Adriano Moreira: entre o luso-tropicalismo e a autonomia
Adriano Moreira: entre o luso-tropicalismo e a autonomia
Pedro Martins
Mestrando em História do Século XX no Departamento de História da FCSH-UNL.
MOREIRA, ADRIANO
A Espuma do Tempo. Memórias do Tempo de Vésperas.
Lisboa, Almedina, 2008, 467 páginas
A Espuma do Tempo. Memórias do Tempo de Vésperas é um relato memorialístico
assinado por Adriano Moreira, uma das figuras marcantes na história portuguesa
da segunda metade do século XX. Proveniente da área do direito, onde terminou a
sua licenciatura em 1944, Adriano Moreira cedo voltou a sua carreira académica
e profissional para a vertente do direito colonial. Da sua carreira política
destaca-se, obviamente, o período em que tomou a pasta do Ultramar (Abril de
1961 a Dezembro de 1962) e que ficou marcada por um conjunto de decretos
inovadores, particularmente os respeitantes à abolição do regime do indigenato,
à política laboral e à descentralização de alguns órgãos administrativos e
económicos nas províncias ultramarinas. Porém, a sua carreira ministerial seria
de curta duração, por um conjunto de circunstâncias que o autor explica no
livro. Até ao final do Estado Novo, não mais voltaria a ocupar um cargo
político, continuando a sua carreira académica e desenvolvendo iniciativas
culturais de envergadura nacional e europeia. Após o 25 de Abril foi alvo de um
processo de saneamento que o levou a abandonar a docência universitária em
Portugal e a rumar ao Brasil. Regressado ao País poucos anos depois, a sua vida
política estaria ligada ao CDS.
JUVENTUDE E INÍCIO DA CARREIRA PROFISSIONAL
Adriano Moreira não faz uma abordagem propriamente cronológica dos
acontecimentos, remetendo frequentemente para factos e conjunturas passados ou
futuros em vários momentos da narrativa. As duas primeiras partes da obra são
complementares e revelam bastante sobre o contexto sociocultural em que Adriano
Moreira cresceu, entre a sua aldeia natal em Trás-os-Montes e o ensino primário
e liceal em Lisboa. As descrições que o autor faz da sua aldeia compõem um
quadro quase idílico da vida no campo e da sociedade nortenha, apesar da
pobreza em que muitas famílias viviam. A propósito disto, o autor não explica
claramente como é que conseguiu prosseguir a carreira estudantil se a família
possuía poucos meios
1
, apenas afirmando: «sei hoje o que isso deve ter representado de coragem em
vista dos fracos rendimentos» (p. 20). Um elemento essencial que moldou a sua
personalidade foi a educação profundamente nacionalista e colonialista herdada
do ensino republicano. Adriano Moreira considera que o ensino do Estado Novo
estava cheio de lacunas e que este foi um dos factores que levou a que, em
1961, quando explodiu a crise colonial, o país não se reconhecesse na
«realidade multicontinental», desconhecesse o que era o Ultramar e que houvesse
visões muito distintas sobre o conceito de «Pátria» (pp. 23-24).
Já no contexto da II Guerra Mundial, Adriano Moreira ingressa na Faculdade de
Direito de Lisboa, onde teve como docentes Marcello Caetano, Paulo Cunha e
Rocha Saraiva, este último considerado pelo autor como o melhor de todos, pela
maneira como expunha as aulas de Direito Internacional – podemos encontrar aqui
uma das primeiras referências de Adriano Moreira para a formação de um
pensamento profundamente atento às relações internacionais
2
. O autor alude também às suas futuras divergências com Marcello Caetano – no
que respeita à visão eminentemente racista do futuro ministro das Colónias e à
introdução da assimilação parcial dos indígenas, cujo estatuto Moreira viria a
revogar em 1961.
Após a conclusão do curso em 1944, Adriano Moreira estagiou no escritório do
seu antigo professor Jaime de Gouveia, que pertencia a um círculo de juristas
com conexões ao MUD. Esta ligação à oposição democrática valer-lhe-ia um pedido
para organizar a defesa dos militares conjurados que, em 1947, visavam derrubar
Salazar. Na sequência deste golpe nunca concretizado, Adriano Moreira
apresentou uma queixa-crime contra Santos Costa e foi preso no Aljube durante
dois meses. Aqui terminaria qualquer ensaio de o futuro ministro do Ultra-mar
se comprometer com a oposição ao regime, apesar da sua insistência de que este
processo teve um cariz «estritamente profissional» (p. 112).
