Os físicos e a medicina da alma no Orto do Esposo
Apesar de todas as suas virtudes, aquele prodigioso físico do capítulo I do
Livro III do Orto do Esposo1 não teria suspeitado vir a renascer pelo punho
imaginativo de Jorge de Sena no século XX. Na categoria actancial em que surge,
no interior da obra medieva de anónimo autor, ele é o mais notável, porque, ao
derramar o seu sangue virgem,2 salva a vida a uma nobre dama e ao seu exército,
constituído por 500 cavaleiros. Por sete vezes será imersa a senhora do castelo
no casto líquido que correra nas veias do príncipe, recuperando nesse banho a
sua qu??tura natural.3 Depois de varios físicos terem tentado, em vão, curá-la
é o pródigo viandante que traz o revigoramento à castelã e ressuscita os
soldados mortos.Dom de excecionalidade à parte (que três prebendas fortalecem),
o jovem físico não é o único a assomar ao longo dos quatro Livros da obra
quatrocentista com capacidade de dirimir afeções e de inverter o curso da
morte, como veremos.
No Prólogo da obra, o autor acredita que a leitura do OE pode revelar-se
proveitosa para um público abrangente que contempla, entre outros, alguns
filhos da vulnerabilidade. Relembremos o passo:
“… asy em este liuro som conteudas mujtas cousas pera mãtim?to e deleitaçom e
meezinha e cõsolaçõ das almas (…) ca em este liuro achara (…) o tybo cõ que sse
accenda e o fraco con que se conforte e o o ?fermo cõ que seia sãão e o sãão cõ
que seia guardado em sua saude e o cansado cõ que seia recriado…”.4
Conforto moral e restabelecimento corporal parecem dimanar de uma medicina da
alma que a lectio divina integra e aprofunda, pois “as palavras de Deus (…) som
leytoayro e meezinha pera saude e consolaçom da alma”.5
Pela leitura integral do escrito ascético português, constata-se que os
físicos6 surgem no interior dos exempla, ora como praticantes da ciência
médica, ora assumindo papéis mais sui generis – confirmando atos de fé7 e
lutando contra forças demoníacas8 que se apossam dos corpos. Esta última faceta
aproxima tais personagens da tradição dos antigos magi,familiarizados com o
sobrenatural e com a presciência, dimensões que Thorndike harmoniza na sua obra
de referência sobre o assunto.9 A relação entre a ciência e a religião atesta-
se, por exemplo, na recriação do desafio que Dinis lança a S. Paulo de curar um
cego, não sem uma advertência preliminar: “Mais nõ huses de palauras magicas,
qua per u?tura sabes tu taaes palauras que am este poderio.”10 Na senda desta
contaminação de funções, também comparecem na obra, um “escollar nigromateco”11
e um encantador.12
Apesar de tudo, a physicamantém-sena ala das ciências seculares, cuidando
daquilo que menos interessa (aparentemente) à medicina da alma. A esta importa
a dissipação da “pestelença do peccado”13 e a restauratio post mortem, pelo que
o sofrimento da carne, encarado com naturalidade, faz parte do trajeto de
libertação salvífica. Não admira, por isso, que o vocabulário usado para
descrever as doenças físicas seja aplicado na análise das afeções da alma,14
que vive em permanente luta contra o visco mundanal. Escusado será também dizer
que neste artigo fazemos um uso provocatório da expressão medicina da alma, na
medida em que ela radica em correntes da filosofia antiga, cuja influência o
cristianismo nem sempre reconhece, mas que são prova das afinidades entre saber
clássico e religião cristã. Basta para isso ler as reflexões de Volke sobre o
epicurismo,15 que mostram a tendência para colocar, lado a lado, “le philosophe
et le médecin”, “l’ignorance du non-philosophe et la maladie”, “apprentissage
de la philosophie” / “guérison”.16
Naquele que é um acrisolado convite à renúncia do corpo e das suas seduções, o
papel do físico é disputado por outros agentes, tais como os simples e puros de
coração, que não são apenas os eleitos do Senhor, como concentram qualidades
para se salvaren a si mesmos,17 e os santos.18 Porém, o supremo “buticayro e
huguentayro”19 é Deus, cujo nome tem propriedades medicinais exímias. Na
verdade, estabelecendo uma grande afinidade com os In Canticade S. Bernardo, os
capítulos dos Livro I do OE enfatizam o poder balsâmico e reparador do nome de
Deus, sinónimo de saúde, “mãyar e meezinha”20 contra “todalas ?firmidades e
chagas da alma e do corpo”.21 E que chaga vem a ser esta senão a do pecado
original, que a falta de fé e a entrega às tentações minam?
