Herniorrafia inguinal em crianças: valor da anestesia local associada
ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
A anestesia local tem sido usada na prática pediátrica para prevenir dor aguda
e mais comumente para aliviar a dor pós-operatória, mas sempre associada à
anestesia geral ou sacral(11).
A justificativa para a associação de mais de um tipo de anestesia tem sido o
inadequado alívio da dor com agentes analgésicos utilizados no pós-operatório e
a elevada incidência de efeitos colaterais, tais como náuseas e vômitos que
podem ocorrer em até 30% dos casos(17).
A utilização de anestesia local como procedimento único não tem sido adotada
pelos serviços de modo geral, embora as herniorrafias inguinais estejam sendo
realizadas cada vez mais freqüentemente em regime ambulatorial(1, 4, 14, 15),
desde os estudos pioneiros de HERZFELD(9).
As vantagens do procedimento em regime ambulatorial têm sido realçadas por
vários autores e incluem a diminuição de infecções respiratória e cruzada,
diminuição dos gastos e menores alterações do comportamento(3, 10, 13).
A anestesia local tem ainda como vantagem provocar distúrbios menores da função
cardiorrespiratória e vascular, requerendo portanto, cuidados pós-operatórios
menos intensivos. Parece diminuir a dor pós-operatória pela liberação de
mediadores químicos durante sua aplicação e pode ser uma opção na falha de um
bloqueio caudal ou raquidiano.
A cirurgia de correção da hérnia inguinal em crianças com anestesia local
poderá ser realizada em regime ambulatorial ou com curta permanência hospitalar
e sem os efeitos colaterais e riscos inerentes à anestesia geral ou caudal.
Este estudo tem o objetivo de descrever uma técnica de anestesia local
utilizada em crianças para o tratamento cirúrgico de hérnias inguinais, usada
como procedimento principal para se obter analgesia durante a operação. A
sedação foi necessária para contenção da criança, já que a maioria não é
cooperativa nesta faixa etária.
MÉTODO
No período de janeiro de 1992 a dezembro de 2000, foram realizadas 48
herniorrafias inguinais em crianças sob anestesia local e sedação na Santa Casa
de Misericórdia de Cerqueira César, SP.
Das crianças operadas, 34 eram do sexo masculino e 14 do feminino. A idade
variou de 3 meses a 12 anos.
A maioria foi de casos de hérnia inguinal unilateral (44) e 4 casos de hérnia
bilateral, sendo que destes últimos 3 eram do sexo feminino.
As hérnias inguinais com anestesia local corresponderam a 60% das herniorrafias
executadas no período (48 num total de 96 herniorrafias).
O estudo realizado foi prospectivo, tendo sido elaborada ficha para dados de
identificação, tipo de procedimento, complicações intra e pós-operatórias, uso
de antimicrobianos, quantidade de anestésico e de sedativos utilizados e efeito
da anestesia.
Os pacientes que deram entrada no serviço com diagnóstico de hérnia inguinal
foram avaliados inicialmente quanto à possibilidade de serem submetidos a
intervenção com anestesia local, sendo o primeiro passo a aceitação por parte
dos pais. Foram excluídas as crianças que apresentavam grandes hérnias
inguinoescrotais, hérnias encarceradas ou hérnias recidivadas. Também foram
excluídas da casuística crianças obesas e aquelas cujos pais não aceitaram o
procedimento; hérnia inguinal bilateral foi um fator de exclusão relativo.
Técnica Anestésica
Foi utilizada a lidocaína a 1% sem vasoconstrictor, em volumes variáveis, na
dose de 5 mg/kg de peso, podendo chegar, excepcionalmente, a 7 mg/kg. Quando o
volume de anestésico a ser injetado era inferior a 10 mL, este foi diluído em
água destilada, ao meio ou até completar 10 mL. Quando o volume de anestésico a
ser injetado era superior a 10 mL, não se realizava diluição.
