Paisagem e povoamento: da representação documental à materialidade do espaço no
território da diocese de Braga (séculos IX a XI). Ensaio metodológico
APRESENTAÇÃO DE TESE
Tese de Doutoramento em História Medieval apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, Dezembro 2013. Orientação do Professor Doutor Luís
Carlos Amaral (U. Porto) e coorientação do Professor Doutor José Ángel García
de Cortázar (U. Cantábria) 1
1. Tema.Esta tese foi concebida como a segunda peça de um programa de
investigação que vinha de trás e deveria prolongar-se para além dela. Sucede a
um primeiro trabalho, restrito à análise de uma unidade específica de
organização social do espaço (o casal), que procurava a um mesmo tempo: (i)
desenvolver nos planos semântico e morfológico uma metodologia de análise desse
tipo de unidades rurais e aplicá-la a um espaço-tempo concreto (o Entre-Douro-
e-Lima, entre os séculos X e XII); e (ii) estudar uma unidade de base familiar
que assumiu, logo no século XII, um papel central na ordenação da paisagem e do
povoamento rurais do Entre-Douro-e-Minho2. Constituía-se assim este primeiro
ensaio como uma sondagem à organização social do espaço minhoto, cujo estudo
global exigia nova e mais alargada investigação3.
A presente dissertação propôs-se, de acordo com o plano inicial, desenvolver
esse estudo global. Mas rapidamente o curso da investigação se encarregou de
demonstrar que havia um conjunto de problemas prévios que importava estudar de
forma aprofundada, sob pena de a construção do edifício assentar em fundações
demasiado frágeis. Não pareceu possível avançar para a análise dos processos de
apropriação, organização e articulação do território minhoto até ao século XII
sem antes atentar em duas questões principais, que vieram a corporizar o
objecto do trabalho: (i) os modelos discursivos de base e as circunstâncias
conjunturais de transmissão que moldaram a representação documental do espaço
no conjunto das fontes escritas conservadas (um corpus que estava – e continua,
em boa parte – por estudar4; e (ii) a morfologia propriamente dita do espaço
organizado (paisagem) e articulado (território), analisada dentro dos
constrangimentos impostos pelo registo escrito ao estudo das diversas unidades
espaciais cuja tipologia os redactores distinguiram nos seus textos.
Neste sentido, a necessidade de aprofundar o inquérito nos planos semântico e
morfológico, que ficara bem patente naquele primeiro trabalho sobre o casal,
redimensionou-se neste segundo. E obrigou a recentrar a análise num conjunto de
problemas relacionados com a representação documental e a concretização
material do espaço. Percebe-se assim que o objecto deste trabalho se construa
num duplo plano, sintetizado no título. No horizonte esteve sempre um
objectoglobal: a paisageme opovoamento, que entendemos como bases materiais do
processo de organização social do espaço na região e cronologia escolhidas. Mas
o essencial da investigação foi dominado por um objecto imediato: o arco que
vai da representação documental à materialidade do espaço.
2. Programa. Há, portanto, nesta tese uma função exploratória e instrumental
que a transforma num ensaio metodológico, cujo programa se distingue por um
duplo objetivo: (i) apresentar uma metodologia para o estudo da morfologia das
diversas unidades espaciais referidas na documentação altimedieval; e (ii),
como primeiro passo dessa metodologia, desenvolver uma reflexão sobre as
potencialidades das fontes escritas para o conhecimento da materialidade do
espaço. Estes dois objetivos estão na origem das duas partes da dissertação: a
primeira dedicada à justificação teórica e apresentação da metodologia proposta
e a segunda aos problemas que a representação documental levanta ao
conhecimento da materialidade do espaço no corpus documental selecionado em
função de um caso concreto: o território da diocese de Braga, entre os séculos
IX e XI.
Note-se, contudo, que esta selecção não foi um mero resultado dessas
coordenadas espácio-temporais, mas está de alguma forma na sua origem.
Sucedendo imediatamente ao regresso das fontes diplomáticas (na década de 970),
a cronologia escolhida acompanha um momento essencial na afirmação da escrita e
na formação das estruturas senhoriais neste território. Os séculos IX a XI
constituem um período decisivo na hora de avaliar a interacção entre uma nova
estrutura social de poder e os modelos de organização da paisagem e do
povoamento rurais. Já a exacta delimitação do espaço em análise define-se
sobretudo em função de uma geografia documental e reduz-se, em última
instância, ao conjunto dos lugares e zonas mencionados na documentação
produzida e conservada. Enquadrado no território da diocese de Braga, o espaço
efectivamente em análise é determinado pela cobertura geográfica dos dois
cartulários produzidos pelas duas principais instituições da região: a Sé de
Braga (Liber Fidei) e o mosteiro de Guimarães (Livro de Mumadona Dias).
Explica-se assim a concentração dos dados disponíveis na zona central da
diocese, melhor organizada e sobretudo documentada. O que implicou a conversão
de um quadro supra-regional de partida (o território diocesano) num quadro
infra-regional, correspondente grosso modo ao Entre-Lima-e-Ave, e com extensões
pontuais aos territórios transmontanos de Chaves e Vila Real.
Porque concebida especificamente a partir de fontes diplomáticas altimedievais,
a metodologia apresentada acarreta uma reivindicação heurística da relevância,
mas também das limitações, deste tipo de fontes para o estudo do espaço. O que
tem implicações epistemológicas no debate sobre os espaços de cruzamento/
ruptura entre a história e a arqueologia. Trata-se, portanto, de uma
metodologia historiográfica, por oposição a metodologias outras, de base
arqueológica (tanto ligadas à escavação estratigráfica como à prospecção),
geográfica, paleoambiental, etc. A generalidade destas abordagens, e desde logo
as que se aproximam mais das ciências naturais, assenta num instrumental
técnico complexo e bem definido. E nisto contrastam com o impressionismo e o
sincretismo dos métodos que tradicionalmente guiam os historiadores do espaço
na leitura das fontes escritas altimedievais: uma leitura que não passa muitas
vezes disso mesmo, sem sequer atingir grande complexidade no plano estritamente
hermenêutico. Percebe-se assim a necessidade de avançar na concepção de
metodologias especificamente desenhadas para o estudo deste tema, cronologia e
realidade documental específicos.