No seu Comentário ao Cântico dos Cânticos, Bernardo de Claraval fala do
“caelestis medicus”,22 e, pela repetição da laudatória frase Oleum effusum
nomem tuum, reflete sobre as propriedades curativas dos sagrados unguentos,23
anunciando ainda que
“Unus idemque cibus et aegrotis est medicina, et aegratativis dieta; porro et
débiles confortat, et delectat valentes. Unus idemque cibus et languorem sanatm
et servat sanitatem, et corpus nutrit, et palato sapit.”24
Achaques, desânimos e dúvidas, de índole anímica e moral, encontram no Senhor a
indefectível fonte de cura e lenitivo. Reparação para os sentidos cansados25 e
mezinha que resgata a alma do “laço da morte",26 o nome de Jesus é vaso
medicinal que encerra o testemunho de Lucas 7, 21 (E na mesma hora curou muitos
de enfermidades, e males, e espíritos maus, e deu vista a muitos cegos). Daí
que salvação e saúde sejam as promessas apresentadas em uníssono para coroar o
bom cristão, sarando todas as feridas que o aguilhão terreno lhe pode infligir.
É ainda São Bernardo que nos ilumina quanto à impossibilidade de o físico medir
forças com o caelestis medicus: “Haec omnia mihi sonat, cum insonuerint Iesus.
Sumo itaque mihi exempla de homine, et auxilium a potente: illa tamquam
pigmentarias species, hoc tamquam unde acuam eas; et facio confectionem, cui
similem medicorum nemo facere possit.”27
Por conseguinte, na fidelidade a esta tradição exegética revela-se igualmente
discreta a comparência dos físicos no OE. Na obra de espiritualidade monástica
portuguesa o bem-estar do corpo é de somenos importância, já para não mencionar
(em contexto extra-verbal) certa animosidade histórica da Igreja com uma
ciência que passará a ser monopolizada por braço laico28 e a transpor os hortos
medicinais dos mosteiros. Os homens ligados à arte de curar que aqui surgem
parecem, assim, migrar de catenae e de compilações de exempla onde superstição
e pseudociência, bem e mal andam de mãos dadas.
Bem diferentes dos expedientes dos físicos são os recursos usados pelo Senhor
no socorro dos penitentes.29 No horto místico não podem faltar as “especias
aromaticas”,30 a partir das quais se fazem santos remédios. São as “heruas
virtuosas do orto da Sancta Scriptura” que ajudam a dispor contra as
“?firmidades spirituaes”31 e os frutos da cultura monástica que prescreve um
modus vivendi beato, com lugar para o “prazer spiritual”.32 É exatamente neste
filão que se encaixa uma possível identificação entre algumas correntes da
filosofia antiga e a medicina da alma cristã, aspeto supracitado. Verifica-se,
por exemplo, alguma harmonia entre estóicos, epicuristas e autores cristãos
quanto à necessidade de fugir aos bens efémeros para evitar perturbações da
alma. Transversal ainda é a proclamação do domínio do espírito sobre o corpo,33
que deve ser dominado com “panos vis”.34
Ossatura digna, porque simbólica, só existe mesmo uma – a da ecclesia que
acolhe todos os fiéis. Contudo, também ela sucumbe à enfermidade se a Igreja
militante for negligente. A imagem apresentada num dos exempla do OE fala por
si.35
As almas corrompidas e relaxadas colocam em perigo a integridade da morada
cristã. Todavia, embora existam maus serviçais, a misericórdia de Deus é
infinita e as suas palavras atuam como remédios eficazes para quem revelar
vontade em obter a salvação. Assim, no OE, não se prescinde dos conselhos de
leitura da Sacra pagina,36 cuja ruminatio integra um processo de purificação
interior e de conhecimento: “este liuro deue hom? tomar da mão de Jhesu
Christo, rogando-o muy humildosamente e receb?do-o cõ grande deseyo e
mastigãdo-o cõ grande sabor e corporãdo-o ?na sua alma”.37 Numa leitura
complementar, verifica-se que nos sermões do Abade de Claraval é benquista a
intercessão da sabedoria na convalescença dos enfermos:
“15. O Sapientia! Quanta arte medendi in vino et oleo animae meae sanitatem
restauras, fortiter suavis et suaviter fortis! Fortis pro me, et suavis mihi.
