A União Europeia na filosofia da história
A União Europeia na filosofia da história
André Santos Campos
Investigador do Instituto de Filosofia da Linguagem da FCSH-UNL, onde
desenvolve um pós-doutoramento, e professor auxiliar na Faculdade de Direito da
Universidade Lusíada de Lisboa. Doutorado em Filosofia pela Universidade de
Lisboa, na especialidade de Filosofia da Política e do Direito, com trabalhos
publicados e em preparação no âmbito da filosofia política moderna e da
filosofia do direito contemporânea.
MCCORMICK, JOHN. P. WEBER
Habermas, and Transformations of the European State. Constitutional, Social and
Supranational Democracy.
Cambridge, Cambridge University Press, 2007, 318 páginas
APELOS À ORIGINALIDADE CONTEMPORÂNEA DA EUROPA
Da miríade de livros publicados todos os anos sobre a presente condição
histórico-política da Europa e sobre a União Europeia (UE), não parecem ser
muitos os merecedores de atenção por conterem análises de genuína
originalidade. É porventura com o intuito de evitar diluir-se nesse conjunto
pouco diferenciado de textos que este último livro de John. P. McCormick almeja
recategorizar a actual natureza político-administrativa da UE fundamentando-
a numa filosofia da história desenvolvida a partir de leituras críticas ao
pensamento de Max Weber e de Jürgen Habermas. McCormick tem claramente uma tese
a defender: a de que há lugar para novidades na progressão histórica das
realidades políticas institucionais que não são enquadráveis em categorias
históricas anteriores, sendo a actual UE uma dessas realidades políticas sem
paralelo, de natureza supranacional. Porquê então recuperar o pensamento de
Weber e de Habermas para uma tal empresa? Precisamente, para inscrever a
diferença desta nova realidade perante o que McCormick considera serem os dois
modelos hegemónicos de organização política dos dois séculos anteriores,
nomeadamente o Estado de direito (Rechtstaat) liberal do século XIX, teorizado
por Weber, e o Estado-Providência (Sozialstaat) social do século XX, teorizado
por Habermas. Neste sentido, a novidade da UE assinala um número de
transformações fundamentais ao nível das esferas jurídico-políticas e
socioeconómicas na dinâmica de exercício do poder, pelo que no contexto europeu
um novo modelo hegemónico de organização política surge sem precedentes e cheio
de mutáveis potencialidades para o futuro – McCormick designa-o de
Sektoralstaat.
A ENCRUZILHADA DE WEBER ENTRE O RECHTSTAAT E O SOZIALSTAAT
Em rigor, porém, apenas um dos capítulos do livro não constitui uma abordagem
crítica e aprofundada ao que Weber e Habermas sustentaram acerca do Rechtstaate
do Sozialstaat. A divergência de fundo opondo McCormick a Weber e a Habermas
está subjacente à sua necessidade de recategorizar a actual experiência
europeia institucional como uma Sektoralstaat, e consiste sobretudo na
validação atribuída a diferentes metodologias a empregar na história das
organizações políticas europeias. Segundo McCormick, a incapacidade de
aceitação por Weber de uma extensão do Estado ao âmbito da providência social é
resultado da circunstância de aplicar uma categoria política passada para
tentar compreender o que não é senão uma nova realidade política – nesta
medida, Weber é acusado de incompreender o Sozialstaatpor empregar uma
metodologia histórica que impõe o modelo do Rechtstaatcomo paradigma político
universal e intemporal. Habermas, porém, consegue superar, para McCormick,
estes constrangimentos metodológicos estabelecidos por Weber no estudo da
realidade estadual, e por conseguinte consegue integrar a categoria do
Sozialstaatno âmbito da acção comunicativa das sociedades modernas. Não
obstante, quando Habermas intenta penetrar na análise da dinâmica institucional
e política da actual configuração europeia, McCormick aponta a aparência de
Habermas cometer exactamente o mesmo erro de metodologia histórica já antes
praticado por Weber: emprega o modelo do Sozialstaatcomo paradigma universal e
intemporal à experiência da UE, e ao fazê-lo vicia de antemão quaisquer
afirmações conclusivas às quais possa chegar no prosseguimento da sua análise.
No capítulo em que se debruça sobre o conteúdo da Sociology of Lawde Weber a
partir da leitura crítica de Habermas (cap. II), esta divergência de fundo está
patente desde o início. Weber é interpretado no sentido de valorizar o seu
presente diante de um futuro projectado como passado, e nessa valorização
legitima uma concepção do direito enquanto conjunto de prescrições racionais-
formais em detrimento da produção de precedentes jurisprudenciais e de direito
privado substancial emergindo das relações económicas entre agentes políticos
não institucionais. Nesta medida, a sua concepção do direito reflecte a
arquitectura formal do Rechtstaat, a qual não é suficiente para explicitar a
dinâmica social emergindo das novas relações jurídicas no Sozialstaat. Se o
futuro do direito estadual é assim posto enquanto reprojecção do passado, toda
a mudança escapando a esse conceito jurídico do passado (que é afinal um
preconceito) designa então uma regressão civilizacional. O desenvolvimento do
Estado-Providência seria portanto, para Weber, uma recapitulação das estruturas
de poder feudais da Idade Média, pois embora parecesse recuperar o formalismo
legal do Rechtstaat, tal aparência surgiria apenas como imagem social
escondendo a irracionalidade inerente às novas alterações emergindo no Estado.
