Colecistectomia laparoscópica em cirróticos
ARTIGO ORIGINAL / ORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
Na maioria dos centros médicos, a videolaparoscopia tornou-se a via de acesso
de primeira escolha para a realização de colecistectomia. Assim, pacientes com
diversas doenças associadas têm sido submetidos a este procedimento.
De especial interesse é a sua realização em pacientes com cirrose hepática.
Nestes casos, a importância parece redobrada tendo em vista a maior incidência
de litíase biliar em pacientes com hepatopatia crônica(4, 7, 12, 13, 14, 22) e
a necessidade de que os procedimentos realizados nesta população de pacientes
sejam minimamente invasivos, diminuindo assim, a probabilidade de
descompensação da hepatopatia(11).
Inicialmente considerada contra-indicação formal à laparoscopia cirúrgica(26),
a cirrose tem sido achado ocasional observado durante este procedimento.
Estudos apresentando pequenas séries de colecistectomia em pacientes com
cirrose(10, 15, 25) sugerem que a maioria dos cirurgiões ainda a considera como
contra-indicação à colecistectomia videolaparoscópica. Esses trabalhos
descrevem o tratamento dos pacientes com hepatopatia crônica incidental e não
há ainda casuística substancial de pacientes sabidamente cirróticos tratados
por este procedimento.
O presente relato tem por objetivo avaliar a experiência do Serviço de
Gastroenterologia Clínica e Cirúrgica (SGCC) do Complexo Hospitalar da Santa
Casa de Porto Alegre, Porto Alegre, RS, no tratamento da litíase biliar por
videolaparoscopia em pacientes com cirrose hepática.
PACIENTES E MÉTODOS
Seiscentos e quatro pacientes com colelitíase sintomática foram submetidos a
colecistectomia videolaparoscópica no SGCC do Complexo Hospitalar da Santa Casa
de Porto Alegre no período compreendido entre maio de 1993 e maio de 2000.
Destes, 10 (1,6%) apresentavam cirrose hepática, sendo que em 7 foi achado
ocasional transoperatório, já que foram submetidos ao procedimento somente pelo
diagnóstico prévio de colelitíase sintomática. Os outros três pacientes,
sabidamente cirróticos, foram operados devido à sintomatologia biliar sem
resposta ao tratamento conservador.
A idade dos pacientes variou entre 22 e 69 anos (média de 50,4 ± 18,1), sendo
oito pacientes (80%) do sexo feminino. O álcool foi o fator etiológico da
hepatopatia em quatro pacientes, o vírus da hepatite C, o vírus da hepatite B,
a cirrose biliar primária e a deficiência de a-1 antitripsina em um paciente
cada. Estes diagnósticos foram confirmados por biopsias prévias à cirurgia nos
pacientes em que a cirrose era conhecida. Nos demais pacientes, a biopsia foi
realizada durante a colecistectomia. Em dois pacientes o agente causal não foi
identificado.
Segundo o índice de Child-Pugh(6), que classifica os doentes de acordo com a
reserva funcional hepática, oito (80%) pacientes enquadravam-se como Child A ou
B e dois (20%) como C. Aqueles com diagnóstico prévio foram classificados no
pré-operatório. Os pacientes com diagnóstico incidental durante a
colecistectomia laparoscópica foram classificados conforme os dados obtidos no
pré-operatório.
O procedimento proposto iniciou-se com os pacientes em decúbito dorsal e com a
realização de pneumoperitônio por punção da cavidade abdominal e inserção de
quatro trocartes no abdome superior. Os portos da linha média, de 10 mm, foram
posicionados cerca de 2 cm à esquerda desta, para evitar os vasos umbilicais
possivelmente recanalizados. Este cuidado obviamente não foi tomado naqueles
casos em que a presença de cirrose era desconhecida. Os portos do hipocôndrio
direito, de 5 mm, foram colocados na linha axilar anterior e clavicular média,
cerca de 2 cm abaixo do rebordo costal. Após a revisão da cavidade, procedeu-se
à dissecção das estruturas do pedículo vesicular, com ligadura dupla da artéria
cística com clipes metálicos.
