Resultados do transplante de fígado na doença hepática alcoólica
ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
O transplante de fígado (TH) é aceito como terapia eficaz nas doenças hepáticas
avançadas, incluindo a cirrose alcoólica. Embora a doença hepática alcoólica
(DHA) figure entre as principais causas de cirrose hepática nos países
ocidentais, até 1985 raramente tais pacientes eram beneficiados pelo recurso
terapêutico do TH. O pessimismo em relação ao TH nos portadores de DHA baseava-
se na crença de que os resultados do TH nesse grupo de pacientes eram
inferiores aos obtidos em outras formas de doença hepática, aliado ao temor da
recidiva do consumo de álcool após o transplante, resultando em dano sobre o
enxerto(11). A partir de 1985, estudos realizados em diferentes centros
encontraram índices de sobrevida pós-transplante em pacientes com cirrose
alcoólica semelhantes aos obtidos em pacientes com doença hepática não
associada ao álcool. Em 1988, STARZL et al.(15), avaliando 41 pacientes com
cirrose alcoólica avançada submetidos a TH na Universidade de Pittsburgh, sob
esquema de imunossupressão com ciclosporina, relataram sobrevida em 1 ano de
73,2% e em 3 anos de 68%. Índices satisfatórios de sobrevida em 1 ano pós-TH em
portadores de DHA, variando de 66% a 100%, também foram documentados em outros
centros americanos e europeus(1, 2, 5, 7, 8, 9, 10, 13, 14, 16).
Se, por um lado, os resultados em termos de sobrevida em 1 e 5 anos pós-
transplante nos pacientes com cirrose alcoólica se assemelham aos encontrados
nos portadores de outras formas de doenças hepática, a possibilidade de
recidiva do consumo do álcool após o TH causa preocupação e é ainda objeto de
controvérsia e debate. A freqüência com que a recidiva de consumo de bebidas
alcoólicas é detectada no acompanhamento pós-transplante é variável, dependendo
em parte dos métodos empregados na avaliação e seleção dos candidatos na fase
pré-transplante, bem como dos métodos empregados para tal rastreamento dessa
complicação no pós-transplante. Publicações relatando a experiência de
diferentes centros transplantadores apontam para índices de recidiva em torno
de 12% a 50%(2, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 13). A necessidade de intervalo de
abstinência pré-TH tem sofrido reavaliações, mas a maioria dos centros de
transplante adota mínimo de abstinência de pelo menos 6 meses antes do TH.
O objetivo do presente estudo é relatar os resultados obtidos com o transplante
de fígado em pacientes com cirrose alcoólica no Serviço de Transplante Hepático
do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR.
PACIENTES E MÉTODOS
Entre setembro de 1991 e janeiro de 2001, realizaram-se 152 transplantes
hepáticos em adultos (idade > 18 anos) no Serviço de Transplante Hepático do
Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, Curitiba. Em 20 desses
152 transplantes a etiologia da doença hepática foi cirrose alcoólica,
correspondendo a 13,8% das indicações de TH em adultos no referido Serviço. O
diagnóstico de cirrose alcoólica foi feito com base na história de consumo
abusivo de álcool (60 g de etanol/dia para homens e 40 g de etanol/dia para
mulheres por, pelo menos, 8 anos) na ausência de outras causas de doença
hepática, achados laboratoriais e clínicos compatíveis, biopsia hepática
compatível com cirrose alcoólica e achados do exame anatomopatológico do fígado
nativo retirado no transplante. Todos os pacientes foram submetidos a avaliação
psicossocial na fase pré-transplante, sendo exigido período mínimo de
abstinência de, pelo menos, 6 meses antes do TH.
As seguintes variáveis pré e pós-transplante foram coletadas na revisão dos
prontuários médicos: idade na ocasião do transplante, sexo, grau de disfunção
hepática pré-TH de acordo com a classificação de Child-Pugh, presença
concomitante de hepatite viral crônica e/ou hepatocarcinoma, tempo de
abstinência pré-transplante, sobrevida do paciente pós-transplante, ocorrência
de complicações tais como rejeição do enxerto, infecções, complicações técnicas
vasculares e biliares, necessidade de retransplante, causas de óbito. O consumo
de qualquer quantidade de bebida alcoólica após o transplante foi considerado
recidiva e baseou-se na coleta de informações contidas nos prontuários médicos
além de: (1) informações fornecidas pelo paciente e/ou familiares através de
contato telefônico e/ou pessoal; (2) anormalidades bioquímicas sugestivas de
consumo abusivo de álcool (macrocitose e elevação da gama-glutamiltransferase),
associadas a anormalidades histológicas compatíveis com lesão pelo etanol.