3. Estrutura.A tal objectivo responde a Parte I do trabalho. Formular uma
proposta de análise que se pretende capaz de abrir pistas de investigação
implica mais do que a apresentação de uma metodologia em sentido estrito (um
conjunto articulado de ferramentas analíticas). Obriga a um trabalho prévio de
elaboração teórica, definindo o campo a que uma tal metodologia pode ser
aplicada e os limites dessa aplicação. Esta primeira parte começa assim por
explicitar um conjunto de definiçõesinerentes à problemática historiográfica
que enquadra a concepção da metodologia proposta (Parte I, §1) e à natureza do
seu objecto, com vista a uma clara definição do seu exacto campo de aplicação:
a representação documental do espaço (§2). Segue-se a apresentação da
metodologia propriamente dita, cujas semelhanças operativas (mas não
substantivas) com o método prosopográfico nos levaram a adoptar a designação de
“prosopografia do espaço”(§3); e uma referência ao quadro mais alargado de
fontes que se impõe a uma metodologia desenhada para a análise da documentação
diplomática mas inequivocamente preocupada em contribuir para o quadro
interdisciplinar que o estudo do espaço exige (§4). Percebe-se assim que a
formulação de uma tal proposta tivesse atingido dimensão suficiente para ocupar
uma parte autónoma do trabalho.
Do mesmo modo, cremos que se justifica também dedicar toda a Parte II à crítica
das fontes e ao estudo da terminologia espacial. Num trabalho que pretende
avaliar as possibilidades (e limitações) oferecidas pelos textos para o estudo
da realidade material, é indispensável conhecer, e delimitar bem, a sua
capacidade para representarem uma realidade que os transcende. É esta a melhor
forma de superar a encruzilhada a que conduziu o pensamento pós-modernista mais
radical, ao pretender que os textos só poderiam falar de si mesmos. Percebe-se
então que, antes de passar à análise propriamente dita de um qualquer problema
relacionado com a materialidade do espaço, seja necessário considerar três
aspectos que funcionam como poderosos filtros da informação que este tipo de
fontes pode fornecer (Parte II, §1): (i) as circunstâncias que ditaram a génese
e transmissão do corpus documental disponível (§1.1.), (ii) as tipologias e o
discurso diplomáticos que marcam a escrituração da realidade espacial (§1.2.) e
(iii) o léxico que suporta a representação documental do espaço propriamente
dita, mediante a utilização, por parte dos redactores, de uma terminologia
específica para designarem as múltiplas unidades espaciais a que se referiam
(§1.3. e §2).
4. Problemática. A definição da problemática que subjaz à proposta metodológica
apresentada na primeira parte do trabalho obrigou a uma revisão da literatura
em torno da paisagem, do povoamento e do espaço na Alta Idade Média. Depois de
uma panorâmica sobre a construção do binómio espaço-sociedade no quadro da
história rural europeia (Parte I, §1.1.), procurou-se sintetizar as diversas
linhas de investigação que promoveram (e questionaram) o estudo do povoamento
enquanto “fóssil-director” da evolução social (§1.2.) e as várias correntes
mais recentes que corporizam a (re)emergência da paisagem, entre os estudos
paleoambientais e os da sua representação simbólica (§1.3.). Esta revisão, que
deve ser entendida como um itinerário entre muitos possíveis, não pretende ser
um balanço exaustivo, mesmo no campo da história tout court, e muito menos nos
domínios da arqueologia, da geografia, das ciências paleoambientais e de outras
disciplinas que foram chamadas à colação. Procurou apenas sinalizar as linhas
de reflexão teórica e de trabalho empírico que contribuíram mais directamente
para a génese da nossa proposta metodológica. Só então foi possível definir o
objecto a que se aplica esta proposta, na complexidade da trilogia que o
caracteriza, entre a base material, a organização social e a representação
documental do espaço.
5. Objecto. Nesta trilogia, assume particular importância o jogo de interacção
entre os pólos essenciais que são a base material e a organização social (Parte
I, §2.1.). No entanto, a representação discursiva do espaço não constitui
apenas uma realidade mental (autónoma) em que convergem a base material e a
organização social (através sobretudo da mediação do léxico espacial, que
investe realidades materiais de um significado social), mas assume também o
papel de mediadora entre estes dois pólos da realidade histórica, por um lado,
e o historiador que a eles acede através dos documentos, por outro. Devemos
assim atentar no papel que a representação documental do espaço desempenha na
criação de um objecto especificamente historiográfico como é o da metodologia
aqui proposta (§2.2.). Construído com base em fontes escritas, logo situado, de
acordo com a dicotomia tradicional, do lado das apropriações sociais e das
representações mentais do espaço, este trabalho procura precisamente superar
essa dicotomia, prestando uma atenção particular à informação que é possível
retirar dos textos sobre a materialidade do espaço.
Assimilados que estão hoje os contributos relevantes da reflexão pós-moderna
nos planos epistemológico, heurístico e hermenêutico, e em face de uma
crescente consolidação disciplinar da arqueologia e das restantes ciências
históricas das materialidades, parece chegado o momento de reequacionar a
importância e o papel da história – aqui entendida em sentido restrito, como
disciplina encarregada de produzir conhecimento sobre o passado a partir de
fontes escritas – no estudo desta secção do real. Certamente não numa
perspectiva unilateral, ignorando a relevância (primazia, mesmo) do registo
material e dos dados e interpretações produzidos pela arqueologia; mas
consciente, ao mesmo tempo, da importância do registo escrito e do contributo
importante que a sua análise pode dar tanto no plano da produção de informação
como no da interpretação.