No ducto cístico previamente isolado foi introduzido um cateter de punção
venosa central para a realização da colangiografia transoperatória, sendo o
cateter retirado e o ducto cístico duplamente ligado com clipes, bem como a
artéria cística. A seguir, a vesícula foi removida. Um cuidado com os orifícios
dos portos é o fechamento da aponeurose, realizado em todos os pacientes da
série, o que também previne o potencial vazamento do líquido de ascite, se
desenvolvida.
Naqueles pacientes em que a cirrose foi achado ocasional no transoperatório,
realizou-se também biopsia hepática.
RESULTADOS
A colecistectomia foi realizada em todos os pacientes e em sete, adicional
biopsia hepática diagnóstica. Em dois (20%) a cirurgia foi convertida. Os
motivos foram: impossibilidade da dissecção do leito hepático e do pedículo
vesicular com segurança devido à intensa inflamação, com empiema de vesícula.
Em um paciente, o abundante sangramento do leito hepático, incontrolável por
via laparoscópica, motivou a conversão. Ambos eram Child C. O volume de
sangramento nesses dois pacientes foi de cerca de 500 mL. Nos demais, o
sangramento não foi significativo. O tempo médio da cirurgia em todos os
pacientes da série foi de 102 ± 30,2 minutos.
A colangiografia transoperatória foi interpretada como normal em todos os
casos.
A evolução dos pacientes transcorreu sem intercorrências, salvo em três que
apresentaram complicações. Em dois (20%), observou-se o desenvolvimento de
ascite no pós-operatório, sendo esta controlada clinicamente, sem vazamento
pelos orifícios dos trocartes. Ambos eram Child A no momento do procedimento e
não necessitaram de cuidados na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). O outro
paciente, Child C, estava em UTI desde o pré-operatório e apresentou piora da
função hepática e óbito no 3º dia pós-operatório.
O tempo de internação dos pacientes variou de 3 a 10 dias, com tempo médio de
5,6 dias.
DISCUSSÃO
A prevalência de litíase vesicular na cirrose hepática é cerca de 2 a 3 vezes
maior que na população em geral, fato evidenciado tanto em séries clínicas(4,
7, 12, 13, 22), quanto em necropsias(14).
Ao redor de 30% dos pacientes com cirrose apresentam litíase vesicular, sendo
que o risco é maior em pacientes Child C e na cirrose decorrente do álcool, com
incidência anual de 5%(11).
O mecanismo de desenvolvimento da litíase nesta população de pacientes é
incerto. A hemólise crônica decorrente do hiperesplenismo nos pacientes com
hipertensão portal, o aumento relativo de bilirrubina não-conjugada devido à
conjugação deficiente(4, 13, 14) e o aumento dos níveis séricos de estrogênio,
que entre os seus efeitos causa esvaziamento lento da vesícula biliar e
conseqüente estase biliar(7), são os fatores mais provavelmente relacionados a
maior prevalência de colelitíase nos cirróticos. Embora a secreção de ácidos
biliares esteja reduzida nos pacientes com cirrose, os cálculos geralmente são
do tipo pigmentar, em decorrência de secreção de colesterol e fosfolipídios
também diminuída, de tal forma que a bile não fica supersaturada.
A consistência friável e o pequeno tamanho dos cálculos pigmentares poderia
explicar porque a colelitíase nos cirróticos costuma ser assintomática.
A colecistectomia em pacientes cirróticos é seguida por alta taxa de
mortalidade, variando de 7% a 26%(1, 9, 19, 20, 22), sendo tanto maior, quanto
menor for a reserva funcional hepática desses pacientes. A morbidade é também
elevada, resultando principalmente de falência hepatocelular, hemorragia
digestiva, sepse e falência de múltiplos órgãos(9, 19, 27).