Até 1998, esquema de imunossupressão primária empregou prednisona, ciclosporina
em microemulsão, e azatioprina. Desde 1999 o Serviço passou a adotar como
esquema padrão na imunossupressão primária o tacrolimus associado à prednisona
com retirada gradual do corticóide. O uso do micofenolato de mofetil foi
reservado para casos especiais como resgate de episódios de rejeição e para
redução da dose dos inibidores da calcineurina devido à instalação de efeitos
adversos intoleráveis atribuídos a esses fármacos.
Análise estatística
Os resultados das variáveis contínuas foram expressos em mediana e variação, e
das variáveis categóricas em percentagens. O programa computacional utilizado
foi o software Statistic 6.0® para Microsoft Windows®.
RESULTADOS
Características pré-transplante
O primeiro TH realizado para doença hepática alcoólica no Hospital de Clínicas
da Universidade Federal do Paraná foi em março de 1995. Dezenove dos 20
pacientes (95%) eram do sexo masculino, a mediana da idade do grupo na época do
transplante foi 50 anos (29 a 61 anos). As principais características clínicas
dos pacientes na fase pré-transplante estão descritas na Tabela_1. Setenta e
cinco por cento (15/20) dos pacientes apresentavam disfunção hepática grave de
acordo com a classificação de Child-Pugh (classe C). Em 6 dos 20 pacientes
(30%) foi constatada associação com hepatite viral crônica, enquanto
hepatocarcinoma foi detectado em 1 paciente. A mediana do período de
abstinência pré-TH foi 24 meses, variando de 9 a 120 meses (Tabela_1).
Sobrevida e complicações pós-transplante
Quatorze dos 20 pacientes (70%) submetidos a TH por cirrose alcoólica
encontravam-se vivos até janeiro de 2001. A sobrevida em 1 ano e 3 anos após o
TH foi de 75% e 50%, respectivamente. A mediana do tempo de sobrevida pós-TH
dos pacientes avaliados, até a época do estudo, foi de 14 meses, variando de 1
a 66 meses. A sobrevida do enxerto hepático 1 e 3 anos após o transplante foi
de 68,7% e 33,3%, respectivamente. Os 14 pacientes vivos e em acompanhamento
apresentam-se clinicamente bem e com boa função do enxerto, sendo que em 78,6%
deles (11/14) a base da imunossupressão é o tacrolimus, e nos demais a
ciclosporina em microemulsão.
As principais complicações encontradas na amostra estudada estão sumarizadas na
Tabela_2. A incidência de rejeição celular foi 40% (8/20) e todos os episódios
foram responsivos à pulsoterapia com metilprednisolona. Um único caso de
rejeição crônica (5%) foi constatado, em paciente masculino de 31 anos de
idade, cerca de 2 anos após o TH. O quadro foi atribuído ao uso irregular de
ciclosporina após recidiva do consumo de álcool, de acordo com informações
fornecidas pelo próprio paciente e familiares. Apesar da administração de dois
ciclos de pulsoterapia com metilprednisolona e posteriormente OKT3, instalou-se
ductopenia, falência do enxerto e óbito.
Em relação às complicações vasculares, foram registrados três casos de trombose
de artéria hepática para os quais foi indicado retransplante. Um paciente
faleceu enquanto aguardava o procedimento e os demais foram submetidos a
cirurgia de retransplante, 8 e 17 meses após o TH. Dos dois pacientes
retransplantados, um faleceu no pós-operatório imediato por não funcionamento
primário do enxerto enquanto o outro encontra-se clinicamente bem e com boa
função do enxerto, 2 anos após o retransplante.
Três pacientes (15%) desenvolveram complicações biliares, estando a trombose da
artéria hepática implicada em um dos casos. Conforme descrito na Tabela_2, as
complicações biliares foram estenose isolada (n = 2) e estenose associada à
fístula biliar (n = 1). O paciente apresentando estenose associada à fistula
biliar foi submetido a derivação biliodigestiva (hepaticojejunoanastomose) com
sucesso. Em um dos pacientes com estenose biliar diagnosticou-se a presença de
trombose de artéria hepática sendo, então, submetido a transplante hepático. O
outro caso de estenose biliar manifestou-se sob a forma de sepse biliar com
rápida evolução para óbito a despeito de antibioticoterapia de amplo espectro.
Oito dos 20 pacientes apresentaram infecção bacteriana após o TH: infecção de
parede (n = 2), infecção do líquido ascítico (n = 2), colangite (n = 2),
infecção do trato urinário (n = 1) e gastroenterite (n = 1). Houve apenas um
caso de infecção fúngica invasiva (meningite criptocócica) que se instalou 2
meses após o transplante, de evolução rapidamente fatal e cujo diagnóstico foi
firmado à necropsia. Quatro pacientes apresentaram reativação da infecção por
cytomegalovirus, sendo tratados, com sucesso, com ganciclovir endovenoso.
