O documentário etnográfico: da memória ao produto turístico
1. Introdução
Esta breve comunicação pretende traduzir uma reflexão sobre o papel que o
documentário etnográfico pode assumir na construção de produtos turísticos.
O estudo constituiu-se de um Projecto de Investigação mais amplo, que culmina
na produção de um documentário (relativo às festividades de São João d´Arga –
Alto Minho). Ainda que a ideia de base de constituição deste documentário
reflicta sobretudo a preocupação de explorar o uso de técnicas e procedimentos
oriundos da pesquisa etnográfica com base no uso dos recursos audiovisuais,
parece-nos possível, a partir dele, demonstrar as potencialidades deste tipo de
recursos na produção de destinos turísticos que podem mesmo vir a converter-se
em destinos de excelência.
A ideia da produção de um documentário ao serviço da promoção turística não é,
aliás, de todo nova. Penafria (2009), a respeito faz referência aos
documentários: A festa de 1975, sobre a Praia da Vieira e Leiria produzido
na década de 60 a pedido da Comissão Municipal de Turismo. Este último,
constitui um documentário que nos introduz numa incursão por Leiria, percorrida
durante um dia e uma noite transmitindo-nos sobretudo o ponto de vista do
visitante.
Neste contexto, o objectivo a que agora nos propomos é analisar o papel que o
documentário etnográfico pode assumir na construção de produtos turísticos
bem como na respectiva afirmação e valorização. Por outras palavras, o que se
pretende é estimular a percepção do documentário não apenas como instrumento de
lazer e entretenimento mas também como agente capaz de projectar
intencionalmente uma imagem assumindo por isso um papel significativo na
construção de produtos turísticos.
Como refere Peréz (2009), da eficácia simbólica das imagens e da sua mediação,
dependem as adesões dos turistas aos locais de destino turístico.
Aliás, a relação entre imagem e Turismo vem, desde há muito, suscitando a
atenção de pesquisadores tanto da área da Comunicação como do Turismo. Tal como
destaca o antropólogo francês Marc Augé, o Turismo é uma procura de imagens,
um caleidoscópio ilusório (Augé, 1998: 14) que adquire sentido quando se
mostram as fotografias e vídeos que verificam a estadia em determinado destino
turístico1. O mesmo autor afirma ainda, que o Turismo é um sistema dinâmico de
produção, distribuição e consumo de imagens, imaginários e sonhos.
A partir desta perspectiva, podemos dizer que o Turismo procura persuadir
potenciais turistas de que devem desejar e consumir um destino turístico
específico e não outro (Quinn, 1994: 66 citado por Peréz, 2009).
Stuart Hall (2000:9) caracteriza grande parte do século XX como correspondendo
a uma crise de identidade em que a perda do sentido de si se dá pela
descentração do indivíduo tanto do seu lugar no mundo social e cultural como
de si mesmo.
Também Giddens (2002:10) se refere à vida social moderna como sendo
caracterizada por profundos processos de reorganização do tempo e do espaço.
Em termos globais podemos dizer que, a partir da segunda metade do século XX,
se procurou ultrapassar as tradicionais oposições indivíduo/sociedade ou
indução/dedução, sugerindo novas articulações. A este respeito, Touraine (1984
refere a pretensão não de explicar mas de interpretar o sentido da dinâmica
social. Os factos sociais são um artefacto humano, subjectivamente vivido, e
não coisas exteriores (no sentido Durkheimiano).
Como bem refere Araújo (2008) para além de uma evidente massificação de
produtos e ideias, este período caracteriza-se também pelo reforço das
identidades locais
2
, em larga medida em consequência da globalização.
O mesmo autor salienta ainda que face a conjugação do poder da identidade e o
poder dos Media é compreensível que a sedução turística passe pelo Imaginário
(e consequente expectativa antes da experiência turística) pela autenticidade
(o genuíno, o único) e pela nostalgia (associada a tempos passados, às raízes
presentes em determinadas comunidades que parecem marcadas por um isolamento
que lhes permitiu escapar a uma certa massificação).
