Os direitos fundamentais à maternidade e à paternidade vs o direito fundamental
à liberdade de empresa
Abstract
The rights to maternity and to paternity are recognized by portuguese
fundamental law. However, when the holders of such rights assume the position
of workers in a contract of employment, the exercise of those rights is not
free from collision with the right to «freedom of enterprise», also recognized
by portuguese Constitution. Indeed, taking into account that the protection of
maternity and paternity includes, among others, the right to take some time off
in what regards to the activity that has been contractually bounded, the
interests of the employer are affected. In this way the Constitution itself
"authorizes" the breach of contract of employment. Nonetheless, the
harmonization exercise of the fundamental rights at issue requires that the
right to «freedom of enterprise» is taken into account by the legislator when
he regulates the labor protection of motherhood and fatherhood.
1. Os direitos fundamentais – função e tipologias
Na concepção liberal de direitos fundamentais
[1]
, estes direitos serviam para determinar as esferas de vida dos cidadãos em que
o Estado não podia intervir. Os cidadãos eram considerados livres e iguais
perante a lei, e o Estado, por seu lado, um “mal necessário”, ao qual cabia uma
interferência mínima na esfera daqueles. Serviam, portanto, os direitos
fundamentais para garantir aos cidadãos um espaço de autonomia que lhes
permitia defender-se das intervenções estatais nas áreas por eles protegidas
[2]
.
A realidade veio, porém, demonstrar o fracasso da ideologia liberal, uma vez
que nem todos os cidadãos podiam exercer os direitos garantidos. As
desigualdades sociais foram-se agravando e tornou-se premente a intervenção do
Estado no combate às desigualdades sociais, o que fez com que surgisse uma nova
tipologia de direitos fundamentais, direitos esses, desta feita, não já
associados à ideia de autonomia dos cidadãos, mas sim ao direito destes a
determinadas prestações por parte do Estado. Ultrapassou-se a ideia de uma
justiça meramente formal para se atingir uma justiça material
[3]
.
Por outro lado, a democracia trouxe consigo uma série de direitos de
participação, como o direito de sufrágio e o direito de associação.
Desta forma, hoje em dia os direitos fundamentais já não têm apenas a
finalidade de determinar as prerrogativas do cidadão face ao Estado. Nas
palavras de Caupers, “trata-se, sim, de estabelecer aquilo que os homens, os
grupos sociais e os povos podem exigir, sob a forma de omissões, acções, formas
de participação e prestações, àqueles que detêm o poder – no Estado, nas
oligarquias económicas, na comunidade internacional”
[4]
.
Assim sendo, e tendo por base o critério da forma de actuação do direito
[5]
, podemos ter: 1) direitos de autonomia ou de liberdade,responsáveis pela
instituição de uma esfera de liberdade do cidadão, bastando para o seu
exercício a não intervenção do Estado (como o direito à vida); 2) direitos de
participação,para cujo exercício se torna exigível que o Estado crie as
condições jurídico-políticas necessárias à sua efectivação (como o direito de
sufrágio); 3) direitos sociais, que constituem direitos de crédito face ao
Estado e outras entidades públicas ou privadas, isto é, direitos a prestações
(como o direito ao trabalho ou o direito à segurança social)
[6]
.
Nesta acepção, direitos sociais são, portanto, verdadeiros direitos de crédito
a prestações por parte do Estado ou outras entidades, públicas ou privadas. No
fundo, atribuem aos cidadãos o direito de exigirem do Estado a promoção da
igualdade social, por meio da concessão de prestações, de forma a que, assim,
se possam exercer verdadeiramente os direitos de liberdade. Porém, aquilo que
se pode exigir do Estado, por via da consagração constitucional de um direito
social, não é o resultado perscrutado, mas sim que envide os esforços
necessários para o seu alcance, nomeadamente através da promoção do
desenvolvimento económico e social e da produção das normas que o torne
exequível.