Estes resultados, extremamente desfavoráveis quando comparados aos obtidos em
pacientes não-cirróticos, fizeram com que a cirrose hepática fosse inicialmente
considerada como contra-indicação à colecistectomia laparoscópica(26). Por
outro lado, tendo em vista a freqüência da falência hepatocelular que ocorre
após procedimentos cirúrgicos em pacientes com hepatopatia crônica, a cirurgia
ficava reservada somente para os casos em que havia complicações da litíase que
colocavam em risco a vida do doente. No entanto, vários autores(3, 17, 20)
referem que a colecistectomia em doentes com cirrose compensada (Child A) tem
morbimortalidade semelhante a dos pacientes não-cirróticos.
Na cirrose descompensada, a cirurgia acarreta morbimortalidade elevada(27),
sendo então indicado o tratamento conservador da hepatopatia, através de
medidas que melhorem o suporte nutricional e o controle da ascite, bem como
afastar o eventual agente etiológico (ex.: álcool), até que melhor função
hepática seja alcançada(9, 18). Assim, todo paciente portador de hepatopatia
deve ser rigorosamente avaliado no pré-operatório através de exames
laboratoriais, com o propósito de determinar o grau de comprometimento da
função hepática. Entre os exames de laboratório, o tempo de protrombina 2,5
segundos acima do limite normal parece ser o melhor indicador de mau
prognóstico nesta população de pacientes(1).
Os pacientes Child C que apresentam colecistopatia complicada, evolutiva e não-
responsiva a qualquer outra alternativa de tratamento, têm indicação cirúrgica.
A colecistostomia, embora com risco de recurrência da colelitíase(5), é
alternativa segura que permite o alívio da colecistite aguda sem os riscos da
dissecção do leito vesicular(2, 4). Evitar a dissecção do leito vesicular
também é o objetivo da técnica de PIBRAM(23) na qual a artéria e o ducto
cístico são ligados e a ressecção da vesícula é limitada à porção extra-
hepática recoberta por peritônio, enquanto a superfície mucosa aderida ao
fígado é totalmente cauterizada.
Naqueles pacientes compensados com indicação de colecistectomia, os resultados
de várias séries(8, 10, 15, 21, 25) sugerem que a via laparoscópica é método de
abordagem seguro, pois permite todas as vantagens funcionais e estéticas já
conhecidas, com índices de complicações semelhantes ao dos indivíduos não-
cirróticos.
A colecistectomia laparoscópica, ao permitir menor via de acesso, reduz o risco
de contaminação da cavidade e as complicações com a ferida operatória(28),
resultando em menos aderências no pós-operatório, o que inclusive pode ser de
grande importância para estes pacientes quando candidatos a transplante
hepático(8).
Em relação à técnica cirúrgica, deve-se ter alguns cuidados. Os trocartes da
linha média devem ser inseridos pouco mais à direita ou à esquerda, a fim de
evitar a lesão dos vasos umbilicais, freqüentemente recanalizados. Os outros
"portos" devem ser colocados com o auxílio da transiluminação,
proporcionado pela luz da ótica, quando então os vasos da parede abdominal são
facilmente identificados. CHAO et al.(5) descreveram técnica de ligadura
transmural dos vasos parietais lesados durante a inserção dos trocartes, método
que pode ser bastante útil.
A tração da vesícula e do seu pedículo, assim como a dissecção do leito
vesicular deve ser bastante cuidadosa, já que os vasos sangüíneos nessa região
podem ser bastante calibrosos pela hipertensão portal, apresentando risco
aumentado de sangramento(16, 24).
A realização de colangiografia é importante, principalmente para excluir
coledocolitíase em paciente que venha a desenvolver icterícia no pós-
operatório. Na presente casuística todos os pacientes realizaram colangiografia
transoperatória que, no entanto, não evidenciou coledocolitíase em nenhum dos
casos.