A propósito dos seus trabalhos, O Problema Prisional do Ultramar(1954) e
Administração da Justiça aos Indígenas(1955), o autor reconhece o conflito que
nele já estava presente entre, por um lado, aquilo que aprendera no meio
académico e a cultura dominante em Portugal e, por outro, a realidade das
colónias. Moreira visitara as colónias aquando da elaboração do Projecto de
Reforma do Sistema Prisional do Ultramar, a convite de Sarmento Rodrigues, uma
das pessoas mais próximas de Adriano Moreira ao longo dos anos seguintes. O
autor refere que esta viagem mudou algumas das suas ideias feitas sobre as
colónias, libertando-o em certa medida do «positivismo jurídico do Estado
corporativo». Não esconde, porém, a sua admiração pela obra dos portugueses
emigrados e o seu sonho de construírem sociedades multirraciais nas colónias.
Este discurso ambíguo permanecerá praticamente ao longo de todo o livro, não se
decidindo Adriano Moreira sobre qual a solução mais correcta para o problema do
Ultramar.
Em 1956, Adriano Moreira era encarregue de defender na Assembleia Geral da ONU
a posição portuguesa face à exigência de descolonizar os «non self-governing
territories». O autor critica a posição contraditória da ONU e procura
demonstrar como a questão era essencialmente política, representando uma
intromissão nos assuntos internos de Portugal, enquanto que os Estados Unidos e
a URSS eram ilibados de pretensões colonialistas. Face ao eclodir da crise
colonial, Adriano Moreira identifica-se como parte de uma «geração de
angústia», em muitos aspectos uma «geração traída» pelo incumprimento das
promessas do fim da II Guerra Mundial (liberdade, respeito pelos povos, fim dos
conflitos), e à qual restava apenas o império colonial como «consolo», este
mesmo império que as duas superpotências queriam agora subtrair à nação
portuguesa (p. 189). Para fazer face a esta crise, Moreira defendia a
necessidade de criar um clima de confiança, de autenticidade, que atraísse as
populações para o Ultramar e evitasse os abusos até aí praticados em relação
aos autóctones.
O MINISTRO REFORMISTA PERANTE A GUERRA
É neste contexto que Adriano Moreira assume a pasta do Ultramar, realizando
desde logo uma viagem a Angola, onde relata as atrocidades cometidas e a
mobilização das populações para o receber. Critica a comunicação social
portuguesa, que logo o apelidou de «ministro sem medo» e nele depositou grandes
esperanças para a resolução da crise. O autor demonstra também a sua reprovação
relativamente ao comportamento da ONU na questão da invasão de Goa,
considerando que as Nações Unidas foram aqui claramente instrumentalizadas em
favor da competição bipolar. Conta também como interveio no sentido de a
República Popular da China poder vir a desempenhar um papel na crise entre
Portugal e a União Indiana, embora sem sucesso.
A peça legislativa que mais celebrizou o ministro do Ultramar foi
indubitavelmente a revogação do Estatuto dos Indígenas (6 de Setembro de 1961),
acto que estabelecia formalmente a igualdade política entre todos os
portugueses, brancos e negros. Moreira afirma que tomou esta medida com o
objectivo de «restabelecer a justiça social [ ], acreditar a autenticidade de
procedimentos do Governo português, e chamar a uma cooperação renovada as
populações» (pp. 245-246). Moreira promulgou ainda o Código do Trabalho Rural
(27 de Abril de 1962), considerado um dos mais avançados da época, bem como o
decreto que proibia as culturas obrigatórias, nomeadamente a do algodão.
Adriano Moreira queixa-se das dificuldades que a comunidade internacional teve
em aceitar a credibilidade destas medidas, devido ao clima de desconfiança
criado. O autor não se estende, porém, quanto aos resultados práticos da
legislação por ele decretada.
Moreira fala das resistências que houve ao seu projecto de criar os Estudos
Gerais Universitários em Angola e Moçambique, nomeadamente por aqueles que viam
os estudos superiores na metrópole como uma das provas da unidade dos espaços
do império, e pelos que defendiam ferreamente a exclusividade metropolitana do
ensino universitário. Além disso, o governador de Angola, general Venâncio
Deslandes, tinha um projecto próprio de criar uma Escola Superior Politécnico –
este projecto foi obviamente recusado por Adriano Moreira, que revela que
Deslandes chegou a pedir a Salazar a criação de um Governo autónomo para
Angola. Deslandes, que também era comandante-chefe das tropas na colónia,
supostamente teria efectuado negociações com as elites angolanas no sentido de
uma possível declaração unilateral de uma independência branca.