Se atentarmos no artigo 9.º da nossa CRP, verificamos que, nos termos da alínea
d) deste preceito, é tarefa fundamental do Estado “promover o bem-estar e a
qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a
efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante
a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais”. Veja-se,
ainda, a título de exemplo, o disposto no n.º 2 do artigo 59.º, no n.º 2 do
artigo 63.º e no n.º 1 do artigo 68.º, todos da CRP, através dos quais se
incumbem ao Estado determinadas tarefas com vista à concretização dos direitos
em causa
[7]
.
Vemos, portanto, que, ao contrário do que acontece com os direitos fundamentais
de autonomia, a concretização dos direitos sociais carece de intervenção do
Estado, pelo que não é possível invocá-los directamente, mas apenas exigir
deste a mediação legislativa e a promoção do desenvolvimento económico, social
e cultural necessárias à sua efectivação.
No entanto, tal não equivale a dizer que os direitos sociais são direitos que
atribuem aos seus titulares uma mera expectativa jurídica. Quanto a nós, um
direito social atribui ao seu titular o direito a exigir uma actuação por parte
do Estado, no sentido da concretização do objectivo estipulado pelo direito, e
não a mera expectativa da actuação deste, pelo que deverá ser qualificado como
um verdadeiro direito subjectivo
[8]
. Aliás, muito embora os direitos sociais, tal como estão constitucionalmente
previstos, não confiram ao cidadão o direito de recorrer aos tribunais para
exigir do Estado o resultado neles objectivados, sempre pode aquele promover,
ainda que indirectamente, a declaração de inconstitucionalidade por omissão,
prevista no artigo 283.º da CRP
[9]
.
Questão diferente, mas não de somenos interesse, é a de saber se, depois se
atingir, através de legislação ordinária, um certo grau de concretização de um
direito social, se aplica o princípio da proibição do retrocesso, no sentido de
que não poderia o cidadão ver diminuído o grau de protecção já conferido. Para
além da doutrina
[10]
, também o TC já se pronunciou sobre esta questão, no acórdão n.º 39/84,
optando por uma aplicação mitigada do predito princípio, uma vez que entendeu
que apenas é proibido o renascimento de uma omissão constitucional, e não, já,
a redução do grau de protecção do direito social.
2. Os direitos fundamentais na CRP – direitos, liberdades e garantias e
direitos económicos, sociais e culturais
Analisando o elenco de direitos fundamentais plasmados na nossa CRP verificamos
que a Parte I da mesma tem como epígrafe “Direitos e deveres fundamentais”,
subdividindo-se em 3 Títulos: título I – “ Princípios gerais” (artigos 12.º a
23.º); título II – “Direitos liberdades e garantias” (artigos 24.º a 57.º);
título III – “ Direitos e deveres económicos, sociais e culturais” (artigos
58.º a 79.º).
O referido título II encontra-se, por sua vez, subdividido em 3 capítulos:
capítulo I – “Direitos, liberdades e garantias pessoais” (artigos 24.º a 47.º);
capítulo II – “Direitos, liberdades e garantias de participação política”
(artigos 48.º a 52.º); capítulo III – “Direitos, liberdades e garantias dos
trabalhadores” (artigos 53.º a 57.º).
Também o título III está dividido em capítulos: capítulo I – “Direitos e
deveres económicos” (artigos 58.º a 62.º); capítulo II – “Direitos e deveres
sociais” (artigos 63.º a 72.º) ; capítulo III – “Direitos e deveres culturais”
(artigos 73.º a 79.º).
Como vemos, a nossa CRP distribui os direitos e deveres fundamentais por duas
categorias diferentes – os direitos liberdades e garantias, por um lado, e os
direitos e deveres económicos, sociais e culturais, por outro.
Aparentemente, o critério de recondução de direitos e deveres a uma ou outra
categoria de direitos fundamentais residiu no facto de os segundos, ao
contrário dos primeiros, carecerem, para a sua efectivação, de uma intervenção
do Estado no sentido da criação das condições económico-sociais necessárias.