BLOCH et al.(3) realizaram colecistectomia em 49 pacientes cirróticos, com
mortalidade de 23,5% em 17 pacientes Child C e de 0% em 21 Child A, com
mortalidade total de 10,2%. As principais complicações foram hemorragia pós-
operatória do leito vesicular com a resultante falência hepática, e sepse.
IANNUZZI et al.(17) realizaram colecistectomia eletiva em 31 pacientes
cirróticos, sendo que apenas um era Child C, obtendo 0% de mortalidade.
Ocorreram 18 complicações pós-operatórias em 10 casos, sendo que a hemorragia
do leito vesicular e formação de ascite foram as mais freqüentes.
ARANHA et al.(2) obtiveram mortalidade de 14 % em 21 pacientes com cirrose de
maior gravidade (ascite e tempo de protrombina 2,5 segundos acima do limite
normal), sugerindo a realização de colecistostomia naqueles pacientes com
colecistite aguda que não respondem ao tratamento clínico.
KOGUT et al.(20) realizaram colecistectomia em 27 pacientes cirróticos (23
Child A, 2 Child B e 2 Child C), obtendo mortalidade de 0% e morbidade de 11%.
Da mesma forma que os autores anteriores, D'ALBUQUERQUE et al.(8) reportam
colecistectomia laparoscópica em 12 pacientes cirróticos Child A ou B, com
mortalidade de 0%, verificando complicações pós-operatórias em 4 destes casos
(33,3%), todas facilmente controladas.
Os resultados desta casuística são semelhantes aos da literatura, representando
10 procedimentos em 8 pacientes Child A e B e em 2 pacientes Child C, com
morbidade de 30% (ascite em 2 pacientes e hemorragia do leito vesicular em 1
paciente) e mortalidade de 10%. Entretanto, o único óbito desta série ocorreu
num paciente Child C que no pré-operatório já se encontrava na UTI em estado
grave.
A evolução pós-operatória foi sem intercorrências em seis dentre os oito
pacientes Child A ou B tratados. Dois pacientes desenvolveram ascite de fácil
manejo. Em nenhum houve a necessidade de conversão da cirurgia, nem ocorreu
outro tipo de complicação. Já os dois pacientes Child C tiveram a cirurgia
convertida. Em um deles, a presença de intensa colecistite aguda, provavelmente
faria com que a cirurgia fosse convertida mesmo na ausência de cirrose. O pós-
operatório transcorreu com melhora imediata da sintomatologia biliar e controle
da função hepática. No outro paciente foi tentada, sem sucesso, a realização de
colecistectomia laparoscópica. Com intenso sangramento do leito hepático, a
cirurgia foi convertida para hemostasia segura. Este foi o paciente que acabou
falecendo devido ao agravamento da descompensação hepática e que já se
encontrava na UTI no pré-operatório em estado grave. Assim, é difícil aqui
estabelecer se o óbito deveu-se à agressão cirúrgica, à evolução natural deste
caso ou a ambos.
O tempo médio de internação de 5,6 dias foi influenciado pelos pacientes que
apresentaram intercorrências e pela conduta expectante naqueles em que a
evolução foi normal. Como na maioria o diagnóstico de cirrose foi no
transoperatório, acabaram ficando mais dias internados para a monitoração de
possíveis complicações.
Nos indivíduos com cirrose descompensada, acredita-se que todos os esforços
devam ser dirigidos à melhora da função hepática ou a procedimentos menos
invasivos, tais como colecistostomia. O alto índice de complicações (30%) e
mortalidade (10%) da presente série confirma os achados da literatura em
relação aos riscos do tratamento cirúrgico, principalmente em pacientes nas
fases mais adiantadas da doença. Por isso, a via laparoscópica deve ser
considerada apenas como alternativa no tratamento daqueles pacientes cirróticos
em que a colecistectomia, por falha do tratamento clínico, esteja indicada.