A traição de Wilson
A traição de Wilson
Aurora Almada e Santos
Licenciada em História pela FCSH-UNL, onde frequenta o doutoramento em História
Contemporânea, estudando a actividade diplomática dos movimentos de libertação
das colónias portuguesas na Organização das Nações Unidas.
MANELA, EREZ
The Wilsonian Moment. Self-Determination and the International Origins of
Anticolonial Nationalism.
Nova Iorque: Oxford University Press, 2007, 331 páginas
E quase do domínio do senso comum que a luta pela autodeterminação dos
territórios coloniais foi impulsionada de forma significativa pela I Guerra
Mundial. Num dos lados da barricada encontravam-se os nacionalistas
anticoloniais que foram os protagonistas escolhidos por Erez Manela para o
livro no qual analisa as expectativas em relação às possibilidades de
autodeterminação surgidas no final da Grande Guerra. Delimitando o âmbito
temporal da obra entre Abril de 1917 e Junho de 1919, o autor considerou que
essas expectativas estiveram intimamente associadas à difusão da retórica
utilizada pelo Presidente norte-americano Woodrow Wilson no período da guerra.
Empregando o conceito Wilsonian moment, Manela procurou abarcar os processos
resultantes da apropriação pelos nacionalistas anticoloniais dos princípios
elaborados por Wilson e as tentativas realizadas no sentido de os implementar.
É este Wilsonian momentque estabelece o fio condutor de toda a obra,
argumentando-se que os acontecimentos verificados nos territórios objecto de
análise ' o Egipto, a Índia, a China e a Coreia ' foram componentes de um único
momento histórico. Por detrás desse conceito encontra-se a ideia de que os
movimentos anticoloniais ocorridos após a I Guerra Mundial não foram fenómenos
circunscritos aos territórios aos quais se reportaram, mas tiveram uma vertente
internacional, favorecida precisamente pela retórica wilsoniana. Essa vertente
introduz um terceiro elemento na análise efectuada pelo livro, que articula a
difusão dos princípios de Wilson com o impacto que tiveram nos territórios
coloniais e a utilização da arena internacional pelos nacionalistas
anticoloniais como meio para desafiar os poderes coloniais. A arena
internacional retratada é a Conferência de Paz, reunida em Paris após a guerra,
cujas expectativas geradas entre aqueles que estavam nas margens da sociedade
internacional ocupam parte significativa da obra.
Numa escrita bastante fluida, Manela basicamente descreve a galvanização e o
retrocesso das expectativas dos nacionalistas anticoloniais egípcios, indianos,
chineses e coreanos em relação à Conferência de Paz. Partindo da análise das
esperanças depositadas na figura de Wilson e nas promessas de um mundo mais
justo veiculadas pelos princípios por ele defendidos, demonstra-se que o
confronto com a realidade foi um duro choque. A apropriação da linguagem
wilsoniana por parte dos nacionalistas desses territórios não foi suficiente
para que as delegações presentes na Conferência de Paz, cujas atenções estavam
concentradas noutras questões, colocassem a hipótese de lhes reconhecer o lugar
que consideravam que lhes era devido no seio das nações. Em resultado,
disseminou-se pelo mundo colonial um sentimento de traição em relação a Wilson,
traduzido nos levantamentos ocorridos na Primavera de 1919.
PROMESSAS AMERICANAS
A análise do impacto das ideias de Wilson entre os nacionalistas anticoloniais
reflecte-se na divisão do livro em três partes. Na primeira, que serve de
enquadramento, aborda-se a emergência das ideias de Wilson na ordem
internacional. Na prática, Manela procura explicar o porquê de o Presidente
norte-americano ter beneficiado de uma imagem tão favorável junto dos povos
coloniais. Entre os finais da guerra e a Primavera de 1919, Wilson era
retratado pelos nacionalistas anticoloniais como um ícone e um potencial
defensor das suas causas. Esta percepção foi motivada pelos discursos
pronunciados durante a guerra, nos quais defendia que o estabelecimento de uma
paz duradoura implicaria o reordenamento da sociedade internacional com base em
princípios como a igualdade entre as nações, a resolução das disputas de forma
pacífica sem recurso à violência e o respeito pela autodeterminação. A
explicação de Manela para o surgimento do Wilsonian momentconjuga ainda outros
dois factores. Para a imagem de arauto da nova ordem associada a Wilson terá
igualmente contribuído o trabalho de disseminação dos seus discursos realizado
pela máquina de propaganda de guerra norte-americana e pelas agências
internacionais de notícias. Em resultado, as ideias de Wilson ecoaram pelo
mundo, sendo apropriadas pelos nacionalistas anticoloniais, dotando-os de uma
nova linguagem, na qual se basearam para solicitar o reconhecimento dos seus
direitos no palco internacional.