A ruralidade, as festas, tradições e eventos populares
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correspondem em absoluto a esta lógica dos novos/futuros produtos
turísticos.
De facto, neste período, torna-se particularmente visível aquilo que
Vasconcelos (1997:228) denomina de inversão do atraso e da marginalização
mediante a sua promoção sob a forma de cultura.
Significa isto que o crescente desejo de autenticidade e de identidade aliado a
um certo saudosismo pelas respectivas raízes culturais tem conduzido a uma
valorização das tradições da terra enquanto património refere aquele autor
(1997:227). Estamos perante um património imaterial, facilmente perecível e,
por isso, a necessitar de uma recuperação urgente.
2. O documentário etnográfico: da memória ao produto turístico
O Turismo é uma combinação complexa de inter-relacionamentos entre produção e
serviços, em cuja composição se integra a prática social de raiz cultural com
herança histórica e reportando-se a um ambiente diverso. A articulação de todas
estas componentes gera um misto de objectividade/subjectividade, passível de
ser consumido por milhões de pessoas: o produto turístico (Coutinho, 2004:
29).
Compreende-se, por isso, o interesse que o Turismo tem suscitado em diferentes
áreas com tradição de pesquisa. Enquanto objecto de estudo o Turismo é,
inegavelmente complexo e pluridimensional (ao encontro do proposto por Marcel
Mauss).
Enquanto actividade, o Turismo pressupõe uma movimentação em relação a um
determinado destino. Tem por isso, a particularidade de pressupor uma
deslocação do Mercado em direcção ao produto e não o inverso.
O produto turístico4 é uma das razões de ser do mercado turístico, compõe a
oferta e satisfaz a procura. Engloba por isso as atracções turísticas e os
demais serviços de suporte (alojamento, recepção, transporte, etc). Lage e
Milone (1991) referem-se às atracções turísticas como sendo elementos
determinantes na escolha de um determinado destino.
Convém no entanto salientar que, a par do espaço, também o tempo é um factor a
ser considerado. Daí a importância da memória. Sem ela não haveria percepção do
tempo e da sua duração. A memória participa da construção da identidade ao
interligar os dois tempos, o passado e o presente.
Halbwachs (1999), considera que alguns tipos de memória só são possíveis pelo
seu enquadramento familiar (onde é frequente o relembrar). O facto de outra
pessoa também se lembrar aumenta as confianças que temos na lembrança. As
nossas lembranças são, por isso, em larga medida, colectivas. Quando nos
lembramos a memória posiciona em relação a um (ou mais) grupo ao qual nos
vinculamos. É assim que se dá a articulação entre a memória individual e a
colectiva, a interna e a externa. Certas imagens do mundo exterior tornam-se
mesmo inseparáveis do nosso eu.
Também no Turismo é frequente a criação de imagens mentais. Imagina-se um lugar
como se já lá se tivesse estado. Coutinho (2004:16) refere mesmo que é
frequente os turistas realizarem uma viagem na mente antes de se deslocar para
o destino. Para Durand (1997:432) o pensamento lógico não está, sequer,
separado da imagem. Deleuze (1992:63) vai ainda mais longe considerando que
imagens, coisas e movimento não se diferenciam.
Perante isto torna-se compreensível que o documentário etnográfico (pelas suas
próprias características) possa exercer um importante papel na criação dessas
imagens até porque tende a promover a vontade de (re) criar situações ausentes.
É com base nesse pressuposto que o documentário etnográfico, hostilizado
durante muito tempo por cineastas e antropólogos (que o acusavam de tedioso e
sem emoção), se assume hoje como instrumento privilegiado de recuperação da
memória, do imaginário colectivo e do património (entendido aqui enquanto fusão
do material e do cultural, do simbólico e do económico).