A principal força das fontes escritas reside no facto de permitirem investir a
informação fornecida sobre a morfologia das unidades espaciais de: (i) uma
localização cronológica exacta, sustentando o desenho da sua evolução (pelo
contrário, são as fontes arqueológicas que proporcionam localizações espaciais
exactas); (ii) um contexto social, que define o lugar de cada unidade no quadro
de um determinado modelo (ou conjunto de modelos) de organização social do
espaço; (iii) um significado cultural, no quadro de esquemas articulados de
percepção e representação do espaço, que são ao mesmo tempo um produto das
estruturas sociais que organizam o espaço e um factor do próprio processo de
organização, já que a acção sobre o espaço implica sempre uma representação
prévia; isto para não insistir no papel central destes esquemas de percepção e
representação na génese da imagem que nos é dado construir, hoje, do espaço
altimedieval. As fontes escritas levantam, assim, problemas que ultrapassam
largamente o da simples materialidade, dadas as suas implicações nos planos
económico (dos “modos de vida”), sociopolítico (no quadro global de poderes
exercidos sobre uma população e um território) e cultural (no horizonte amplo
das práticas e das representação espaciais). No entanto, também é verdade que
uma correcta apreensão do significado que uma determinada unidade espacial
assume em cada um destes planos implica necessariamente o seu fundamento
“objectivo”, e portanto a caracterização tão rigorosa quanto possível da sua
morfologia física.
É indiscutível o impacto dos avanços recentes da arqueologia neste domínio, que
veio confrontar a investigação histórica com um conjunto muito amplo (e novo)
de dados empíricos e mesmo de propostas interpretativas que esta tarda
efectivamente em acompanhar. No entanto, parece-nos igualmente importante
reconhecer que as fontes escritas – e os historiadores – estão em boa posição
para avaliar a interacção espaço-sociedade, e em particular o que designámos
por bases materiais da organização social do espaço. Isso implica, todavia,
superar uma certa dificuldade em desenvolver metodologias específicas que sejam
também capazes de uma análise igualmente renovada e mais detalhada das fontes
escritas para o estudo da paisagem e do povoamento.
6. Metodologia. Procurando responder a este conjunto de perspectivas de análise
de um objecto que definimos como a representação documental de uma realidade
material socialmente construída, a metodologia proposta (Parte I, §3) orienta-
se por dois objectivos principais: (i) o levantamento sistemático das
distribuições cronológica e espacial das menções documentais às diversas
unidades de organização do espaço num dado território e (ii) o estudo
morfológico destas unidades e da sua evolução. É evidente o interesse de um
inquérito construído em torno das unidades de organização do espaço definidas
pelos próprios redactores dos documentos, com recurso a um léxico
classificatório que se constrói na intersecção entre os planos material e
jurídico e que responde a esquemas sociais de organização e a esquemas mentais
de representação do espaço. Combinando a base material com a dimensão
representacional, este léxico não se limita a descrever meras unidades
espaciais, com uma tradução material e geográfica exacta, mas permite
concretizar o jogo de interacção que se estabelece entre um determinado espaço
e a sociedade que o organiza. Ficam assim abertas vias para o estudo relacional
de ambas as realidades (materiais e sociais/mentais) e para conhecer as
implicações propriamente físicas daquela organização.
Como se percebe, a metodologia de análise espacial proposta é, no essencial, um
subproduto da metodologia proposta por J. Á. García de Cortázar para o estudo
da organização social do espaço. Destaca-se apenas por dois movimentos de
sentido contrário: (i) a tentativa de alargar o leque de unidades (e escalas)
espaciais em análise, para lá das unidades centrais de “organização” e
“articulação” do espaço privilegiadas pelo autor; e (ii) a restrição do
questionário de análise à morfologia física desse conjunto mais amplo e
heterogéneo de unidades espaciais, associadas aos mais diversos sectores da
paisagem rural (incluindo o habitat). Claramente inspirada no método
prosopográfico, esta metodologia toma como base da análise todasas unidades de
organização do espaço que é possível identificar (e localizar) na documentação,
desde as mais pequenas parcelas de organização do espaço agrário até às grandes
unidades de articulação política do território. E procura congregar toda a
informação sobre a morfologia de cada uma dessas unidades, dispersa pelos
vários documentos (e datas) em que elas aparecem referidas. Criou-se para isso
uma base de dados que permite organizar a informação através de três
procedimentos básicos:
A) numprimeiro módulo (Documentos), são seriadas todas as unidades mencionadas
num mesmo documento, através de uma ficha de que consta a informação
identificativa de cada escritura (cota arquivística, datação, classificação
diplomática, publicações, crítica, sumário, etc.) e uma lista detalhada de
todas essas unidades, com a indicação do respectivo tipo morfológico e
designação, recolhendo rigorosamente (e apenas) a informação veiculada pelo
redactor do documento;
B) em seguida, num segundo módulo (Elementos), é recolhida numa ficha
individual toda a informação que o documento fornece sobre a morfologia de cada
uma das unidades nele referidas, cobrindo aspectos tão variados como a
identificação, a fragmentação e delimitação da unidade, o sistema de
localização utilizado para a situar no território, as relações espaciais
(efectivas ou formulares) com outras unidades que o documento lhe aponta, e os
indicadores da sua atribuição social (pela dupla via das transmissões de que
foi objecto a sua propriedade e dos tributos que sobre ela impendem);
C) finalmente, num terceiro módulo (Unidades), são seriados todos os elementos
relativos a cada unidade numa ficha de que constam não apenas a lista das
menções documentais à unidade (com a respectiva data), mas também a indicação
dos seus tipo morfológico e designação normativos, os quais resultam já do
cruzamento da informação (nem sempre coincidente) veiculada pelas diversas
menções documentais. Percebe-se assim que este processo de “consolidação” de
elementos não seja automático, mas resulte de operações de identificação feitas
caso a caso, recorrendo sobretudo às informações sobre a designação, a
titularidade e a localização das várias unidades.