Por conseguinte, os direitos, liberdades e garantias seriam, assim, “direitos
de autonomia e de participação”, ao passo que os direitos económicos, sociais e
culturais seriam direitos a prestações ou direitos de crédito, cuja efectivação
dependia de uma prévia alteração das estruturas sociais
[11]
.
Acresce que, aliado a esse critério, está outro – o da forma de protecção dos
direitos fundamentais. Com efeito, inerente à distribuição dos direitos
fundamentais por duas categorias diferentes, está uma diversa forma de tutela e
defesa destes direitos.
Estipula o n.º 1 do artigo 18.º da CRP: “os preceitos constitucionais
respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e
vinculam as entidades públicas e privadas”. Segue o preceito, nos n.º 2 e 3: “a
lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos
expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao
necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente
protegidos”, sendo que “as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias
têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo
nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos
constitucionais”.
Temos, portanto, um especial regime de protecção dos direitos fundamentais
classificados de direitos, liberdades e garantias
[12]
.
Interessa-nos sobretudo debruçar sobre o disposto no n.º1 do artigo 18.º da
CRP. Começa tal preceito por estabelecer a aplicabilidade directa dos direitos,
liberdades e garantias. Por conseguinte, estes caracterizam-se pela sua
invocabilidade imediata, independentemente de mediação legislativa, que
possibilita a defesa judicial directa do direito reconhecido pela norma
constitucional. São, assim self executing
[13]
.
Ao referido acresce o facto de vincularem, quer entidades públicas, quer
entidades privadas. A vinculação das entidades públicas encontra fundamentação
na necessidade de proteger o cidadão contra os poderes do Estado, devendo ser
total, ou seja, “as entidades públicas não só não deverão contrariar os
preceitos constitucionais que garantem as liberdades fundamentais, como têm a
obrigação de, através dos seus actos, promover e assegurar o respeito por esses
preceitos”
[14]
. Já a vinculação das entidades privadas parece ter como móbil “o equilíbrio
entre a autonomia negocial e o respeito pelos direitos, liberdades e garantias
constitucionalmente consagrados”, numa era em que impera a desigualdade de
forças entre um vasto número de contraentes
[15]
.
Baseado nesta mesma ideia, Vieira De Andrade apenas aceita a aplicabilidade
directa dos direitos fundamentais, enquanto direitos subjectivos, para as
relações entre particulares casuisticamente, “quando se trate de situações em
que pessoas colectivas (ou, excepcionalmente, indivíduos) disponham de poder
especial de carácter privado sobre (outros) indivíduos” e “se justifique pela
natureza da pessoa (normalmente) colectiva e pelo tipo de relação estabelecida”
[16]
. Já Gomes Canotilho entende que a eficácia horizontal dos direitos, liberdades
e garantias “deve ter em consideração a multifuncionalidade ou pluralidade de
funções dos direitos fundamentais”, o que leva a soluções diferenciadas para
cada caso concreto, tendo em conta “a especificidade do direito privado, por um
lado, e o significado dos direitos fundamentais na ordem jurídica global por
outro”. Casos há em que as próprias normas constitucionais facultam ao
particular a sua invocação directa, por estabelecerem desde logo a eficácia dos
direitos nelas contidos na ordem jurídica privada (vejam-se, a título de
exemplo, os artigos 36.º, n.ºs 3 e 4 e 53.º da CRP); quando a CRP nada diz, os
tribunais “devem considerar os direitos, liberdades e garantias como medidas de
decisão dos casos concretos”, interpretando as normas legais em conformidade
com a CRP ou, caso tal seja insuficiente, desaplicá-las, por
inconstitucionalidade, em virtude de violarem direitos ou bens jurídicos
constitucionalmente protegidos; os direitos, liberdades e garantias protegem os
cidadãos, não só contra os poderes públicos, mas também quanto aos poderes
privados, pelo que aos mesmos tem de ser reconhecida eficácia no âmbito de
relações privadas em que haja desigualdade entre as partes; porém, a eficácia
dos direitos, liberdades e garantias nas relações privadas não pode ser levada
ao extremo de coarctar por completo a autonomia pessoal nos casos em que o uso
dessa autonomia não sacrifique o núcleo essencial de um direito subjectivo
público ou privado
[17]
.
3. Direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias
Com o que ficou dito até agora seríamos levados à conclusão que os direitos,
liberdades e garantias têm aplicabilidade directa e vinculam entidades públicas
e privadas, ao contrário do que acontece com todo e qualquer direito económico,
social e cultural que apenas esteja constitucionalmente consagrado, em virtude
de estes últimos não beneficiarem daquele regime especial e se caracterizarem,
pelo contrário, como direitos cujo exercício carece de uma prévia actuação do
Estado, nos termos atrás expostos.
Importa, porém, fazer notar que o regime especial de protecção dos direitos,
liberdades e garantias de que temos vindo a tratar se aplica, também, aos
direitos fundamentais de natureza análoga àqueles. Com efeito, nos termos do
artigo 17.º da CRP, “o regime dos direitos, liberdades e garantias aplica-se
aos enunciados no título II e aos direitos fundamentais de natureza análoga”.
Assim, para conhecermos o âmbito de aplicação daquele regime especial de
protecção, necessitamos de saber quais os direitos fundamentais que integram a
categoria de direitos de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias.
Segundo Caupers, há duas respostas possíveis a esta questão, uma que atende à
estrutura do direito e outra que atende ao estágio do seu desenvolvimento. No
primeiro caso, a natureza análoga implicaria uma mesma qualidade do direito, o
que afastaria os direitos a prestações da categoria dos direitos fundamentais
de natureza análoga, por não serem direitos de liberdade/autonomia, nem
direitos de participação. Na segunda hipótese, a natureza análoga teria que ver
com o grau de concretização do objecto do direito, caso em que seriam direitos
de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias aqueles que tivessem
sido alvo de mediação legislativa e, assim, concretizados de forma ao seu
titular os poder invocar recorrendo à via judicial. Deste ponto de vista, os
direitos sociais seriam premiados com a categoria de direitos de natureza
análoga aos direitos, liberdades e garantias à medida que o legislador os fosse
concretizando. Para o autor, esta segunda posição, na esteira do já defendido
por Jorge Miranda, é a mais razoável
[18]
.
Para Jorge Leite, terão natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias
aqueles que protejam bens ou valores equiparáveis “quando forem
substancialmente idênticas as determinantes da sua constitucionalização ou, por
outras palavras, quando e na medida em que a sua função se analise numa forma
de protecção dos bens ou valores protegidos com os direitos, liberdades e
garantias”
[19]
.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, “o que é importante é o objecto do
direito em causa, bem como a sua densificação constitucional, em termos de
permitir a sua concretização minimamente adequada a partir da própria
Constituição (aquilo que alguns designam de critério de determinabilidade)”
[20]
.
Vimos, atrás, que o critério de distribuição dos direitos fundamentais por duas
categorias distintas – direitos, liberdades e garantias, por um lado, e
direitos económicos, sociais e culturais, por outro –, foi o facto de os
segundos, para serem exercitáveis, carecerem, ao contrário dos primeiros, de
uma prévia actuação do Estado no sentido de criar as condições sócio-económicas
necessárias para o efeito. Isto pode levar-nos a concluir que a natureza dos
direitos, liberdades e garantias reside na possibilidade de os mesmos serem
imediatamente concretizáveis, independentemente de qualquer mediação
legislativa ou intervenção estatal. Nesta ordem de ideias, teriam natureza
análoga aos direitos, liberdades e garantias os direitos fundamentais que
comungassem dessa característica. No entanto, não nos parece que seja a isso
que o legislador constitucional se refere quando manda atender à natureza dos
direitos, liberdades e garantias como critério de atribuição de um regime
especial de protecção. Somos, antes, da opinião que a naturezados direitos,
liberdades e garantias deve buscar-se, para estes efeitos, nos bens jurídicos
protegidos pelos mesmos, razão pela qual defendemos, na esteira de Jorge Leite,
deverem ser considerados direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias
os direitos fundamentais que, protegendo os mesmos bens jurídicos protegidos
por aqueles, completam a protecção por eles conferida. Como refere o ac. do TC
n.º 373/91, a dignidade da pessoa humana é o denominador comum dos direitos
fundamentais de natureza análoga. Não ignoramos, porém, que para se proceder à
aplicabilidade directa de um preceito constitucional é necessário que o mesmo
esteja minimamente densificado de forma ao julgador o poder aplicar ao caso
concreto de uma forma adequada.