A oposição entre documentário e ficção é uma discussão que tem dividido a
instituição cinematográfica desde a origem. No entanto, como refere Colin
(1984) o filme documentário tende a ter um registo que visa restituir
veracidade e autenticidade.
Ao reconstituir factos, resgatar obras e revelar lugares (muitas vezes quase
esquecidos) o documentário assume um valor social, cultural, educacional e até
turístico. De facto, considera-se hoje, que ele pode constituir um poderoso
instrumento de mobilização de acções, de criação, preservação e
sustentabilidade de produtos turísticos
5
.
Murtas & Albano (2002) salientam que o documentário pode permitir optimizar
a experiência do turista: estimular o olhar, provocar a curiosidade e levá-lo a
descobrir muito mais sobre o lugar, os seus habitantes, hábitos, costumes, sua
História e suas lendas.
Ainda a propósito, Barbosa (2001:32) refere-se à imagem como sendo um dos temas
de maior relevância quando se trata de Turismo. A imagem turística alude à
representação de um objecto ou sensação na ausência do que o produziu. Trata-se
então de uma representação mental, consciente ou não, formada a partir de
vivências, lembranças e percepções passadas (ainda que passíveis de serem
modificadas por novas experiências). Perante isto, torna-se evidente que a
memória pode constituir um elemento potenciador da procura.
Mas, como refere Pérez (2009), longe da autenticidade potencialmente procurada,
muitas imagens estão, não raras vezes, cheias de idealizações e clichés
redutores que não fogem a uma leitura científica crítica. Folhetos, brochuras e
vídeos turísticos apresentam uma iconografia dos locais de destino turístico
que na maioria dos casos ocultam, obscurecem e mascaram as realidades sociais,
culturais, políticas e económicas.
A nosso ver, o documentário etnográfico pode aqui marcar alguma diferença.
Enquanto método de investigação antropológica, mais do que conteúdo, o
etnográfico pretende transmitir a realidade tal como ela se apresenta (ainda
que obviamente também ela possa sempre ser alvo de encenação e representação).
Kotler (1994) citado por Coutinho (2004:15) afirma que a criação de uma imagem
turística pressupõe a capacidade de gerar impactos positivos, relevantes e de
credibilidade ao mesmo tempo que pode atrair turistas a uma certa região ou
localidade.
Este facto ganha importância acrescida numa época em que se procuram novas
identidades como nos refere Giddens (2002).
No mesmo sentido, Goulart, Perazzo e Lemos (2005:153) salientam que são os
sentimentos de pertença a um grupo, garantido por imagens ou símbolos, que
permitem o reconhecimento do outro e de si mesmo. Esse reconhecimento pode ser
visualizado a partir da gravação sistemática (de som e imagem) de depoimentos
de personagens singulares, atribuindo importância às minorias e destaque para
os direitos e liberdades.
Este envolvimento do sujeito no plano contextual é determinante na definição da
personalidade e da identidade (elementos chave no exercício da cidadania, só
possível a partir do momento em que se lhe reconhece o direito a expressar-se e
a ser ouvido).
No caso concreto do documentário etnográfico6, importa salientar que este pode
assumir um importante papel ao possibilitar a articulação entre o material e o
imaterial, o produto e a memória cuja reconstituição permite resgatar usos,
costumes, tradições.
Como suporte desta tendência Lima (1999) refere que ao longo da História, o
Turismo tem procurado legitimidade e autenticidade pelo que se compreende que o
Turismo étnico funcione como um grande atractivo revelando uma forte
potencialidade turística.
O tipo de produtos potenciado pelo documentário tem, como refere Cardozo (2006)
suscitado o interesse do Turismo pela atracção que podem exercer na procura
interessada em Cultura, principalmente aquela que anseia por algo que
ultrapasse os grandes ícones culturais/turísticos já consolidados no mercado.