Tais operações levantam, naturalmente, vários problemas interpretativos. Como,
de resto, a identificação toponímica de unidades que aparecem localizadas na
documentação com recurso a uma malha espacial estruturalmente diversa daquela a
que hoje recorremos para as localizar (e cartografar). No entanto, o problema
maior que se levanta é o da classificação morfológica, uma vez que o
questionário subjacente à base de dados coloca no centro da análise os diversos
tipos de unidades de organização do espaço definidos pelos redactores dos
documentos. Optámos por agrupar estes diversos tipos de unidades em cinco
categorias. As duas primeiras resultam directamente da distinção (e definições)
avançada por J. Á. García de Cortázar: (i) as “unidades de articulação social
do espaço”, com funções eminentemente administrativas, e (ii) as “unidades de
organização social do espaço”, dominadas antes por funções de enquadramento
sociopolítico e económico. As restantes categorias incluem unidades espaciais
com uma relevância (tanto territorial como social) tendencialmente menor, mas
que interessam sobremaneira a um estudo preocupado com a materialidade do
espaço: (iii) as “unidades eclesiásticas”, categoria em que integrámos
ecclesiae, mosteiros, ermidas e outros templos, mas não as diversas
circunscrições territoriais que compõem a malha eclesiástica (da paróquia à
província metropolitana) – preferimos antes classificá-las como “unidades de
articulação social do espaço”, à semelhança do que fez García de Cortázar (com
as paróquias e dioceses apenas); (iv) a imensa mole de unidades de paisagem
referida na documentação, sem margem para dúvida a categoria em que a
materialidade do espaço mais claramente se evidencia; e (v) as “formas de
propriedade”, categoria que alberga um conjunto variado de unidades cuja
designação decorre em primeiro lugar da respectiva titularidade (ou mesmo do
tipo de transacção a que foram sujeitas), e que oscilam entre a condição de
unidades com uma tradução espacial concreta e conjuntos abstractos de bens que
só tomados isoladamente têm essa tangibilidade, ou mesmo de meros direitos
formais sobre espaços todavia concretos.
Uma vez recolhida a informação nos três módulos referidos, a base de dados
contempla um conjunto de mecanismos analíticos que procuram viabilizar quatro
objectivos instrumentais: (i) análise quantitativa: para assegurar a
exaustividade da análise, a base permite a recolha e tratamento sistemáticos de
todaa informação relevante, em moldes tão quantitativos quanto possível, e foi
dotada de um sistema de indexação temática dos documentos que facilita a
análise qualitativa; (ii) integração dos dados num SIG:para assegurar a
rigorosa georreferenciação de toda a informação espacial, as listas de lugares
e freguesias que servem de base à identificação toponímica das unidades foram
dotadas das respectivas coordenadas geográficas, possibilitando desde logo a
produção de cartografia automática e a análise espacial; (iii) crítica de
fontes: para assegurar o estudo aprofundado das fontes analisadas e do léxico
espacial documentado, a base de dados foi dotada de um conjunto de campos que
procuram sistematizar a informação relativa a estes problemas e estrutura-se em
função das categorias classificatórias utilizadas pelos próprios redactores
para designar as unidades espaciais, que estão na base da tipologia de unidades
utilizada; (iv) interdisciplinaridade: para assegurar a possibilidadede
integração entre os dados (escritos) e os dados materiais (arqueológicos,
sobretudo), foi atribuída especial importância à escala local em que estes
últimos dados adquirem pleno sentido e aquela integração é possível (donde o
considerável esforço de identificação toponímica tão rigorosa quanto possível
das unidades mencionadas nos textos).
Ao centrar a análise não em unidades espaciais em sentido estrito,
necessariamente identificadas em função da realidade espacial actual (lugares),
mas em unidades de organização do espaço, tal como os redactores as definem
(que depois se procura traduzir na realidade espacial actual, nos casos em que
essas unidades sejam efectivamente indexáveis a um lugar), o nosso questionário
respeita a heterogeneidade da dimensão espacial das unidades que compunham a
realidade (física como mental) coeva. Obedece assim ao jogo de escalas como
recurso analítico imprescindível para captar diferentes sectores da realidade.
Não por acaso designamos esta metodologia com recurso ao conceito de
‘prosopografia’. Com efeito, uma análise assim conduzida oferece-nos a
possibilidade de indexar um conjunto alargado de informações de vária natureza
e rigorosamente datadas (elementos) a uma realidade espacialmente circunscrita
(a unidade espacial) e, acima de tudo, descrita morfologicamente por meio de um
sistema de classificação que, com todas as suas ambiguidades e opacidades para
o historiador, e apesar da oscilação entre os planos material e jurídico, tem a
imensa vantagem de ser coevo da realidade espacial que procura representar
(mais do que propriamente descrever). Ora, é precisamente na especificidade da
informação assim produzida que reside o potencial heurístico e interdisciplinar
da metodologia aqui apresentada. Superando (sem as anular) dicotomias como as
que opõem os planos da representação vs. materialidade do espaço, ou a análise
qualitativa de realidades concretas vs. análise quantitativa de agregados
abstractos, o carácter individual (prosopográfico) das unidades espaciais
erigidas em unidades de análise garante a possibilidade de ancorar a abstração
das palavras no terreno e de contrastar as tendências e ordens de grandeza
estatísticas com o caso singular. Num movimento de permanente vai-e-vém, estes
vários tipos de análises contrafortam-se uns aos outros.