A anti-sepsia prévia à anestesia local foi realizada com álcool iodado 2% e
mais recentemente, com clorexidina alcoólica a 0,5%, somente na região
inguinal. Em seguida à anestesia regional, procedia-se à anti-sepsia completa e
colocação de campos estéreis. Para o bloqueio foram utilizadas seringas de 5 ou
10 mL e agulha 13 x 4,5.
A primeira injeção foi realizada através da introdução perpendicular da agulha,
1 a 2 cm medialmente à espinha ilíaca ântero-superior. Neste ponto, após
perfurar a aponeurose do músculo oblíquo externo, foram injetados
aproximadamente 40% do volume total programado, num único ponto. Em crianças
maiores, o anestésico foi injetado em três pontos, sendo os outros dois
laterais, após retornar a agulha até o subcutâneo e penetrar novamente a
aponeurose, semelhante à técnica usada no adulto. Nesta circunstância, o volume
anestésico deve ser dividido por 3 (Figura_1).
Esta técnica visa o bloqueio anestésico dos dois nervos abdominogenitais
(iliohipogástrico e ilioinguinal) e deve ser considerada a mais importante para
o sucesso da cirurgia.
O segundo ponto de injeção situou-se na altura do anel inguinal externo,
próximo ao tubérculo púbico, onde foi feita uma injeção de aproximadamente 20%
do volume anestésico, com o cuidado de não atingir os elementos do cordão, que
muitas vezes têm um trajeto subcutâneo longo neste local (Figura_2).
A última injeção foi feita na linha de projeção da incisão e a seu redor ou em
leque, nas crianças maiores. O volume aqui injetado foi também de
aproximadamente 20% do total. Os restantes 20% foram guardados e utilizados, se
necessário, durante o procedimento cirúrgico, principalmente durante a tração
do saco herniário, o que pode levar à dor, quando o primeiro bloqueio não for
efetivo.
Sedação
A sedação foi sempre realizada pelo médico anestesista após monitorização, na
entrada do centro cirúrgico ou na sala cirúrgica, quando se tratava de criança
cooperativa. Após a sedação, todos eram monitorizados com oximetria de pulso e
cardioscópio.
Para sedação foi sempre utilizada a cetamina na dose de 1 a 2 mg/kg, via
endovenosa, juntamente com diazepam 0,2 a 0,4 mg/kg, numa mesma seringa. A
seringa foi preparada com 2 mg/kg de peso de cetamina e 0,4 mg/kg de diazepam,
sendo administrada metade desta dose. Se a criança começava a acordar antes do
término da cirurgia, doses adicionais desta mistura foram administradas.
Técnica Cirúrgica
Foi utilizada incisão transversa ou oblíqua na região inguinal, abrindo pele,
tecido subcutâneo e fáscia, seguida de hemostasia de vasos sangrantes com fios
de catgut simples 3-0 ou 4-0. Aberta a aponeurose do grande oblíquo, foi
isolado funículo espermático no sexo masculino e ligamento redondo em crianças
do sexo feminino, sendo que este eventualmente foi ligado distalmente para
facilitar a dissecção do saco herniário. O saco herniário, dissecado até a
altura do anel inguinal interno, foi aberto e seu conteúdo analisado. A
ligadura do saco foi realizada na altura do anel inguinal através de sutura
transfixante com fio trançado de poliéster 3-0. A manobra de Barker foi
realizada raramente. Nenhum tipo de reforço foi realizado. A hemostasia foi
revisada e a aponeurose do grande oblíquo fechada com pontos de algodão 3-0. O
tecido subcutâneo foi fechado com pontos separados de catgut 3-0 simples e a
pele com fio monofilamentar de nylon 4-0 ou 5-0, pontos separados.
RESULTADOS
Todas as cirurgias puderam ser realizadas com tranqüilidade com este método,
com exceção de uma criança em que o bloqueio não foi efetivo, necessitando de
complementação anestésica com máscara de um halogenado.
Nenhuma criança necessitou de intubação traqueal, embora 26 crianças (54%)
tivessem apresentado apnéia transitória com queda da saturação de oxigênio,
necessitando de ventilação com máscara de oxigênio. Seis pacientes necessitaram
de doses adicionais do anestésico e em apenas dois a dose de lidocaína foi a
máxima admitida (7 mg/kg).
