para ele,
aquilo que aparecia aos olhos dos coevos como fraqueza ou tergiversação, como
conivência ou subordinação, mais não era do que uma estratégia política com
vista a aplacar as tensões, adaptando-se ao vento dominante, mas sempre tendo
em mira a contenção do radicalismo. No fundo, aquilo que muitas vezes parecia
ser uma conivência com as forças mais radicais era simplesmente uma estratégia
de contenção das mesmas: dava-lhes algo, com vista a aplacá-las, a desmuniciá-
las e a assegurar a distensão social.
Os discursos coevos do marechal Costa Gomes reflectem a sua faceta política: as
palavras mais referidas por Luís Nuno Rodrigues são «paz, ordem, trabalho». O
autor da biografia cita, com frequência, os discursos do biografado,
estendendo-os às vezes por alguns parágrafos. Se, por um lado, as extensas
citações dos discursos podiam tornar o texto pesado, por outro lado, são de uma
extrema utilidade para quem lê a biografia, pois reflectem, de viva voz, a
visão que encaminhava o marechal Costa Gomes. Como sempre, desde a primeira
hora, reduzir a violência ao mínimo possível e obstaculizar qualquer conflito
sangrento era a chave do comportamento do biografado. A sombra de uma guerra
civil, o mais terrível dos conflitos, dizia o marechal Costa Gomes, algures,
impunha-lhe o controlo das tensões. É isto que explica o comportamento político
do marechal Costa Gomes. O que o fazia, às vezes, parecer errático e
tergiversador, mais não era do que a busca do vento dominante. Luís Nuno
Rodrigues traz, em defesa do biografado, alguns depoimentos de personalidades
da época. Almeida Santos, um dos que depõem, passadas décadas, a favor do
marechal Costa Gomes, é sintomático ' «uma maneira muito pessoal de encarar e
tentar resolver as coisas: recusando-se a encará-las no ponto crítico,
deixando-as amadurecer, e indo encará-las mais adiante, em plena fase
desinflamatória».
Só uma vez, parece, o presidente da república Costa Gomes não se apercebeu bem
do movimento do vento. Foi aquando da formação do V Governo Provisório, na qual
renovou a confiança em Vasco Gonçalves para gerir o governo. O V Governo
Provisório acabou, assim, por ser ainda mais provisório do que o nome
indiciava, tendo o Marechal Costa Gomes apelidado-o, logo na tomada de posse,
de «governo de passagem». O marechal Costa Gomes não se apercebera logo de como
a correlação de forças pendia cada vez mais para o lado dos moderados. O
governo que imediatamente se lhe seguiu, tendo como chefe do executivo o
Almirante Pinheiro do Azevedo, era um óbvio triunfo dos moderados.
A atitude do marechal Costa Gomes, em 25 de Novembro de 1975, expressa a sua
postura habitual. Durante o efervescente Outono de 1975, o Presidente da
República avisara taxativamente todas as forças em presença: sairia com as
forças de que dispusesse à altura, para impedir qualquer acção violenta de um
dos grupos político-militares em disputa. Não obstante, escudaria a preparação
e o planeamento operacional dos moderados (na altura, em redor do grupo dos
nove). O marechal Costa Gomes disponibilizara ao major Ramalho Eanes e ao
Capitão Loureiro dos Santos, encarregados de planear um contra-golpe caso a
extrema-esquerda saísse para a rua, uma sala no cemgfa. Disse, mais tarde, que
era uma forma de controlar igualmente a acção dos moderados. Não obstante, no
dia 25 de Novembro, perante a notícia de que a extrema-esquerda militar se
movimentara, não implementou logo, pese a pressão que os moderados militares
lhe fizeram, o plano de contra-golpe. Como habitualmente, soube esperar para
que o fruto caísse maduro. Para isso, não só chamou a conversações o pcp, que
em troca de algumas garantias desmobilizou as suas gentes, como convocou os
comandantes das unidades rebeladas à Presidência da República, contribuindo
assim para a acalmia de algumas das forças sublevadas. Conteve ainda Otelo
Saraiva de Carvalho e o copcon. Só ao fim da tarde, travada boa parte da
extrema-esquerda civil e militar, isolados os elementos que desta restavam e
que não se tinham desarmado, o marechal Costa Gomes deixou aplicar o
contragolpe previsto pelos moderados. Os reduzidos elementos que restavam à
extrema-esquerda militar foram, em geral, obrigados a capitular, quase sem
derramamento de sangue, o que não impediu que o marechal Costa Gomes deplorasse
algumas perdas de vidas produzidas pelo 25 de Novembro.