7. Fontes. Embora a base de dados apresentada tenha sido desenhada
especificamente para a análise de fontes diplomáticas, as perspectivas
interdisciplinares abertas por esta metodologia obrigam a considerar um quadro
bem mais amplo de fontes, cuja informação espacial a nossa base de dados deverá
ser igualmente capaz de recolher e tratar (Parte I, §4). A paisagem histórica
(medieval como de qualquer outro período) é um objecto mediatizado, ao qual
poderemos chegar sobretudo através: (i) dos textos, que lhe fixaram
determinadas representações mentais (sem esquecer formas outras de
representação não-textual: cartográficas, pictóricas, etc.); (ii) da toponímia,
que constitui uma forma particularmente eficaz, porque directa e circunscrita,
de semantização do espaço; (iii) do registo arqueológico (incluindo os
“ecofactos”), que fossilizouuma série de fragmentos materiais,nos sucessivos
estádios evolutivos de uma determinada paisagem, sendo que o processo é aqui
mais importante do que as diversas fases (difíceis de individualizar claramente
muitas vezes); e (iv) através dos traços que persistem na paisagem actual,
captados pela cartografia moderna, pela fotografia aérea e por diversos outros
tipos de fontes geográficas. Mesmo que nesta fase da investigação não tenhamos
utilizado outras fontes para além das diplomáticas (que não esgotam sequer o
espectro das fontes textuais), não poderíamos deixar de nos referir brevemente
aos diversos corpora que é possível reunir para o território da diocese de
Braga entre os séculos IX e XI. A panorâmica oferecida, que marca a entrada no
estudo de caso, serve como ilustração do amplo leque de fontes a que a
prosopografia do espaço deverá aplicar-se no momento em que a metodologia for
plenamente desenvolvida.
8. Representação documental do espaço.A análise tão detalhada quanto possível
das fontes escritas constitui a etapa primeira e uma condição prévia da
metodologia de análise espacial proposta. A segunda parte do trabalho, dedicada
a avaliar as possibilidades que o corpus documental analisado oferece para o
conhecimento da materialidade do espaço, não podia deixar de atentar, logo a
abrir, nos já referidos três filtros da informação que este tipo de fontes pode
fornecer sobre a morfologia das diversas unidades espaciais documentadas. Na
impossibilidade de estudar esses filtros em detalhe, optámos por aludir
brevemente a alguns dos problemas que cada um levanta ao estudo do espaço, para
nos concentrarmos depois na análise exaustiva do léxico espacial que foi
possível identificar na documentação analisada.
Num primeiro momento, referimo-nos aos problemas que enquadram a construção dos
corpora documentais, por via do duplo processo de génese e transmissão das
escrituras, para depois expormos os critérios que estão na base do
corpusutilizado, destacando o peso avassalador dos dois cartulários analisados
na transmissão dos documentos de que hoje dispomos para o estudo do território
bracarense antes do século XII (Parte I, §1.1). De seguida, aludimos brevemente
à distinção fundamental no discurso diplomático entre partes “livres” e
“formulares”, a que são tradicionalmente associados níveis muito diversos de
objectivação (§1.2.). Finalmente, tecemos algumas considerações gerais sobre o
condicionamento que a terminologia, mais do que qualquer outro filtro, impõe à
nossa apreensão do espaço documentalmente representado (§1.3.). Ao assumirem o
papel de primeiro intermediário entre a realidade material e a representação
documental que os redactores dela construíram, as palavras desempenham um lugar
verdadeiramente central no arco que definimos como o objecto imediato deste
trabalho: da representação documental à materialidade do espaço.
Não resta outro caminho ao historiador da paisagem e do povoamento
altimedievais, senão o de um estudo atento da linguagem das fontes escritas. A
própria natureza destas fontes conduz o historiador ao domínio das
representações verbais e obriga-o a precaver-se das muitas “armadilhas” que o
vocabulário das fontes lhe monta. Aquele estudo deve, portanto, compulsar
séries de dados o mais amplas possíveis (tanto no tempo como no espaço) por
forma a tentar verificar continuidades e descontinuidades de sentido que, dado
o carácter fragmentário da documentação altimedieval, são sempre difíceis de
estabelecer. E não deve esquecer nunca que a compreensão isolada das palavras e
conceitos utilizados pelo discurso documental estará sempre condicionada ao
estudo dos “sistemas de sentido”, que constituem afinal a maior garantia da
possibilidade de compreensão de discursos passados.
Numa segunda fase, esse inquérito deverá ser cotejado (em jeito de contra-
prova) com análises circunstanciadas da realidade material em espaços
necessariamente circunscritos (micro-regionais, locais), aos quais possa ser
atribuído um certo valor paradigmático, sem nunca cair em generalizações
abusivas. Trata-se, no fundo, de tentar ultrapassar a análise semântica e o
domínio restrito da representação e dos signos, a que o pensamento pós-moderno
procurou confinar o conhecimento histórico, para o confrontar com os traços
(certamente fragmentários também) do que consensualmente se chama a realidade
material. Mas aqui já não devem ser as fontes textuais as únicas utilizadas: é
chegada a vez de recorrer ao registo material, nas suas mais diversas
manifestações: arqueológica, paleoambiental, paleobiológica, etc. O que
ultrapassa manifestamente o âmbito do nosso trabalho, embora constitua um
horizonte de interdisciplinaridade que ele não deixou nunca de ter em conta e
para o qual procura contribuir.
9. Léxico espacial.Dando sequência ao símile da prosopografia do espaço, a
função identificadora que o nome e o estatuto social desempenham para o
indivíduo é assumida, no caso das unidades espaciais, pelo amplíssimo conjunto
de nomes próprios (topónimos propriamente ditos) que podem identificar cada
unidade em particular, e pelo conjunto (bem mais restrito) de nomes comuns com
que os redactores procuram classificá-las morfologicamente. Uns e outros
compõem aquilo a que chamámos o léxico toponímico e espacial, respectivamente.