Os produtos culturais étnicos podem ser variados: obras arquitectónicas,
festividades, idiomas, trajes ou gastronomia. Do ponto de vista das ciências
sociais, a cultura é, de facto, um conceito de tal forma pluridimensional que
pretende designar uma estrutura social no domínio das ideias, crenças,
costumes, arte, linguagem, etc.
Este facto justifica a constituição de acervos originados quer em histórias de
vida quer em manifestações comunitárias pois estes podem constituir importantes
instrumentos de comunicação alternativa aos meios de comunicação de massa, ao
mesmo tempo que podem contribuir para a produção/divulgação de novos produtos e
destinos turísticos.
Ainda quanto à construção de produtos turísticos, Gastal (1999) salienta que,
do seu ponto de vista, a cultura deixou de ser vista como uma motivação para
ser vista como um produto em si. Trata-se de um produto de vanguarda turística
em que também a cultura viva de uma comunidade e suas manifestações ganham o
estatuto de produto turístico atraindo sobretudo o turista atento e curioso
de que fala Avighi (2000).
Aliás, o Turismo cultural é um dos segmentos do mercado turístico em maior
ascensão. A propósito, Barreto (2000:21) refere que o Turismo cultural, em
sentido amplo, é aquele que não tem como atractivo principal um recurso
natural. As coisas feitas pelo Homem constituem a oferta cultural, portanto
Turismo cultural seria aquele que tem como objectivo conhecer os bens materiais
e imateriais produzidos pelo Homem.
De facto, importa não esquecer que a Cultura de um povo não se exprime apenas
em aspectos físicos (museus, monumentos, arquitectura, etc) mas também nos
saberes, músicas e danças típicas, no folclore, na gastronomia, no artesanato,
nas lendas ou nas festividades.
Morales (2003) adianta que no século XXI, a aliança entre Turismo e Cultura
poderá permitir fecundos intercâmbios culturais , ser uma fonte de prosperidade
material e de bem estar social.
Segundo Beni (1998), citado por Cardozo (2006), os atractivos turísticos podem
ser classificados em: naturais, histórico-culturais, manifestações e usos
tradicionais e populares, realizações técnicas e científicas contemporâneas e
acontecimentos programados.
Assim, um dos grandes desafios do Turismo, nomeadamente em Portugal será
aproveitar as especificidades locais e regionais (tanto do ponto de vista
ambiental como cultural) conscientes de que esta, será uma estratégia para o
desenvolvimento de um Turismo Sustentável.
3. Recuperação do imaginário colectivo da Serra d'Arga pela projecção turística
dos lugares simbólicos.
A construção de um destino turístico, radicando-se nos atributos naturais,
paisagísticos, patrimoniais e histórico-culturais de um determinado espaço, é,
na actualidade, um processo de (re)descoberta da identidade do lugar, a qual
passou a ser objecto de consumo, assumindo valor de mercado. A imagem do
destino expressa o resultado de um trabalho interdisciplinar, onde os
especialistas em Marketing e Ciências da Comunicação assumem um papel de
coordenação, fazendo a síntese de saberes, interpretando e transformando os
factores identitários de um território ou de uma comunidade em activos-chave
numa lógica concorrencial. O desafio do posicionamento da marca-destino e a
busca pela diferenciação de produtos turísticos num sector cada vez mais
competitivo reflectem-se numa demanda irreflectida pelo original, pelo único,
pelo autêntico.
A Serra d'Arga, encontrando-se ainda numa fase inicial de afirmação enquanto
destino turístico, irá em breve confrontar-se com questões incontornáveis na
definição de um plano estratégico de marketing territorial. Se o diagnóstico
dos seus recursos turísticos materiais é uma tarefa árdua mas objectiva, o
estudo dos seus recursos intangíveis apresenta-se muito mais complexo.
Lugar lendário, situado na parte Ocidental do Alto Minho, entre o Rio Lima e o
Rio Coura, a Serra da Arga, converteu-se desde meados do século XX em objecto
privilegiado do interesse de Historiadores e Antropólogos.