Por conseguinte, uma análise do catálogo dos direitos sociais pode levar-nos à
conclusão de que alguns desses direitos comungam do regime especial de
protecção dos direitos, liberdades e garantias, reforçando-se, assim, a defesa
e tutela dos mesmos.
4. O direito fundamental à paternidade e à maternidade
Os direitos à maternidade e à paternidade estão consagrados no capítulo II do
título III (direitos e deveres sociais), mais concretamente no artigo 68.º
[21]
.
Consagra este artigo que os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade
e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos
(n.º 1), ao mesmo tempo que considera a maternidade e a paternidade como
valores sociais eminentes (n.º 2)
[22]
; atribui às mulheres o direito a especial protecção durante a gravidez e após
o parto, e, em especial, às trabalhadoras, o direito a dispensa do trabalho por
período adequado, sem perda da retribuição ou de quaisquer regalias (n.º3); por
fim, atribui à lei a injunção de regular a concessão a ambos os pais de
direitos de dispensa de trabalho por período adequado, de acordo com os
interesses da criança e as necessidades do agregado familiar (n.º4).
Importante é apurar o significado da expressão “sem perda da retribuição ou de
quaisquer regalias”, utilizada no n.º 3 do referido artigo. Segundo Gomes
Canotilho e Vital Moreira, em causa estão “o restabelecimento de todos os
direitos e deveres emergentes da relação de trabalho”
[23]
.
Com efeito, parece-nos que o pretendido foi que a mulher, durante o período de
dispensa em causa, não sofresse quaisquer perdas de rendimentos,
independentemente de estes serem considerados, ou não, retribuição nos termos
da legislação laboral. Não quer isto dizer, a nosso ver, que a manutenção
desses rendimentos esteja a cargo da entidade empregadora nem que o valor a
receber, durante a dispensa, tenha de ser exactamente o mesmo. O que se nos
afigura é que as concretas parcelas “retributivas” deixadas de auferir da
entidade empregadora devem ser alvo substituição pelo sistema de protecção
social em que o trabalhador esteja integrado, cabendo ao Estado garantir a
existência desta última
[24][25]
.
Os direitos à maternidade e à paternidade são direitos sociais. Estes
caracterizam-se por serem direitos de crédito a determinadas prestações,
prestações estas não imediatamente invocáveis, mas apenas concretizáveis após
mediação do legislador ordinário.
Apesar de haver legislação ordinária regulamentadora da protecção da
maternidade e da paternidade, interessa-nos, ainda assim, saber se estamos
perante um direito análogo a direitos, liberdades e garantias, dada a dimensão
do especial regime de protecção daqueles, que permitirá invocar directamente a
CRP na eventualidade de uma insuficiente concretização do(s) direito(s) pela
legislação ordinária. Preocupa-nos em especial o disposto no n.º 3 do artigo
68.º da CRP, quando atribui às mulheres trabalhadoras o direito “a dispensa de
trabalho por período adequado, sem perda da retribuição ou de quaisquer
regalias”, pois esta é a matéria mais atreita a eventuais falhas de
concretização.