A metodologia apresentada na primeira parte do trabalho preconiza uma análise
dessas unidades conduzida de acordo com a taxonomia definida por este léxico
espacial utilizado no discurso diplomático. O essencial da segunda parte não
podia deixar de aprofundar o inquérito nos planos semântico e morfológico e de,
simultaneamente, apresentar os primeiros resultados a que conduziu a análise
prosopográfica das unidades espaciais identificadas. A melhor solução para
concretizar este duplo objectivo pareceu-nos ser a elaboração de um léxico dos
vários termos usados pelos redactores da nossa documentação para designar e
classificar morfologicamente as unidades espaciais a que se referiam (Parte II,
§2).
Pretendeu-se assim constituir um dossier que recolhe a informação básica sobre
os diversos tipos de unidades, com os riscos e artificialidade que implica a
compartimentação de uma informação que os documentos constroem – e nos
apresentam – de forma contextual e não isoladamente. Este léxico funcionará
como uma espécie de vocabulário técnico que suporte ab initio as análises que
poderão vir a ser feitas a partir da informação recolhida na base de dados e
aqui sumariada. Note-se, contudo, que não se encontrará aqui uma lista completa
do vocabulário a que os redactores recorreram para nomear o espaço, o que
implicaria a análise do léxico toponímico. Sendo certamente importante, esta
análise ultrapassa largamente o âmbito de um trabalho que não tem propósitos
lexicográficos nem se move no quadro disciplinar da linguística histórica, em
que os estudos topononímicos devem ser integrados.
A opção de incluir neste léxico não apenas o quadro geral de significados
atribuíveis a cada termo mas também a representação cartográfica das
distribuições espaciais dos diversos tipos de unidades identificados no corpus
estudado, bem como alguma informação recolhida neste corpus sobre a morfologia
de cada tipo, transformam-no em mais (e menos, ao mesmo tempo) do que um
apartado de índole lexicográfica. O conjunto de verbetes relativos aos diversos
termos que compõem o universo lexical estudado corresponde, de facto, ao
primeiro estádio, ainda embrionário, de tratamento da informação reunida na
nossa base de dados. Recordemos os números: num total de 366 documentos
analisados, foi possível identificar 3073 unidades espaciais, a que
correspondem 4937 menções documentais, entre as quais foi possível estabelecer
um total de 11516 relações espaciais5. Na impossibilidade de um tratamento
sistemático do imenso corpo de dados reunido, que no limite conduziria a um
conjunto de extensos trabalhos monográficos, este apartado aparece assim como
um mero esboço das potencialidades da metodologia proposta.
No total, integram este léxico 184 termos, agregados para efeitos analíticos em
mais de 70 tipos diferentes, por sua vez reunidos em cinco grandes categorias
tipológicas, já referidas. Para cada termo redigiu-se um verbete de que consta
um conjunto variável de informação, mais ou menos desenvolvida, consoante a
natureza do exacto tipo de unidades em causa, e que podemos agrupar em quatro
items: (i) lema e respectivas variantes formais; (ii) número e natureza das
ocorrências de cada tipo e respectivos limites cronológicos no corpus
analisado; (iii) definição: quadro geral de significados possíveis de cada
termo, capaz de se constituir como um espectro amplo de possibilidades, do qual
deverá partir a análise morfológica das unidades assim designadas no corpus
estudado; (iv) breve caracterização morfológica de cada tipo de unidades, a
partir dos dados recolhidos especificamente no corpus estudado, com o objectivo
(exclusivo) de corroborar ou infirmar os sentidos gerais arrolados.
10. Conclusão.O longuíssimo périplo feito nesta segunda parte pelas centenas de
palavras utilizadas na documentação para classificar unidades espaciais
demonstra a enorme complexidade do “espaço documentado” no território da
diocese de Braga entre os séculos IX e XI. Esse espaço constitui uma realidade
particularmente intrincada, que definimos como uma abstracção entre a base
material, a organização social e a representação discursiva. Captar tal
complexidade é uma condição necessária para qualquer tipo de análise sectorial,
que procure estudar aprofundadamente uma destas três dimensões, e ainda mais
para um estudo global da organização social do espaço, obrigado a conjugá-las
todas. Percebe-se então que, antes de avançar para esse estudo global, tenha
sido necessário atentar detalhadamente num conjunto de problemas que definem o
itinerário apontado como o objecto imediato da dissertação: da representação
documental à materialidade do espaço. A aplicação do questionário subjacente à
metodologia proposta, que procurou sistematizar a informação veiculada pelos
documentos sobre a morfologia de cada tipo de unidade, veio demonstrar as
possibilidades de uma análise assim conduzida para uma futura investigação
sobre a paisagem e o povoamento do território bracarense entre os séculos IX e
XI, entendida como etapa primeira (dedicada às bases materiais)de um estudo
sobre a organização social do espaço.
Sem prejuízo da natureza e escala muito variáveis dos tipos de unidades
definidos, esse questionário propõe uma grelha de análise que passa
essencialmente por três apartados, em que agregámos um conjunto amplo de
variáveis. No primeiro, cabem as distribuições cronológicas e espaciais do
conjunto de unidades de cada tipo. E utilizamos o plural na medida em que a
análise dessas distribuições deve ter em conta diferentes cortes cronológicos e
escalas espaciais. No essencial, a análise deve atentar: (i) na longa duração e
na escala regional, que permitem relacionar a distribuição global dessas
unidades com factores propriamente geográficos e com a configuração estrutural
do povoamento na região, o que explica em larga medida as manchas de maior e
menor concentração; e (ii) no tempo curto e na escala micro-regional (ou mesmo
local, nos casos em que a informação for suficientemente abundante para isso),
que permitem relacionar a distribuição conjuntural dessas unidades com o duplo
processo de organização do espaço e de construção da respectiva memória
documental, que poderá ter sido dominado mas não foi certamente monopolizado
pela iniciativa senhorial.