Na amostra estudada, detectou-se um caso de carcinoma de palato em paciente do
sexo masculino, tabagista crônico, 27 meses após o transplante. O tratamento
adotado foi a ressecção cirúrgica associada à radioterapia. Atualmente o
paciente apresenta-se clinicamente bem, com boa função do enxerto e sem
evidência de recidiva tumoral.
O paciente com diagnóstico pré-transplante de hepatocarcinoma e com seguimento
de 2 anos após o TH não apresenta indícios de recidiva tumoral.
Causas de óbito
Dos seis pacientes que evoluíram para óbito durante o período do estudo, cinco
faleceram nos 3 primeiros meses após o TH. Em três dos cinco casos (60%) de
óbito precoce (até 3 meses após TH) a causa foi infecciosa: sepse pulmonar (14º
pós-operatório), meningite criptocócica em paciente com trombose de artéria
hepática (72ª pós-operatória) e sepse biliar (108º pós-operatório). Nos outros
dois pacientes as causas de óbito precoce foram sangramento incontrolável após
retransplante por trombose de artéria hepática (2º pós-operatório) e falência
de múltiplos órgãos (34ª pós-operatório). Óbito tardio (2 anos após o TH)
ocorreu em um paciente com falência do enxerto, secundária à rejeição crônica
ductopênica.
Recidiva do consumo de álcool após o transplante
Em 3 dos 20 pacientes (15%) detectou-se consumo de bebidas alcoólicas após o
transplante, segundo informação fornecida pelos pacientes (n = 2) ou familiares
(n = 1). Um dos pacientes admitiu durante internamento hospitalar uso irregular
da medicação imunossupressora a partir da época em que passou a consumir
bebidas alcoólicas, em freqüência quase diária, o que resultou em rejeição
crônica e óbito. Outro paciente, portador de cirrose alcoólica associada à
infecção pelo vírus da hepatite C, e com antecedentes de uso de drogas
ilícitas, após receber alta hospitalar no oitavo dia de pós-operatório, não
manteve mais contato com a equipe de transplante hepático que, através de busca
ativa, foi informada pelos familiares que o mesmo voltara a consumir bebidas
alcoólicas e fora a óbito no 14º dia de pós-operatório por quadro de sepse
pulmonar. O terceiro paciente, que evoluiu a óbito por sepse biliar secundária
a estenose biliar, 108 dias após o TH, segundo informações fornecidas por seus
familiares, teria consumido algumas doses de bebida alcoólica após o TH. Cabe
salientar que em todos os casos obedeceu-se ao critério de abstinência de
álcool e drogas ilícitas por, pelo menos, 6 meses antes do transplante.
DISCUSSÃO
A DHA representa a segunda principal indicação de TH na atualidade, sendo
superada apenas pela hepatite C(4, 12). Antes do advento do transplante, não
existia terapia específica para a DHA, com exceção da abstinência alcoólica.
Embora esta medida seja o fundamento do tratamento da cirrose alcoólica, sabe-
se que seu impacto na sobrevida de portadores de doença hepática avançada é
limitado. Nessas circunstâncias, o TH é a única opção que oferece real
benefício em termos de sobrevida a longo prazo. O presente estudo, avaliando 20
adultos portadores de cirrose alcoólica e em abstinência de consumo de álcool
por pelo menos 6 meses, encontrou sobrevida de 1 e 3 anos pós-TH de 75% e 50%,
respectivamente. Esses resultados de assemelham aos encontrados em portadores
de outros formas de doença hepática em nosso Serviço (dados não publicados) bem
como aos reportados em outros centros transplantadores(1, 2, 7, 8, 9, 10, 13,
16). Segundo a literatura, existem apenas mínimas diferenças quanto à sobrevida
do paciente, sobrevida do enxerto e outras avaliações de saúde, quando
comparados receptores com doença hepática alcoólica e o restante dos receptores
do transplante hepático.
A inclusão da DHA nos programas de transplante hepático sempre sofreu
resistência por parte da opinião pública e de segmentos da comunidade médica. O
principal argumento utilizado era a grande probabilidade de que índices
elevados de recidivismo diminuíssem a sobrevida a longo prazo quer pelo
desenvolvimento de lesões graves no enxerto associadas ao etanol, ou devido a
outros problemas médicos com uso inadequado de imunossupressores ou
complicações associadas ao alcoolismo crônico. Na presente série a taxa
detectada de recidiva, definida como consumo de qualquer quantidade de álcool
após o transplante, foi da ordem de 15%. Vale mencionar que, como os
instrumentos utilizados para coleta de tal informação incluíam análise
retrospectiva de prontuários médicos e, quando possível, entrevista ou contato
telefônico com pacientes e familiares, é provável que os dados obtidos
subestimem a real prevalência de recidivismo.