Adriano Moreira descreve o ambiente de tensão em que se desenrolou o último
Plenário do Conselho Ultramarino (Outubro de 1962), em que se discutiu a
revisão da Lei Orgânica do Ultramar. O autor refere que, no jogo de bastidores,
já estava em disputa quem sucederia a Salazar. Destaca também o
Comentáriosupostamente redigido por Marcello Caetano que propunha uma solução
federalista para o Ultramar. Na sequência deste plenário, Adriano Moreira pediu
a demissão, depois de uma conversa com Salazar em que este lhe confessou a
impossibilidade de continuar a linha descentralizadora até então praticada,
face às «iniciativas aberrantes que ameaçariam multiplicar-se» (p. 281).
O autor considera que o modelo governativo praticado por Salazar tinha um cariz
autocrático, uma vez que toda a autoridade provinha do Presidente do Conselho.
Moreira insiste na falta de institucionalização do regime, na incapacidade de
as suas instituições funcionarem autonomamente, baseando-se apenas na figura de
Salazar, apoiado pelas Forças Armadas.
SOBRE O FINAL DO REGIME E A DESCOLONIZAÇÃO
Nas suas reflexões sobre os movimentos de descolonização, o autor assinala como
alertou para o perigo do «racismo negro» e do «sovietismo», uma ideologia
imperialista que se aproveitava da vitória sobre o regime nazi para exercer o
seu domínio na Europa de Leste e para fomentar um vazio de poder no Terceiro
Mundo. O fenómeno do Maio de 68 prende também a sua atenção, considerando-o uma
mistura de violência com «maoísmo, anarquismo, desespero, utopismo» (p. 312),
mas sobretudo pelos seus reflexos na juventude portuguesa, no seu combate
contra a guerra colonial e contra o regime. Este fenómeno atingiria o seu auge
na crise estudantil de 1969, na qual Adriano Moreira demonstra compreensão pela
revolta dos alunos e critica ferozmente a atitude de José Hermano Saraiva,
então ministro da Educação. O autor mostra-se crítico em relação àquilo que
muitos consideraram a «primavera marcelista», apontando as contradições entre a
visão colonial de Marcello Caetano e a sua prática política, refém dos mais
diversos interesses.
A propósito do seu processo de saneamento depois do 25 de Abril, Adriano
Moreira transcreve a sua resposta ao Instituto Superior Naval de Guerra, onde
também leccionara. Este texto é de grande interesse para compreendermos a visão
que o ex-ministro de Salazar tem sobre a Revolução dos Cravos e a
descolonização. O autor critica duramente o MFA, acusando este movimento de
destruir totalmente a instituição militar como poder autónomo e moderador. De
forma algo exagerada, considera que o 25 de Abril é, depois da vitória aliada
de 1945, o acontecimento mais importante no desenvolvimento da estratégia
mundial da URSS, ao deixar um vazio de poder que a União Soviética facilmente
ocupou, sem que os Estados Unidos e a comunidade internacional nada fizessem
para o impedir. O autor considera que nenhuma revolução do passado abdicou dos
interesses do Estado sem negociar contrapartidas, nem repudiou a sua História
nacional confundindo-a com o regime abatido ' o 25 de Abril parece ter sido um
caso singular, pois significou a entrega da maior parte do território nacional,
sem sequer ter havido um apelo a uma negociação multilateral com a comunidade
internacional a arbitrar. Quanto aos portugueses brancos que viviam nas
colónias, Moreira considera que eles foram as maiores vítimas deste processo,
pois não faziam parte do aparelho de poder do Estado colonial, as suas vidas
baseavam-se naquilo que haviam construído em África, e foram obrigados a deixar
tudo para trás. Quanto aos novos países africanos, o autor considera que estes
não foram realmente fruto de uma vontade nacional, mas apenas de projectos
nacionais que colocaram no poder uma minoria nativa. Critica também o
saneamento de que foi alvo uma boa parte da mão-de-obra mais qualificada do
País após o 25 de Abril, obrigada a sair por razões injustificáveis.
QUE FUTURO PARA O ULTRAMAR?
Podemos dizer que estamos perante o relato de uma das figuras incontornáveis do
século XX português, quer se concorde ou não com as suas posições ou com as
decisões que tomou ao longo da vida. A obra aborda o período que vai até à
integração de Adriano Moreira no CDS, momento que assinala a sua reconciliação
com o regime do pós-25 de Abril. É um limite compreensível, dado estas memórias
se centrarem essencialmente na sua ascensão e queda da pasta do Ultramar,
momento que marca sem dúvida um antes e um depois na vida do autor.