No segundo apartado, cabe um amplo conjunto de variáveis relacionadas com a
morfologia das unidades. Partindo da análise semântica levada a cabo na segunda
parte do trabalho, que permitiu definir o quadro amplo de significados de cada
termo e a respectiva pragmática (com destaque para a sua utilização em
contextos formulares ou não-formulares dos documentos), atentar-se-á: (i) nos
elementos de designação das unidades de cada tipo (antroponímicos, toponímicos,
hagiotoponímicos, topográficos, referências a proprietários/usufrutuários
anteriores e/ou atuais, etc.), que dizem muito sobre a sua morfologia; (ii) na
integração espacial dessas unidades, tanto do ponto de vista físico (em
paisagens concretas) como social (no quadro de malhas territoriais, de cariz
administrativo ou simplesmente de domínio); (iii) na estrutura interna das
unidades, o que obriga a considerar o conjunto dos componentes que elas podem
integrar (e não apenas do ponto de vista físico: por vezes a integração é
estritamente funcional ou mesmo patrimonial), bem como as possibilidades de
combinação entre os diferentes tipos de componentes e respectivos mecanismos de
articulação (também espacial, funcional e patrimonial).
Por fim, num terceiro apartado, para o qual não recolhemos ainda dados nesta
fase, cabem duas variáveis associadas à morfologia propriamente social das
unidades e, em particular, à sua “atribuição social” (noção proposta por J. Á.
García de Cortázar e aperfeiçoada por E. Peña Bocos6, que dá bem conta da
imensa variedade de formas de domínio sobre o espaço): (i) a cadeia de
transmissão da titularidade sobre as unidades espaciais e (ii) o conjunto de
imposições que sobre elas recaíam.
A “densidade” da informação espacial recolhida segundo a metodologia aqui
proposta, que abrange a totalidade das unidades espaciais documentadas e
percorre toda a tessitura da escala espacial e morfológica (desde um mero marco
físico de delimitação aos grandes territórios diocesanos), é suficiente para
garantir a possibilidade de as referidas análises monográficas se conjugarem
numa visão global capaz de superar a fragmentação a que uma metodologia tão
exaustiva quanto possível de recolha de dados obrigou. Mas que, como
contrapartida, devolve um manancial de informação sobre cada unidade que não é
só abundante como tem a virtude de estar rigorosamente referenciado, tanto do
ponto de vista cronológico (uma vez que todo e qualquer dado está indexado ao
exato documento que o menciona) como geográfico (dentro, obviamente, das
possibilidades de referenciação oferecidas pelos documentos). Será assim
possível, a partir do momento em que esse manancial de informação tenha sido
minimamente tratado e analisado numa perspetiva monográfica, avançar para o
estudo globalda organização da paisagem e do povoamento no quadro regional
definido.
No que respeita ao povoamento, esse estudo poderá conduzir-se em dois planos, a
que correspondem também duas escalas espaciais diferenciadas: (i) enquanto
processo de ocupação e organização do território, o povoamento remete para as
escalas regional e micro-regional, em que a informação recolhida permitirá
analisar variáveis como: (a) a distribuição espacial dos núcleos de povoamento,
os níveis de densidade dessa distribuição (definidos pelo rácio entre a
quantidade de núcleos e a área pela qual se distribuem) e as áreas de maior e
menor concentração (definidas pela combinação entre a quantidade, a localização
e a densidade dos núcleos); e (b) as redes de povoamento e de ocupação/
articulação do espaço (definidas pela distribuição/hierarquização espacial dos
núcleos habitados em cada momento), o que inclui as malhas de enquadramento
político-administrativo das populações; (ii) enquanto configuração espacial e
morfológica do habitat (que é já, note-se, um sector da paisagem), o povoamento
remete para duas escalas e duas variáveis distintas, que a informação
compulsada poderá também ajudar a analisar, embora entremos aqui num domínio
eminentemente material em que os dados colhidos na documentação escrita só
adquirem pleno sentido quando reunidos com o registo arqueológico: (a) a
primeira dessas variáveis a estudar, numa escala supralocal, são os padrões da
distribuição espacial do habitat (dispersão, dispersão intercalar, aglomeração;
modalidades de implantação topográfica dos núcleos, etc.), aquilo a que os
arqueólogos chamam “padrões de povoamento/assentamento”; (b) a segunda, que se
concretiza à escala local, prende-se com a morfologia interna dos núcleos de
habitat e a respectiva inscrição na paisagem envolvente (núcleos aglomerados/
alveolares/dispersos, abertos/fechados, de plano organizado/orgânico, etc.).
Por outro lado, a informação espacial recolhida segundo a metodologia proposta
apresenta ainda consideráveis potencialidades para o estudo da paisagem,
entendida como o produto material da interacção entre o meio-ambiente e a ação
humana no tempo, um fenómeno que implica sobretudo uma análise à escala local
(quando não mesmo micro-local), em que essa interacção afinal se concretiza.
Neste sentido, e embora a abundante informação reunida sobre unidades de
paisagem permita traçar algumas considerações – fragmentárias, é certo – sobre
a prevalência deste ou daquele tipo de paisagem à escala regional ou micro-
regional, o contributo essencial de uma informação “densa” como a que foi
possível compilar verifica-se ao nível da reconstituição local de paisagens
concretas, no quadro de estudos de caso. Este é, por excelência, o domínio da
análise contextual, que obriga a integrar e cruzar todos os dados disponíveis
sobre o conjunto das unidades (dos mais variados tipos) identificadas num
determinado lugar. E implica, desde logo, a combinação da informação
proveniente do registo escrito com a que resulta do registo arqueológico e
paleoambiental, mas também com as perspetivas abertas pela geografia histórica,
a partir sobretudo da análise regressiva de fontes escritas e cartográficas
posteriores ao período em causa. Tudo com vista ao melhor conhecimento de uma
realidade que é eminentemente material, e que os textos só parcialmente podem
revelar.