Muitos estudos a respeito da recidiva do consumo de álcool após o TH têm sido
publicados na última década(2, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 13). A maioria deles são
estudos retrospectivos, com períodos relativamente curtos de acompanhamento
(geralmente inferior a 5 anos) e número pequeno de pacientes. Entretanto,
algumas conclusões coerentes podem ser extraídas desses estudos. Contestando os
baixos índices de recidiva encontrados inicialmente por STARZL et al.(15),
provavelmente 30% a 50% dos receptores alcoolistas admitem ou são identificados
como tendo consumido alguma quantidade de álcool nos 5 primeiros anos pós-
transplante. Muitos dos episódios de consumo de álcool após o TH são eventos
isolados, após os quais os pacientes restabelecem abstinência. Felizmente, o
uso continuado ou abusivo é muito menos comum, afetando 10% ou menos dos
receptores alcoolistas. TANG et al.(17) sugeriram que o intervalo entre o
transplante e o retorno ao consumo abusivo de álcool é pequeno, freqüentemente
menor que 1 ano.
KUMAR et al.(9) relataram a taxa de 43% de recidiva nos pacientes que bebiam
ativamente dentro do 6 meses que antecederam o TH, em contraste com a taxa de
6,7% em pacientes que permaneceram abstinentes por, pelo menos, 6 meses antes
do transplante. Outros estudos também confirmaram a correlação entre a duração
da abstinência pré-transplante e a recidiva ao alcoolismo subsequente(4).
BRAVATA et al.(3) não encontraram diferença estatisticamente significativa na
proporção de receptores de transplante com DHA e não-alcoólica em relação ao
relato de consumo de álcool após o TH (4% vs. 5% ao 6º mês e 17% vs. 16% ao 12º
mês pós-transplante). Entretanto, entre os pacientes que consumiam álcool após
o transplante, receptores com doença hepática não-alcoólica eram mais propensos
ao consumo moderado (quatro a sete doses/semana), enquanto aqueles com DHA eram
mais sujeitos aos consumo excessivo de álcool (>7 doses/semana). Dois dos três
pacientes da presente série, apresentaram uso irregular do imunossupressor após
a recidiva do consumo de álcool, um dos quais desenvolveu rejeição crônica
tardia, evoluindo com perda do enxerto e óbito. Relatos sobre o uso inadequado
do esquema imunossupressor são também encontrados na literatura(10, 17). Um dos
pacientes que recidivou precocemente o consumo de álcool, apresentou sepse de
origem pulmonar de evolução fatal.
LUCEY et al.(10) e VAILLANT(18) observaram que pacientes com consumo
significativo de álcool após TH apresentam maior freqüência de problemas não-
hepáticos, tais como pancreatite e pneumonia.
A análise das complicações técnicas e clínicas que ocorreram após o TH no grupo
estudado, cuja mediana do tempo de seguimento pós-TH foi de 14 meses, não
mostrou índices diferentes dos referidos na literatura médica (Tabela_2). As
infecções foram a causa mais comum de óbito após o transplante. Em dois dos
seis pacientes que tiveram evolução fatal pode-se considerar que a recidiva do
consumo de álcool colaborou para o óbito: um caso em que o uso inadequado dos
imunossupressores resultou em rejeição crônica ductopênica e um caso no qual,
por recidiva precoce, houve abandono do seguimento e do uso correto dos
imunossupressores, havendo instalação de sepse pulmonar e óbito. A freqüência
de rejeição celular aguda e crônica foi de 40% e 5%, respectivamente. Vários
estudos observaram que pacientes submetidos a transplante hepático devido a
cirrose alcoólica apresentam menor freqüência de episódios de rejeição celular
aguda do que pacientes que são submetidos a transplantes por outras etiologias.
Tais dados podem refletir o estado parcial de supressão da imunidade celular em
pacientes com DHA avançada(11).
Os dados do presente estudo permitem concluir que pacientes com doença hepática
alcoólica, desde que devidamente selecionados, apresentam índices de sobrevida
pós-transplante semelhantes aos encontrados em outras causas de doença
hepática. É recomendável que tratamentos de suporte para a dependência química
sejam mantidos no seguimento pós-transplante visto que, a recidiva do consumo
de álcool pode ter impacto negativo na sobrevida pós-transplante.