A apropriação da linguagem wilsoniana pelos nacionalistas egípcios, indianos,
chineses e coreanos é amplamente realçada na segunda parte do livro, que foi
enriquecida com as citações das publicações e dos documentos escritos pelos
colonizados. Ao se dar voz aos nacionalistas, ficou patente que a apropriação
da linguagem de Wilson não foi isenta de uma certa distorção ou, pelo menos, de
um entusiasmo precipitado. Os princípios delineados por Wilson tinham em mente
antes de mais o quadro europeu. Aos territórios coloniais requeria-se que
realizassem um processo evolutivo, tutelado pelos países ditos civilizados, no
término do qual poderiam alcançar a autodeterminação. Esta concepção
gradualista a respeito da autodeterminação dos povos coloniais não impediu que
as ideias de Wilson tivessem ganho vida própria, sendo interpretadas de uma
forma muito mais vanguardista do que aquilo que o próprio Presidente pretendia.
A forma como as promessas de Wilson sobre a nova ordem mundial foram encaradas
dependeram, concluiu Manela, das percepções, objectivos e contextos do mundo
colonial. Dentro dos contextos coloniais o autor deu escassa atenção àqueles
que eram cépticos em relação às promessas contidas nos discursos de Wilson.
Exceptuando breves apontamentos, o livro traça a ideia de uma percepção quase
unânime em relação às possibilidades que os princípios enunciados por Wilson
iriam ter para os povos coloniais. O autor poderia ainda ter desenvolvido
esforços no sentido de uma maior conjugação entre os aspectos nacionais e
internacionais da apropriação da linguagem wilsoniana. Embora haja uma extensa
contextualização sobre a evolução de cada um dos territórios analisados, pouco
se percebe do impacto que as dinâmicas internas, entre 1914 e 1918, tiveram
nessa apropriação.
CONFRONTO COM A REALIDADE
De posse de uma nova linguagem, os nacionalistas anticoloniais egípcios,
indianos, chineses e coreanos consideraram a Conferência de Paz e a presença de
Wilson em Paris como uma oportunidade para alcançar a autodeterminação. As
tentativas realizadas nesse sentido são referidas nas segunda e terceira partes
do livro, nas quais Manela explora para cada território a forma como os
nacionalistas anticoloniais colocaram as suas reivindicações no contexto dos
desenvolvimentos internacionais. A análise alterna de um território para o
outro e somente em casos pontuais faz a ponte entre as várias realidades.
Embora seja mencionado que não se pretendia fazer uma história comparada, estas
duas partes certamente teriam sido enriquecidas com as ilações resultantes da
comparação entre os quatro territórios.
Dito isto, resulta da análise do autor que os nacionalistas egípcios, indianos,
chineses e coreanos definiram como objectivo primordial a deslocação de
delegações à Conferência de Paz para solicitar o reconhecimento do direito à
autodeterminação. A análise da campanha internacional desencadeada nesse
sentido é um dos pontos fortes do trabalho de Manela, que evidencia os
contributos das comunidades de emigrantes e de estudantes no estrangeiro, que,
à semelhança dos nacionalistas residentes nas colónias, inundaram a Conferência
de Paz, as delegações dos diversos países e inclusive o próprio Wilson com
petições nas quais denunciavam que os seus territórios eram vítimas de
exploração colonial. Essa campanha foi contudo frustrada pelas potências
coloniais, na medida em que somente os delegados chineses conseguiram assento
em Paris. As reivindicações nacionalistas dos territórios coloniais esbarravam
com as persistências de uma ordem internacional inalterada, dominada pelas
grandes potências, que conseguiram que as petições remetidas à Conferência de
Paz ficassem fora de circulação.
A resistência das potências coloniais é apenas um dos argumentos avançados pelo
livro em explicação do falhanço das tentativas dos nacionalistas anticoloniais.
A outra explicação reside nos objectivos definidos pelo Presidente norte-
americano para a Conferência de Paz. Nos horizontes de Wilson estavam o
estabelecimento de um acordo para as questões europeias e a criação de
mecanismos internacionais que prevenissem guerras futuras, a Liga das Nações.