Percorrendo os direitos, liberdades e garantias catalogados no título II da
Parte I da CRP, encontramos, no artigo 26.º, o direito à protecção contra
quaisquer formas de discriminação; por sua vez, o artigo 53.º garante aos
trabalhadores a segurança no emprego. Ora, ao garantir à mãe trabalhadora o
direito a dispensa de trabalho por período adequado, sem perda da retribuição
ou de quaisquer regalias, o legislador constituinte protege as mães
trabalhadoras de eventuais discriminações de que possam ser vítimas, ao mesmo
tempo que salvaguarda a sua segurança no emprego. Desta forma, parece-nos que o
direito contido no n.º 3 do artigo 68.º da CRP constitui uma forma específica
de protecção dos bens jurídicos protegidos pelos direitos fundamentais dos
artigos 26.º e 53.º. Com efeito, a redacção do n.º 3 do artigo 68.º deixa
transparecer que parte das razões da constitucionalização do direito à
dispensa, nos termos previstos, esteve ligada à protecção da discriminação da
mulher, bem como à preocupação de a maternidade não afectar a manutenção do seu
emprego e das suas condições de trabalho – segurança no emprego
[26]
. Vai-se ainda mais longe. Para além de pretender obviar às repercussões
negativas que a maternidade pode ter no seio da relação laboral, pretendeu o
legislador constituinte proteger a saúde da mulher e os interesses da criança,
razões estas directamente associadas à dignidade da pessoa humana.
Pelo exposto, somos levados a concluir que o direito à referida dispensa de
trabalho, nos termos enunciados, é um direito de natureza análoga a direitos,
liberdades e garantias
[27]
.
Ora, como atrás vimos, os direitos de natureza análoga a direitos, liberdades
e garantias comungam do especial regime de protecção destes, nomeadamente da
aplicabilidade directa e da vinculação das entidades privadas aos mesmos.
Bem sabemos que, no que à aplicabilidade directa diz respeito, a sua
importância desvanece a partir do momento em que o legislador ordinário vem
concretizar a protecção constitucionalmente consagrada. Na verdade, a partir
desse momento os direitos passam a ser exercitáveis por via das normas
ordinárias, dispensando o recurso às normas fundamentais. Porém, como já
dissemos, na hipótese de o direito previsto no n.º 3 do artigo 68.º não ter
sido, em toda a sua extensão, “concretizado” pelo legislador ordinário, será de
toda a utilidade poder invocar a sua aplicabilidade directa.
Relativamente à vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais,
diga-se que a relação laboral é uma relação atreita a desequilíbrios de forças
entre os sujeitos negociais - entidade empregadora e trabalhador. Para além da
dependência económica normalmente existente, que coloca o trabalhador numa
posição de desvantagem negocial, a subordinação jurídica, pedra basilar do
contrato de trabalho, limita, em vários aspectos, a liberdade de actuação do
trabalhador. Ao outorgar um contrato de trabalho, o trabalhador subjuga-se aos
poderes conferidos à entidade empregadora, obrigando-se a desenvolver uma
actividade por conta daquela e nos termos por ela definidos.
Efectivamente, muito embora a relação laboral se baseie numa obrigação
pessoalmente assumida pelo trabalhador e, logo, voluntária, na maioria dos
contratos de trabalho a liberdade negocial do trabalhador está limitada pela
sua necessidade de ter um posto de trabalho remunerado, face à dependência que,
as mais das vezes, ele e a sua família apresentam relativamente à retribuição a
auferir. Assim, o especial poder da entidade empregadora faz-se sentir logo no
momento do estabelecimento das condições do contrato de trabalho.
Posteriormente, na vigência da relação laboral, os poderes que são conferidos à
entidade empregadora, a que se contrapõe a subordinação jurídica do
trabalhador, com o inerente cumprimento do dever de obediência, são
susceptíveis de limitar, em muito, a liberdade do trabalhador, constituindo uma
ameaça aos seus direitos fundamentais
[28]
.
Desta forma, mesmo para aqueles que defendem que a eficácia directa dos
direitos fundamentais (nas relações entre particulares) deve ser aferida
casuisticamente, devendo ser reservada para os casos em que se averigue da
existência de um poder especial de um indivíduo (ou pessoa colectiva) sobre
outro, as normas fundamentais terão aplicabilidade directa, pois a relação
laboral é, tipicamente, uma relação de poder-sujeição..