O tempo operatório variou de 10 a 32 minutos, sem intercorrências operatórias.
Quanto às complicações pós-operatórias, ocorreram três hematomas, sendo um de
parede, no pós-operatório imediato em uma criança de 1 ano e dois casos de
hematomas em bolsa escrotal em crianças de 4 e 5 meses, sendo que um caso
necessitou de drenagem cirúrgica. Todos evoluíram bem.
A alta hospitalar ocorreu antes de 24 horas após a cirurgia em 47 crianças.
Apenas uma permaneceu internada por 36 horas.
DISCUSSÃO
O reparo de hérnias inguinais com anestesia local em adultos é hoje
procedimento bem estabelecido e seguro(8, 12, 18), apresenta custos reduzidos
(2, 16) e aparentemente menor taxa de recidiva(2); não aumenta a taxa de
complicações pós-operatórias(16), além do que a dor pós-operatória parece ser
de menor intensidade devido à liberação de mediadores químicos.
Em crianças, no entanto, não tem sido descrito tratamento cirúrgico de hérnias
inguinais com anestesia local exclusiva, mas esta técnica tem sido usada, como
parte de uma anestesia balanceada, para melhora da dor pós-operatória e evitar
os efeitos colaterais de analgésicos e narcóticos(6, 11).
Como as crianças apresentam, de modo geral, dor de menor intensidade que os
adultos e deambulam rapidamente no pós-operatório, não houve motivos para
realizar dois procedimentos anestésicos para tratamento desta patologia.
Quanto à técnica anestésica utilizada, adotou-se a mesma de outros autores em
pacientes adultos, principalmente as descritas por CHRISTMANN et al.(7), com
pequenas modificações, principalmente quanto ao anestésico utilizado, que
parece não influir nos resultados(12).
Embora a maioria dos autores utilize a bupivacaína na dose de 1-2 mg/kg de
peso, onde volumes maiores podem ser injetados, preferiu-se a lidocaína na dose
de 5 mg/kg de peso. Não se tem utilizado vasoconstrictor, pois esta prática
pode ter sido a causa de hematomas quando se iniciou a anestesia local em
adultos submetidos a herniorrafia inguinal(12), o que também foi sugerida por
outro autor(8).
É provável que, se forem necessárias doses maiores de lidocaína como 7 mg/kg, a
associação com adrenalina 1: 200.000 se faça necessária, pois o uso do
vasoconstrictor nesta situação reduz a toxicidade sistêmica dos anestésicos
locais por redução de irrigação sangüínea na área da injeção(17).
Nos únicos dois casos em que se teve que usar a dose de 7 mg/kg para concluir a
operação, o vasoconstrictor não foi utilizado pois já haviam sido injetados 5
mg/kg do anestésico sem o mesmo. Não foi observada toxicidade sistêmica nesses
casos.
Como já mencionado, o aspecto técnico mais importante consiste no bloqueio do
nervo ileohipogástrico e ileoinguinal. O nervo ileohipogástrico é o mais
importante pois supre feixes do músculo oblíquo externo, peritônio parietal e
um ramo cutâneo anterior inerva a pele e tecido subcutâneo da região inguinal,
sendo este mais facilmente bloqueado. O nervo ileoinguinal inerva a região do
anel inguinal profundo, parte superior interna da coxa e parte anterior do
escroto em garotos e monte pubiano em garotas. Um volume razoável de anestésico
depositado abaixo da aponeurose do oblíquo externo, medialmente à espinha
ilíaca ântero-superior (aproximadamente 1,0 cm na criança e 2,0 cm em adultos)
é capaz de bloquear ambos estes nervos.
Entretanto, um número de bloqueios falhos pode ocorrer se apenas esta técnica
for usada, sendo melhor que a agulha penetre 2 ou 3 pontos medialmente à
espinha ilíaca, conforme descrito, para bloquear o nervo ileohipogástrico e o
nervo subcostal se ele estiver envolvido em dermátomos aferentes.
Estes bloqueios são mostrados nas Figuras_1, 2.