Wilson acabaria por não responder aos documentos que lhe foram enviados pelos
nacionalistas anticoloniais, uma vez que durante o período em que esteve em
Paris as únicas questões coloniais das quais se ocupou foram as resultantes
directamente da guerra. A autodeterminação dos territórios coloniais nunca
esteve na agenda das três grandes potências – os Estados Unidos da América, a
Grã-Bretanha e a França –, que na prática definiram o rumo da Conferência de
Paz. O próprio Wilson acabaria por afirmar que as questões coloniais seriam
reservadas para a futura Liga das Nações.
Conclui-se do encadeamento do livro que as tentativas dos nacionalistas
anticoloniais estavam à partida destinadas ao fracasso. O desencanto resultante
da frustração das expectativas motivou a Revolução de 1919 no Egipto, as
sublevações na Índia, os acontecimentos que se seguiram às manifestações de 4
de Maio na China e o Movimento de 1 de Março na Coreia, que foram igualmente
analisados na terceira parte do livro. Manela apresenta estas irrupções como um
momento de viragem na luta pela autodeterminação desses povos, que, mais uma
vez, procuraram junto de Wilson o apoio de que necessitavam, mas sem sucesso.
Os Estados Unidos responderam através do reconhecimento do protectorado
britânico sobre o Egipto, do silêncio em relação aos apelos dos indianos, do
apadrinhamento do controlo japonês sobre a província chinesa de Shandong e da
confirmação da anexação da Coreia pelo Japão. O sentimento de traição
manifestado pelos nacionalistas não os impediu, no entanto, de continuar nos
anos que se seguiram a insistir junto da comunidade internacional, tanto em
Paris, como em Londres ou nos Estados Unidos, para o reconhecimento dos seus
direitos. Isto demonstra a percepção que tinham da importância da luta na arena
internacional e testemunha o fenómeno explicado por Manela, segundo o qual o
Wilsonian momentproduziu uma transformação e uma oportunidade para
internacionalizar a luta dos nacionalistas anticoloniais.
VIRAGEM PARA A RÚSSIA
Algumas das reflexões mais importantes de Manela encontram-se na parte final do
livro, onde defende que o Wilsonian momentalterou as relações entre
colonizadores e colonizados. O momento é descrito como simultaneamente
internacional e transnacional dada a interacção entre estados soberanos, a
localização dos actores em vários pontos do globo, a percepção de que faziam
parte de um quadro mais abrangente e global, a utilização do palco
internacional para alcançar a opinião pública mundial, a defesa de uma nova
visão do mundo e a realização de acções que transcenderam as fronteiras
políticas existentes. Os acontecimentos que desencadeou na Primavera de 1919
tornaram-se elementos centrais da construção da identidade dos quatro
territórios, conduzindo ao fortalecimento dos programas políticos e das
organizações defensoras da autodeterminação. O livro indica que, no seu
rescaldo, os nacionalismos anticoloniais tornaram-se mais radicais, desviando a
atenção de Wilson para a Rússia à procura de modelos e de meios alternativos de
apoio para a luta pela autodeterminação. O autor atribuiu esta viragem ao
falhanço do liberalismo anticolonial de Wilson, que não conseguiu corresponder
às expectativas. Contudo, não explorou cabalmente a asserção segundo a qual se
pode considerar que é no Wilsonian momentque se encontram as raízes do
antiamericanismo entre muitos povos coloniais. As incursões efectuadas pelo
autor justificavam que no final retomasse essa questão que foi meramente
aflorada no início do livro.
Talvez as duas mais importantes lições colhidas neste livro sejam a apropriação
das ideias de Wilson por parte dos líderes nacionalistas e a utilização da
arena internacional como forma de legitimação da autodeterminação. Mesmo após o
esbatimento da imagem de Wilson como o messias de uma nova era, a linguagem da
autodeterminação continuou a ser utilizada, tornando-se a componente central
das reivindicações nacionalistas. Essa linguagem inspirou os nacionalistas nas
décadas seguintes, que continuaram a insistir junto da comunidade internacional
para o reconhecimento das suas reivindicações. Os nacionalistas egípcios,
indianos, chineses e coreanos estiveram na vanguarda de um caminho que mais
tarde seria trilhado por outros, designadamente por alguns movimentos de
libertação das colónias portuguesas, que conjugaram o recurso à luta armada com
a actividade diplomática junto de instituições como a Organização das Nações
Unidas.
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