Denique attingis a fine usque ad finem fortiter er disponis omnia suaviter,
propellens inimicum et infirmum fovens. Sana me Domine et sanabor …”.38
A par de Deus, também os apóstolos são “nostri medici”39, ao passo que se
desvaloriza a opinião médica de outras figuras credenciadas na época (e ao
longo de vários séculos), verdadeiras auctoritates na literatura especializada:
“Num Hippocratis seu Galieni sententiam, aut certe de schola, Epsicuri, debui
proponere vobis? Christi sum discipulus, Christi discipulus loquor: ego si
peregrinum dogma induxero, ipse peccavi. Epicurs atque Hippocra, corporis alter
voluptatem, alter bonam habitudinem praefert; meus Magister utriusque rei
contemptum praedicat. Animae in corpore vitam quam summo studio iste unde
sustentet, ille unde et delectet, inquirit atque inquirere docet,Salvator monet
et perdere.”40
Menosprezar a materialidade e a aparência em favor da entrega despojada a Deus,
numa conquista de valores eternos que ultrapassam a vaidade, a beleza e o
cuidado com o carneum animae ergastulum são regras basilares para a elevação
espiritual.41 A alma sã dá saúde ao corpo, mas o contrário não parece ser
verdade. Confrontado com o dilema de salvar a alma ou de sofrer pacientemente,
até ao fim dos seus dias, várias maleitas corporais,42 S. Gregório não
tergiversará na hora de escolher o castigo físico, com vista à redenção. A
saúde espiritual justifica que se sacrifique o corpo – verdadeiro cárcere da
alma –, porque o estado de doença é o que mais se adequa à obtenção da
virtude.43 Tolhido fisicamente, o homem está menos exposto às armadilhas do
demónio, perdendo a vontade de se divertir44 e de correr atrás de bens
transitórios. O exemplo mais à mão encontra-se em St. Petronilha,45 que o pai
deixava jazer enferma, a fim de garantir a incorruptibilidade do seu amor a
Deus.
Desta feita, também os mártires suportam corajosamente a dor durante os atos de
flagelação a que são sujeitos,46 encarando a desfiguração como um passo
libertador para alcançar a cidade celeste, sob um manto de leveza. Não deixa de
ser impressiva a proclamação do Papa Inocêncio V no leito da morte, num misto
de desencanto e de pessimismo antropológico:
“E ora vede hu som as rodas do curso da minha vida, hu he a nobreza da minha
geeraçom, hu he a ciencia, hu sõ as riquezas que me nõ ualerõ agora, e hu he a
fremusura do meu corpo!
E, dizendo esto, discobrio-se ?nos peitos e pareceo a todos tam mesquinho e tam
cõsumido que parecia Lazaro ressuscitado do moym?to, per que mostraua que a
fremusura dos corpos deue seer desprezada como cousa fugidia e que dura muy
pouco.”47
Na mesma linha, Alexandre Magno, ao sofrer uma arremetida dos inimigos que lhe
provocou uma ferida muito dolorosa, diz com ironia: “Todos me diz? que eu som
filho de Jupiter, deus do ceeo, mas esta chagua braada e diz que eu som hom?
mortal.”48 Conclui-se que tanto o sofrimento como a iminência da morte agudizam
a humildade e intensificam a consciência da fragilidade humana, predisposição
essencial para o salvífico desfecho. Em coerência com a sensibilidade cristã,
na representação de cenas agónicas que antecedem a partida deste mundo são os
clérigos que permanecem à cabeceira do moribundo. Às vezes, também assoma o
demónio para angariar as almas que se entregam à perdição.
Se para o homem medieval qualquer distúrbio físico radica no pecado, é comum
serem os religiosos e os sábios a intercederem pelo paciente.49 A prescrição da
virtude50 e a condenação da luxúria estão no âmago de uma scientia salutaris
que a physica não domina, porque o seu objetivo primeiro é mitigar a dor e
curar padecimentos que saltem à vista dos olhos sensíveis.
Ao coração do homem de fé, que tem consciência de ser feito de lodo e cinza,51
é grata a ideia de supliciar o corpo para recuperar a sua condição de ser à
imagem e semelhança de Deus. Não está, porém, entre as funções do físico
exercer uma medicina da alma que purifique e reconduza os homens ao seu
Criador. Mais próximo desta via medicinal parece estar o filósofo antigo para
quem as paixões têm de ser extirpadas e a vida reduzida à essencialidade. Mas,
por ora, não podemos substituir personagens, pois era a presença dos físicos no
OE que queríamos assinalar ao longo destas linhas. A profícua relação entre
filosofia e medicina da alma terá de ficar para uma outra reflexão.