A democracia, da qual o marechal Costa Gomes foi um dos principais obreiros,
não lhe fez justiça. É certo que o promoveu a marechal em 1982, parco prémio
para os feitos políticos e militares de Costa Gomes. A presidência esfiapou-se-
lhe das mãos em 1976. Luís Nuno Rodrigues diz que o marechal Costa Gomes
declinara a sua manutenção na Presidência da República. É provável, todavia,
que o marechal Costa Gomes sentisse que era algo que lhe era devido. Não
obstante, faltaram-lhe os apoios políticos para nela permanecer. Os partidos
moderados, à esquerda e à direita, apoiaram a candidatura do então major
Ramalho Eanes, que acabaria por se sagrar como o primeiro Presidente eleito da
nova democracia portuguesa.
O marechal que ajudara, de forma decisiva, a implantar a democracia não teve o
êxito do colega que facilitou a instituição da ditadura. O marechal Costa Gomes
abandona a Presidência da República em 1976, e podia em seu abono referir as
palavras de outro grande cabo-de-guerra português, Afonso de Albuquerque, para
se justificar e justificar a injustiça que lhe faziam: «mal com el-rei por amor
dos homens, mal com os homens por amor de el-rei».
O marechal Costa Gomes na Presidência da República nunca foi um chefe
incontestado, um aglutinador de todas as tendências, como Carmona. Teve de ser
um conciliador das partes em profunda desavença, com visões do mundo radicais e
em defrontação, algumas verdadeiramente inconciliáveis. Esta necessidade de
aplacar os esquentamentos gerados por uma situação política muito fluida, como
foi o prec, de obstaculizar atitudes que engendrassem a divisão irremediável do
país em campos armados opostos, fez que o marechal Costa Gomes nunca ficasse
bem visto pelas partes em digladiação. Elas queriam que ele as servisse. Ele
não podia servir nenhuma em particular, pois tinha de estar minimamente bem com
todas para aplacar o seu esquentamento político e ideológico.
Por isso, em 1976, todas as partes políticas o abandonaram. O êxito do Marechal
Costa Gomes a assegurar que todas teriam lugar na nova democracia e a impedir
uma guerra civil foi pago com o olvido. O marechal Carmona, chefe incontestado
do exército, promotor da tirania que se seguiu à Ditadura Militar, assegurou
uma longuíssima Presidência da República, que só a morte lhe arrebatou (cerca
de vinte e cinco anos, 1926-1951).
Provavelmente o maior cabo de guerra de Portugal desde o marquês de Minas, que,
em 1706, conquistou Madrid, o marechal Costa Gomes saiu da Presidência da
República pela porta das traseiras. A biografia de Luís Nuno Rodrigues faz, no
entanto, plena justiça à personalidade do marechal Costa Gomes, inserindo-se
perfeitamente no ideal de a memória ter uma função vindicativa. Pelas páginas
da obra reconstrói-se, no verdadeiro sentido do labor histórico, a vida e a
obra de uma das personalidades mais marcantes e influentes do século xx
português.
NOTA
[1] Cf., por exemplo, a obra de Nunes, António Pires ' Angola, 1966-1974,
Vitória Militar no Leste. Lisboa: Prefácio, 2002.
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