Um dos primeiros estudos sobre a Serra d´Arga data da década de 50 do século XX
e teve como autor Rosa de Araújo. No entanto seria na década de 80 que se
evidenciaria um maior interesse por aquela região (Robert Rowland, 1981 ou
Alberto Abreu, 1989). Todos estes estudos converter-se-iam, na realidade em
agentes de sedimentação de um imaginário etnográfico em torno da serra.
As festividades de São João D´Arga (encerram um misto de religiosidade e
paganismo), representam para os filhos da terra (que ali nasceram ou vivem)
segurança, dignidade, possibilidade de união, de participação de inclusão. É
ali que lhes é verdadeiramente permitido exercer a sua cidadania. A evocação
daquele lugar como espaço construído por e para eles dá resposta à reclamação
de um direito: de identificação e pertença.
Ao mesmo tempo, as festividades locais são formas de manutenção/preservação de
tradições das comunidades Possuem, por isso, valor histórico, cultural e
turístico.
De acordo com a definição da UNESCO (2003), o Património Cultural Imaterial
manifesta-se entre outros domínios nas tradições e expressões orais, nas
práticas sociais, rituais e eventos festivos, nos conhecimentos e práticas
relacionados quer com a natureza como com o universo. Apresenta-se assim como
um vasto conjunto de manifestações e de expressões de carácter intangível e que
têm a memória como meio de preservação e a oralidade como meio de transmissão.
Surge então englobado no seio desta imaterialidade as lendas, os mitos, os
contos populares, como igualmente os rituais e as festas, bem como todo o
universo de saberes e vivências da cosmogonia popular.
O projecto que está na base da realização do documentário sobre a Romaria de S.
João d`Arga pretende potenciar a recuperação do imaginário colectivo da Serra
d'Arga, através das suas lendas, contos e mitos, e o seu papel na construção
identitária do território. Todos os anos, a 28 e 29 de Agosto, milhares de
pessoas deslocam-se ao mosteiro de S. João D´Arga para participarem naquela que
é considerada a romaria mais típica do Alto Minho. Ali, o carácter religioso da
romaria funde-se com o carácter profano da festa que se intensifica ao longo do
dia e se prolonga noite fora. Os romeiros, pessoas de todas as idades, começam
por dar três voltas à capela, no cumprimento das suas promessas ou apenas
demonstrando a sua devoção. À noite, sob o som característico dos tocadores de
concertina, cantam e dançam ao desafio.
A fusão entre religioso e pagão, tão característica daquela romaria, está
particularmente evidenciado no documentário onde se torna também patente o
desejo dos participantes de manterem viva a tradição e a identidade cultural
daquela região e daquela festividade.
A opção pela montagem do documentário com a menor intervenção possível do
realizador e editor traduzem, por um lado, o respeito por esse desejo e por
outro, a intenção de retratar da forma mais autêntica possível aquela
realidade.
4. Conclusão
A presente comunicação pretende potenciar a reflexão sobre a maneira como o
documentário etnográfico pode ser usado ao serviço do Turismo permitindo a
produção e descoberta de novos produtos e destinos turísticos.
O documentário, S. João d`Arga, a romaria, tem origem num vídeo-pesquisa e
propõe-se a desencadear, através do tratamento da imagem videográfica, uma
reflexão sobre a composição de narrativas sonoras e visuais ao estilo da
Antropologia Urbana e Visual.
A metodologia de recolha e interpretação dos mitos e lendas desta Serra, de
origem cristã e pagã, sustentou-se na interacção com as comunidades locais e
na participação em festividades populares que continuam a ser vividas, criadas
e recriadas pelas gentes serranas. Este procedimento, pautado pela interacção e
envolvimento de proximidade, visou alcançar uma compreensão profunda do
significado e da vivência das crenças, ritos e tradições locais. Procurou-se
também observar a autenticidade destas vivências, cuja recriação o mais próximo
possível das origens, reflecte uma evidente nostalgia do passado e de uma
identidade perdida, que agora conscientemente se recupera na reprodução
encenada das suas manifestações mais significativas para a colectividade.