Tal como ficou dito para a hipótese da aplicabilidade directa, existindo
legislação ordinária que regule as relações privadas, defender a vinculação das
mesmas ao direito fundamental é pouco mais do que inútil. No entanto, na
eventualidade se a legislação ordinária restringir o direito consagrado no n.º
3 do artigo 68.º, a invocabilidade da sua eficácia perante as entidades
privadas poderá ser uma das possibilidades para a resolução do problema (ou
seja, fazer recair sobre a entidade empregadora o encargo do cumprimento da
previsão constitucional), ainda que essa não nos pareça a solução mais
adequada.
5. Direitos fundamentais e poderes da entidade empregadora
As considerações ultimamente realizadas trazem à colação a questão do conflito
entre os poderes pertencentes à entidade empregadora e os direitos fundamentais
dos trabalhadores. Importante para se poderem perceber as opções do legislador
neste domínio e dirimir eventuais problemas emergentes no seio das relações
laborais é descortinar quais são as fontes e fundamento daqueles poderes.
Quando falamos em fontes dos poderes da entidade empregadora, referimo-nos aos
“instrumentos jurídicos de reconhecimento do dito poder”; ao falarmos de
fundamentos desses poderes, referimo-nos “à razão jurídica explicativa dessa
atribuição”
[29]
.
Os poderes que a entidade empregadora tem no âmbito da relação de trabalho,
embora se fundamentem na própria natureza da relação laboral, parecem encontrar
o seu fundamento originário no direito de livre iniciativa económica privada e
de liberdade de empresa, reconhecido nos artigos 61.º, n.º 1 e 80.º, alínea c)
da CRP.
Em Portugal pratica-se uma economia mista, baseada na coexistência dos sectores
público e privado, no que toca à propriedade dos meios de produção. Neste
contexto, a CRP estabelece, como princípio fundamental da nossa organização
económica, “a liberdade de iniciativa e de organização empresarial”
[30]
, ao mesmo tempo que consagra o direito à livre iniciativa económica privada
[31]
. Podemos dizer que, intimamente associada à livre iniciativa económica privada
está, portanto, a liberdade de organização empresarial, com a consequente
atribuição aos sujeitos económicos da faculdade de angariar e gerir os meios
necessários para a prossecução dos seus objectivos
[32]
. A esta faculdade damos o nome de poder organizativo.
O poder organizativo é, então, atribuído aos agentes económicos,
independentemente da sua qualidade de empregadores, pois, a nosso ver, existe
mesmo na ausência de trabalhadores ao serviço, dado não se tratar de um poder
laboral, mas sim de um poder económico
[33]
.
Não obstante defendermos que o poder organizativo não é um poder laboral,
julgamos ser ele o fundamento nuclear da atribuição dos poderes reconhecidos à
entidade empregadora no seio do contrato de trabalho. Com efeito, a contratação
de pessoas para o desenvolvimento da actividade perscrutada por um sujeito
económico não é mais do que um dos meios dos quais ele se pode servir para
levar a cabo essa actividade. Porém, a dita contratação só pode acontecer se o
trabalhador voluntariamente assim o quiser, sujeitando-se, então, aos poderes
da entidade empregadora. Daí sermos da opinião que a fonte dos referidos
poderes é o contrato de trabalho, muito embora o fundamento prévio da sua
existência resida no poder organizativo atribuído aos sujeitos económicos e,
logo, no direito à livre iniciativa económica privada e liberdade de
organização empresarial
[34]
.
Não ignoramos que existem relações de trabalho que se desenvolvem à margem da
realidade empresarial. No entanto, há que ter em conta “a importância que a
organização empresarial tem sobre a configuração do dito poder”
[35]
e a legislação conformadora da relação laboral não raras vezes tem a empresa
como elemento estruturante, como núcleo central da configuração dos poderes da
entidade empregadora
[36]
.