Cuidado que se deve ter durante o bloqueio anestésico é que o depósito em local
muito próximo ao ligamento inguinal, inferiormente à espinha ilíaca e em
grandes quantidades, pode resultar em bloqueio temporário do nervo femoral, com
paralisia do músculo quadríceps e, conseqüentemente, retardar a deambulação do
paciente.
Na presente casuística, o bloqueio foi efetivo em 47 pacientes, sendo que em
apenas um a anestesia foi complementada por via inalatória (máscara de
halotano). Em 41 pacientes a cirurgia foi realizada sem necessidade de
complementar a anestesia local e em 6, doses adicionais foram necessárias.
Para sedação das crianças foi utilizada a associação de cetamina e diazepam. A
cetamina é anestésico quimicamente relacionado às fenciclidinas e às
ciclohexaminas que produz um estado descrito como anestesia dissociativa, sendo
que o paciente se apresenta cataléptico, mas com analgesia, amnésia e sedação
superficial.
Embora este anestésico promova boa analgesia na pele e no tecido subcutâneo,
isoladamente não permite a execução do ato cirúrgico. Tem ainda como vantagens
os mínimos efeitos nos parâmetros respiratórios e parece manter os reflexos
protetores contra a regurgitação e broncoaspiração(5). A recuperação da
consciência ocorre após 10 a 15 minutos da injeção intravenosa, tempo que
coincide com o período de duração de maior parte das herniorrafias. Tem como
maior inconveniente a presença de delírios e sonhos desagradáveis que podem ser
amenizados com o uso de benzodiazepínicos, daí a associação com diazepam.
Embora as alterações dos parâmetros respiratórios sejam raras com uso de
cetamina nas doses utilizadas, certamente a associação com diazepínicos aumenta
os riscos de depressão respiratória, o que ocorreu em 54% dos casos desta
série, sendo portanto obrigatório o uso de monitorização cardíaca, oximetria e
ter à mão todo material necessário para ressuscitação, além de que um médico
anestesista deve estar sempre presente à cabeceira do paciente para que possa
tratar intercorrências e mudar o ato anestésico em caso de falha do bloqueio.
Outro aspecto que merece comentário é que crianças pequenas (de menos de 1 ano)
têm coxim gorduroso na região inguinal, assim como as obesas, o que pode
dificultar um pouco a operação. Por outro lado, crianças maiores que 1 ano,
magras, do sexo feminino e com hérnias unilaterais são os casos ideais para se
realizar a herniorrafia com anestesia local. Nos casos em que a doença é
bilateral, podem ser necessárias grandes doses de anestésicos e se estas
ultrapassarem a dose máxima preconizada, o procedimento não deverá ser,
portanto, indicado. Na presente casuística, quatro crianças apresentavam hérnia
bilateral, sendo três do sexo feminino e magras. Nesses casos consegue-se
realizar o bloqueio bilateral e não ultrapassar a dose máxima do anestésico,
principalmente porque na mulher o procedimento é muito mais simples, pois não
existe o funículo espermático e a dissecção do saco herniário é mais fácil. O
paciente do sexo masculino operado também era um caso favorável, por ser
criança longilínea, magra e com hérnia oblíqua externa pequena.
Com relação às complicações, não ocorreu nenhuma durante a cirurgia. No pós-
operatório observou-se três casos de hematoma, sendo um de parede e dois de
bolsa escrotal em crianças de 4 e 5 meses. Um caso necessitou de drenagem
cirúrgica e a alta ocorreu em 36 horas. Nenhum caso de infecção da ferida ou de
outros locais foi observado.
É possível concluir que a anestesia local para correção de hérnias inguinais em
crianças é, à semelhança do que ocorre em adultos, procedimento simples e
seguro, devendo ser realizado sempre em ambiente que conte com toda
monitorização para procedimentos maiores e com a presença de profissional
médico, de preferência anestesiologista, para realizar a sedação e os cuidados
com a mesma.
AGRADECIMENTO
Ao Prof. Dr. Elson Felix Mendes pela revisão do texto e valiosas sugestões.