Assim, este documentário pretende ser um primeiro contributo para a reflexão
sobre a identidade da Serra d'Arga e para a valorização do seu denso universo
lendário, constituindo também um alerta para a necessidade premente de
alicerçar o Marketing Territorial e Turístico em estudos de profundidade e
rigor sobre a Herança Cultural de cada território, sob pena de se converter a
singularidade local em folclore massificado. Em termos globais, podemos dizer
que reflecte a preocupação de explorar o uso de técnicas e procedimentos
oriundos da pesquisa etnográfica com base no uso dos recursos audiovisuais.
Do visionamento das imagens produzidas parecem sobressair: três aspectos
fundamentais. Por um lado, e tal como já referido, os sujeitos da investigação
sentem-se participantes activos no nosso trabalho. Em segundo lugar, permite
que o investigador reflicta sobre todo o processo a partir da análise das
próprias imagens. Por último, o visionamento do material audiovisual por parte
dos sujeitos, vai permitir interpretações e reflexões e o transportar de novos
saberes para o processo de investigação. Na realidade, trata-se desse processo
infinito de leitura de imagens, de descodificação / codificação /
descodificação, efectuado quer pelo antropólogo quer pelos sujeitos, conduzindo
à interpretação e à reflexão.
Compartilha-se assim a ideia de Ricoeur (1994) de que a máquina, a técnica e a
tecnologia, não disponibilizam estorias/historias a serem narradas mas podem
sim, ser usadas ao serviço de uma inteligência narrativa.
No mesmo sentido, Braga (2009) salienta que a gestão de uma narrativa
audiovisual apresenta desafios que uma obra escrita não possui. Aqui a
adaptação é reacção, tradução, acção. Assim, o audiovisual não é somente o
espaço da narrativa do real, mas da construção do real. (Vieira, 1992: 119).
Além disto, o próprio acto de assistir a uma produção audiovisual possibilita
uma viagem e o contacto com novas e múltiplas territorialidades e experiências
despoletando um esforço de (re)interpretação. Aliás, é esta que permite
estabelecer uma comunicação efectiva com o visitante mantendo importantes
interfaces com o Turismo, a preservação e o desenvolvimento das comunidades
locais.
Trata-se de um processo participativo em que se torna possível destacar o
carácter diferencial de um lugar e detectar a sua identidade. Através dela, não
só é possível construir produtos turísticos de excelência como estimular o
orgulho de uma comunidade relativamente ao valor e significado do seu
Património Cultural o que certamente favorecerá o desenvolvimento de práticas
preservacionistas
7
.
Investir em interpretação significa então agregar valor ao produto turístico
(Murta & Albano, 2002:281).
No seguimento do pensamento de Rapazote (2007:88) podemos ainda acrescentar que
o documentário não só constitui um instrumento de análise que permite uma
grande abertura de interpretação, como possibilita a difusão da assunção
mimética e realista das culturas mostrando-as como mundos passíveis de serem
conhecidos e gravados em imagens de um universo cultural quase imutável e
evidentemente oposto ao mundo moderno, diferenciado e alienado. As culturas e o
seu presente tornam-se assim passado, transformadas que são em produto
tradicional e autêntico apto a ser consumido
8
em busca de uma autenticidade e identidade perdidas.
Renata Smith (2010) vai ainda mais longe apresentando o documentário como uma
espécie de convite audiovisual, uma verdadeira acção de marketing capaz de
estimular a deslocação de turistas a novas experiências culturais e de lazer.
Por tudo isto, parece-nos então evidente, a importância que o vídeo etnográfico
pode assumir na revelação de novos produtos turísticos. Por um lado, este
instrumento revela-se como um potencial promotor da mobilidade e, por outro,
como um conversor de lugares e acontecimentos praticamente desconhecidos em
atractivos destinos turísticos.