Em suma, cremos que o fundamento último dos poderes do empregador é o direito à
liberdade de empresa, como expressão do princípio da livre iniciativa económica
privada, embora a sua fonte seja o contrato de trabalho, pois antes de o
trabalhador assumir, pessoalmente, a qualidade de sujeito passivo num contrato
de trabalho, o poder organizativo não se concretiza em qualquer poder jurídico-
laboral.
Concluímos, assim, que os poderes do empregador encontram um fundamento
constitucional.
Posto isto, coloca-se a questão da compatibilização do exercício desses
poderes, mormente do poder de direcção, com o do exercício dos direitos
fundamentais daqueles que adquirem, no contrato de trabalho, a qualidade de
trabalhadores, pois afinal ambos são exercidos sob a égide da CRP.
É necessário “encontrar soluções que garantam tanto a liberdade de empresa como
aqueles direitos dos trabalhadores”, devendo estes “ser tidos em conta como
limites ao exercício dos poderes patronais”, impondo-se o “social” como limite
ao “económico”
[37]
.
Encontrar o necessário equilíbrio entre a garantia do direito à liberdade de
empresa e a defesa dos direitos fundamentais do cidadão-trabalhador, no âmbito
de uma relação laboral, é tarefa que cabe ao legislador. E o próprio legislador
constituinte inicia essa tarefa ao estabelecer direitos que obstam a que o
direito à liberdade de empresa possa servir de base à criação de uma ditadura
do poder empresarial sobre os trabalhadores – nomeadamente o direito à
segurança no emprego (artigo 53.º), o direito à greve (artigo 57.º), a
proibição do lock-out (artigo 57.º), o direito a prestação de trabalho em
condições de higiene, segurança e saúde (artigo 59.º, n.º 1, alínea c)), o
direito ao repouso e ao lazer, a um limite máximo da jornada de trabalho e a
férias periódicas pagas (artigo 59.º, n.º 1, alínea d)).
6. A harmonização do direito à liberdade de empresa com os direitos à
maternidade e à paternidade como fio condutor do regime jurídico-laboral de
protecção da maternidade e da paternidade
Como vínhamos dizendo, são inúmeras as vicissitudes que, ao longo da vigência
do contrato de trabalho, “impedem” o trabalhador de cumprir as obrigações
decorrentes do mesmo.
Ao poder directivo do empregador contrapõe-se o dever de obediência do
trabalhador, incluindo o dever de cumprir o horário de trabalho estipulado. O
normal é que, em caso de incumprimento, o empregador possa lançar mão de outro
dos seus poderes – o poder disciplinar – para sancionar o comportamento faltoso
do trabalhador.
Não obstante, vimos também que muito embora a legitimidade dos preditos poderes
se baseie na liberdade de empresa (uma vez que o empregador/empresário,
necessita de meios para conseguir alcançar os objectivos a que se propõe, o que
passa pela faculdade de exigir dos trabalhadores a sua presença no horário de
trabalho e no cumprimento das restantes ordens e instruções) existem outros
direitos fundamentais, desta feita dos trabalhadores, que obrigam à limitação
daqueles poder e liberdade.
Esta problemática coloca-se precisamente nos casos da maternidade e da
paternidade.
A maternidade e a paternidade são vicissitudes susceptíveis de afectar, em
muito, o normal desenvolvimento da relação laboral. Porém, esta é uma das
situações em que o “social” veio limitar o “económico”.
A imposição deste limite surge, desde logo, no próprio texto constitucional,
com a atribuição ao homem e à mulher do direito a dispensa de trabalho por
períodos adequados (no caso da mulher, sem perda da retribuição ou de quaisquer
regalias), mas ganha muitas outras expressões na legislação ordinária.
No entanto, a protecção constitucional da liberdade de empresa, com a
consequente garantia dos interesses económicos em causa, servirá também para
explicar alguns pontos do regime, pois o legislador ordinário foi obrigado a
encontrar o ponto de equilíbrio da protecção e salvaguarda dos direitos
fundamentais em conflito.