É visível o quanto o passado sociocultural em que Adriano Moreira cresceu
influenciou as suas concepções políticas, sociais e religiosas. Ao longo de
quase todo o livro é possível notar a formação da sua raiz democrata-cristã e
que depois confluiu na sua carreira política num partido como o CDS. Porém, é
pena que Adriano Moreira fale pouco das suas concepções luso-tropicalistas, que
serviram largamente de base ideológica à legislação que promulgou em 1961-1962.
Alude circunstancialmente à figura de Gilberto Freyre, por quem não esconde a
sua admiração, porém não explora esta temática tão bem como se esperaria.
Constitui um dos maiores pontos de interesse do livro o relevo que o autor dá a
alguns episódios menos conhecidos da história do Estado Novo, como o golpe
abortado de Marques Godinho em 1947 ou as iniciativas realizadas no âmbito do
cedi e da Sociedade de Geografia de Lisboa. O autor dá-nos uma visão
interessante sobre vários fenómenos e conjunturas históricas do século XX, por
vezes com uma clareza e um rigor historiográficos.
Contudo, o segmento em que aborda a sua passagem pela pasta do Ultramar deixa
bastantes questões em aberto. Em primeiro lugar, Adriano Moreira praticamente
não revela que modelo pretendia aplicar às colónias (meramente mais
descentralizador, federalista, unitário, ou com vista à independência) e a que
prazo queria a sua concretização. Esta lacuna está em grande parte relacionada
com a ambiguidade latente nas suas reflexões gerais sobre o Ultramar português,
que são escassas, talvez pelo facto de lá ter estado relativamente pouco tempo.
De igual modo, não especifica que interesses se sobrepuseram à continuidade do
seu projecto de rever a Lei Orgânica do Ultramar. Por outro lado, Adriano
Moreira revela-se incapaz de atribuir as maiores responsabilidades pela
interrupção da sua política a Salazar, como ele próprio defende, o homem sem o
qual o regime cairia. E não se questiona em que medida Salazar alguma vez tenha
tido vontade política para mudar o estatuto do Ultramar.
O autor critica ferozmente o processo de descolonização, mas não propõe em
concreto uma solução alternativa, perante uma conjuntura de 1974-1975 em que
era basicamente impossível negociar – as Forças Armadas estavam contra a
continuidade da guerra, o 25 de Abril fora feito primeiramente para acabar com
esta. Ainda alude vagamente à possibilidade de se recorrer à comunidade
internacional para arbitrar as negociações com os movimentos de libertação.
Porém, haveria realmente condições para negociar, tendo em conta uma conjuntura
internacional marcada pela détente, numa altura em que se assinavam os Acordos
de Helsínquia e se caminhava para uma melhoria nas relações do Ocidente com a
URSS? Que interesse real teriam os Estados Unidos em salvaguardar os interesses
portugueses em áreas que já estavam na área de influência estratégica da União
Soviética?
Por outro lado, a afirmação de que os brancos foram vítimas indefesas da
descolonização é questionável, na medida em que muitos tinham consciência dos
riscos que corriam em permanecer nos territórios ultramarinos, além de que não
estariam assim tão desligados das orientações políticas do regime. É certo que
a descolonização nos moldes em que foi feita em nada beneficiou os portugueses
que lá estavam, muitos dos quais realmente contribuíram para a construção dos
futuros países, mas para quem foi alheio a este processo a crítica é fácil. Por
fim, a alusão que Adriano Moreira faz ao repúdio e à destruição dos símbolos do
passado nacional é em parte verdadeira, porém, este «passado nacional» a que se
refere não seria mais uma construção ideológica do Estado Novo que propriamente
um retrato fiel da história de Portugal? É certo que esta foi a única história
que lhe foi incutida pela escola e pela sociedade que o rodeava, porém, como o
próprio afirma, o Estado Novo falhou em grande medida na sua tarefa de educar o
povo português para a realidade do Ultramar. No fundo, talvez seja essa a
grande lacuna das memórias de Adriano Moreira: a de responder à pergunta sobre
qual era a verdadeira realidade do Ultramar português, e que futuro lhe dar.
NOTAS
1
Saldanha Sanches aponta esta lacuna na sua recensão da obra – SANCHES, José
luís Saldanha, Adriano Moreira – A Espuma Do Tempo. Memórias do tempo de
Vésperas, disponível em: http://caminhosdamemoria.wordpress.com/2009/01/07/
adriano-moreira-a-espuma-do-tempo-memorias-do-tempo-de-vesperas/, consultado
em: 26 de Janeiro de 2010.
2
Disciplina cuja introdução em Portugal é, de resto, atribuída a Adriano
Moreira. cf. PINTO, José Filipe – Adriano Moreira. Uma Intervenção Humanista.
Coimbra: Almedina, 2007.
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