Por último, e ultrapassando já o domínio das bases materiais da organização
social do espaço, a informação espacial que foi possível recolher revela-se
particularmente importante para o estudo da organização territorial, entendida
aqui como processo de articulação sociopolítica do espaço. A conversão do
espaço em território acontece precisamente por via da sua integração em malhas
(e escalas) muito diversas de domínio, que se estendem entre a pequena unidade
residencial e/ou de exploração, articulando um conjunto de parcelas agrárias e
direitos de exploração sobre espaços incultos e outros recursos, até às grandes
circunscrições integradas nas malhas eclesiásticas ou civis de administração do
território. Passando obviamente pelas omnipresentes villae e outras unidades
territoriais de âmbito local que enquadram a apropriação do espaço pelas
comunidades de aldeia e constituem os marcos por excelência de articulação
entre os setores-chave da paisagem rural: o habitat e o espaço agrário.
A preocupação dominante neste trabalho com as bases materiais da organização
social do espaço explica, finalmente, a possibilidade de essa investigação
sobre a paisagem e o povoamento do território bracarense aqui iniciada vir a
utilizar os dados recolhidos sobre a morfologia das diversas unidades espaciais
com vista ao desenho da evolução daqueles dois setores-chave da paisagem
minhota: o espaço agrário e o habitat. Adoptando uma lógica mais selectiva de
análise desses dados, que obriga a conjugar o tratamento quantitativo de
algumas variáveis com o exame de determinados indicadores de natureza
qualitativa, a investigação será assim conduzida a dois problemas maiores
identificados pela historiografia europeia no período aqui em estudo: (i) o
crescimento agrário e (ii) a cristalização de uma rede de aldeias,
tendencialmente polinucleares no caso da região em análise. Para mais, estes
problemas permitem superar um enfoque estritamente materialista, deslocado
quando se toma como base exclusiva este tipo de fontes, para perspetivar as
relações biunívocas que se estabelecem entre o espaço físico e as estruturas
sociais de poder que o organizam, claramente o domínio do real que a
documentação escrita melhor capta. Chegada a este ponto, a investigação terá
atingido plenamente o patamar para o qual foi desenhada: o estudo das bases
materiais da organização social do espaço.
COMO CITAR ESTE ARTIGO
Referência electrónica:
MARQUES, André Evangelista – “Apresentação de Tese / Thesis Presentation.
Paisagem e povoamento: da representação documental à materialidade do espaço no
território da diocese de Braga (séculos IX a XI). Ensaio metodológico. Tese de
Doutoramento em História Medieval apresentada à Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, Dezembro 2013. Orientação do Professor Doutor Luís
Carlos Amaral (U. Porto) e coorientação do Professor Doutor José Ángel García
de Cortázar (U. Cantábria)”. Medievalista [Em linha]. Nº15, (Janeiro - Junho
2014). [Consultado dd.mm.aaaa]. Disponível em http://www2.fcsh.unl.pt/iem/
medievalista/MEDIEVALISTA15/marques1510.html.
Notas
1
Reproduz-se aqui, com alguns desenvolvimentos, o texto de apresentação da tese
em provas públicas, realizadas no dia 11 de Dezembro de 2012. A tese está
disponível no Repositório Aberto da U. Porto: http://repositorio-aberto.up.pt/
handle/10216/67231, ainda que sem os Apêndices I e II, que constavam de um CD-
ROM na versão original. Esta lacuna foi entretanto suprida pela publicação
autónoma, no mesmo Repositório, dos principais módulos da base de dados que
resultou da investigação: MARQUES, André Evangelista; DAVID, Gabriel – Base de
dados Paisagem e Povoamento (diocese de Braga, Séculos IX-XI). 2013 [disponível
em: http://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/69259. Uma versão revista da
tese será publicada em 2014 na colecção "Teses Universitárias",
coeditada pelas Edições Afrontamento e pelo CITCEM.
2
MARQUES, André Evangelista – Ocasal: uma unidade de organização social do
espaço no Entre-Douro-e-Lima (906-1200). Noia, Corunha: Editorial Toxosoutos,
2008, maximep. 21-32, 257-64.
3
É evidente a filiação do nosso trabalho no quadro teórico-metodológico
desenvolvido por J. Á. García de Cortázar para o estudo da organização social
do espaço no quadrante NO da Península Ibérica, entre os séculos VIII e XIII.
Sobre este quadro, v. o conjunto de artigos reunidos em GARCÍA DE CORTÁZAR,
José Ángel – Sociedad y organización del espacio en la España medieval.
Granada: Editorial Universidad de Granada, 2004.
4
Sobre as limitações que ainda hoje se levantam ao mero inventário (e que dizer
da análise diplomática propriamente dita?) do conjunto dos diplomas
altimedievais conservados nos arquivos portugueses, v. MARQUES, André
Evangelista – "Para um inventário da documentação diplomática anterior a
1101 conservada em arquivos portugueses". In Beatriz Arízaga Bolumburu et
alii (eds.) – Mundos Medievales. Espacios, sociedades y poder. Homenaje al
Profesor José Ángel García de Cortázar y Ruiz de Aguirre. Santander: Editorial
de la Universidad de Cantabria, 2012, t. I, p. 705-718.
5
Toda a informação relativa aos documentos analisados e às unidades
identificadas (recolhida nos módulos Documentose Unidades da base de dados) vai
disponibilizada, respectivamente, nos Apêndices I e II da dissertação.
6
PEÑA BOCOS, Esther – La atribución Social del Espacio en la Castilla
Altomedieval. Una Nueva Aproximación al Feudalismo Peninsular. Santander:
Universidad de Cantabria, Asamblea Regional de Cantabria, 1995.