No entanto, para McCormick, não só o Estado-Nação regido puramente por direito
formal racional sempre se revelou insuficiente para cumprir o ideal de garantia
dos direitos individuais (p. 288), como também a própria classificação da era
do Estado providente enquanto decadência civilizacional decorre de um método
lacunar de estudar a história das instituições.
A ENCRUZILHADA DE HABERMAS ENTRE O SOZIALSTAAT E O SEKTORALSTAAT
Nos três capítulos seguintes, McCormick denota movimentar-se com maior conforto
pelo pensamento de Habermas do que pelo de Weber. Ao contrário do que ocorrera
com a sua abordagem a Weber, centrada sobretudo na Sociology of Law, a sua
leitura de Habermas desenvolve-se num escopo bem mais vasto da produção
habermasiana. Com efeito, uma das críticas primordiais que elabora consiste na
confrontação do jovem Habermas com o maduro Habermas. Segundo McCormick, as
produções iniciais de Habermas denotam fortes tendências marxistas, numa fase
de metodologia histórica sobretudo hegeliana onde seriam encontradas chaves
para a compreensão dos processos dialécticos da progressão histórica e
instrumentos teóricos para a emergência de críticas estruturais. Em
contrapartida, as produções mais tardias de Habermas denotam uma fuga destes
modelos dialécticos em direcção a uma perspectiva kantiana (p. 163), na qual se
aceita a efectivação de fundamentos transcendentais garantindo as condições de
possibilidade da acção comunicativa racional nos âmbitos ético e sociopolítico
– tal racionalidade com fundamento justificativo transcendental é assim
componente necessário na avaliação de legitimidade de todo e qualquer processo
democrático. O principal desafio para Habermas seria a aplicação destes
princípios comunicativos à nova realidade estrutural da UE.
Teoricamente, Habermas defende que a UE pode ser construída seguindo o mesmo
desenvolvimento histórico pelo qual passaram os diferentes estados europeus, ou
seja, uma vez estabelecida a percepção de uma conexão social mínima (de índole
nacionalista), o Estado seguir-se-ia a partir de tal fundação. Porém, esta é
já, para McCormick, uma maneira inadequada de inteligir a consolidação do
Estado, uma vez que negligencia as condições económicas, os meios de produção e
os modos de relação comercial que contribuíram para a formação dos estados. Por
conseguinte, ao sugerir a concretização da experiência da UE nos mesmos moldes
em que entende a formação estadual, Habermas recorre a um mecanismo
interpretativo já lacunar de antemão. Mesmo assim, Habermas continua a afirmar
que os estados europeus devem imbuir-se cada vez mais na emergente «ordem
continental e supranacional» (p. 205) da UE, em especial no âmbito do direito
comunitário, o qual se legitima pela mera participação democrática dos agentes
comunicativos intervindo na sua produção ' tal participação é já tida por
constitutiva das estruturas dos estados existentes e das próprias instituições
europeias, pelo que Habermas concebe então facilmente a UE mais como um Estado
do que como uma amálgama de estados. Este movimento argumentativo de Habermas
reflecte afinal o mesmo que Weber também reflectira: o modelo do Sozialstaaté
posto como pináculo da modernidade promovido inclusivamente ao nível
supranacional (o que contraria os esforços metodológicos do jovem Habermas), e
por conseguinte Habermas «sobrevaloriza a continuidade» (p. 202) ao invés de
reconhecer a especificidade das alterações qualitativas ocorrendo nas esferas
sociopolíticas da UE.
O TRIUNFO DO SEKTORALSTAAT NA UE
Se o movimento histórico recente apresenta então especificidades progressivas
na experiência europeia (e este será porventura o centro de imputação de
divergência maior entre Habermas e McCormick, que este último não chega a
desenvolver), deve ser explicado para McCormick segundo uma nova categoria.
Essa categoria é afinal a introduzida como Sektoralstaatno contexto da UE (Cap.
VI): uma configuração composta por processos de produção política
(policymaking) a nível trans e infranacional que operam sob os auspícios da
Comissão Europeia e sob a eventualidade de «múltiplas políticas públicas
europeias» dentro da própria UE (p. 180); um modelo envolvendo em simultâneo
esferas micropolíticas e sectores económicos de larga escala nos quais bem mais
do que três actores principais (capital, trabalho e Estado) participam na
discussão das políticas públicas, e incluindo subgrupos específicos dos
estados-membros na elaboração das esferas macropolíticas sem que chegue a haver
umapolítica comum europeia delineada em todos os sectores da economia (p. 23).
No final, McCormick atinge o momento da recategorização da UE enquanto modelo
analisável pelas ciências jurídicas e políticas, o que permite catalogar esta
obra como trabalho sobre a UE. Contudo, todo o itinerário seguido para a
efectivação desse momento desenvolve-se a partir de divergências a nível da
metodologia a empregar na análise histórica de instituições jurídico-políticas:
Weber e Habermas são acusados de operar com idealizações preconcebidasdo Estado
e da soberania que, por serem estanques, não permitem introduzir o novo numa
dinâmica histórica tida, por forte influência hegeliana, como progressiva. Daí
a divergência primordial entre McCormick e o par Weber-Habermas ser sobretudo
metodológica(p. 124). Isto justifica porque, talvez mais do que um livro sobre
a UE, esta obra seja afinal um livro sobre filosofia da história aplicada à
experiência europeia ' o que preocupa McCormick é que os cientistas sociais
revejam e refinem as suas noções de tratamento da História (p. 25). O título da
obra é longo precisamente porque a sua temática central não é clara: é em
simultâneo sobre o pensamento histórico e jurídico de Weber, sobre a filosofia
política de Habermas, sobre a UE, e sobre filosofia da história.
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