Comparação entre acalásia idiopática e acalásia conseqüente à doença de Chagas:
revisão de publicações sobre o tema
REVISÃO / REVIEWAcalásia é a mais conhecida doença motora do esôfago, caracterizada por
relaxamento parcial ou ausente do esfíncter inferior do esôfago (EIE) e
contrações não-peristálticas no corpo esofágico(44). No exame radiológico é
encontrada retenção do meio de contraste no esôfago, incoordenação no trânsito,
afilamento regular da transição esofagogástrica e esôfago dilatado. O sintoma
mais freqüente é a disfagia, seguida pela regurgitação, pirose e dor torácica
(44).
A doença primária, quando compromete somente o esôfago, não tem etiologia
conhecida, sendo infecção por vírus a hipótese mais provável(20, 27). A doença
secundária, quando doença sistêmica provoca a alteração motora do esôfago, tem
grande número de causas(20, 27). No Brasil a doença de Chagas é a mais
importante(36, 37).
Acalásia idiopática é doença pouco freqüente, com prevalência estimada de 7 a
13 casos por 100.000 habitantes(20, 35). Acalásia provocada pela doença de
Chagas afeta de 7% a 10% das pessoas infectadas pelo Trypanosoma cruzi(37).
Durante muitos anos o número de pessoas no Brasil com doença de Chagas foi
muito grande e, como conseqüência, a prevalência de megaesôfago no Brasil foi
muito maior do que a observada em outros países. O combate intensivo visando
diminuir a transmissão da doença ocorrido na segunda metade do século XX, fez
com que a prevalência diminuísse rapidamente, estando atualmente restrita a
casos crônicos e a algumas regiões do país.
O termo acalásia é referente à doença motora do esôfago e megaesôfago a sua
conseqüência. Embora haja muita semelhança entre o megaesôfago idiopático e
aquele provocado por doença de Chagas, têm sido observadas algumas diferenças
entre elas(8). Não é surpresa que tal fato ocorra, pois, entre as várias
doenças que podem provocar acalásia, existem diferentes graus de lesão no
esôfago(27).
Nesta revisão foram incluídos trabalhos que estudaram as características do
envolvimento do esôfago na acalásia idiopática e na acalásia conseqüente à
doença de Chagas, principalmente aqueles que compararam as duas doenças
utilizando o mesmo método.
De comum entre acalásia idiopática e chagásica há a observação de perda dos
neurônios do plexo mientérico do esôfago(23, 30). Entretanto, estudos da
fisiopatologia da acalásia descrevem que a lesão do plexo mientérico ocorre
mais intensamente nos neurônios inibitórios, sendo os neurônios excitatórios
lesados em graus variáveis de intensidade(27), o que provoca variações na
apresentação da doença motora do esôfago(28). A intensidade do comprometimento
do plexo mientérico provoca grande variação na esofagopatia conseqüente à
doença de Chagas(11, 12, 36). Os trabalhos que tiveram por objetivo o estudo da
fisiopatologia e alterações manométricas observadas no megaesôfago sugerem que
na acalásia idiopática prevalece a lesão da inervação inibitória e na doença de
Chagas as lesões comprometem a inervação inibitória e também a excitatória
(Tabela_1). Em sendo esta hipótese verdadeira, a pressão do EIE deveria ser
alta na acalásia idiopática e normal ou baixa na doença de Chagas(27).
Vários estudos têm demonstrado que a pressão do EIE na acalásia idiopática está
aumentada(6, 10, 20, 29, 31). Na doença de Chagas diferentes trabalhos
descrevem resultados em que a pressão do EIE está diminuída(10, 38), normal(7,
15, 26, 31) ou aumentada(34, 40). As evidências de que na acalásia idiopática a
inervação excitatória do EIE está íntegra ou só parcialmente comprometida estão
na observação de que há na doença hipersensibilidade do EIE à gastrina(6, 29),
de queda de pressão quando da injeção de toxina botulínica no esfíncter(39), da
manutenção das respostas ao edrofônio(29) e à atropina(29), e predomínio da
inervação a-adrenérgica, em detrimento da inervação b-adrenérgica(5). Também
são encontradas redução do número de fibras com polipeptídio intestinal
vasoativo(3, 41) e perda funcional dos receptores D2 da dopamina (inibitórios),
com manutenção dos receptores D1 (excitatórios)(41).
Na doença de Chagas ocorre hiposensibilidade do EIE à gastrina(38), predomínio
da inervação a-adrenérgica em relação à inervação b-adrenérgica(21), resposta
parcial à atropina(9) e à toxina botulínica(4). Nas duas formas de acalásia
está demonstrada a perda da inervação não-adrenérgica não-colinérgica
inibitória do esôfago(33)*.
O controle da pressão do EIE é dado pela ação própria da musculatura, o
componente mais importante, a inervação colinérgica(27), o efeito de outros
neurotransmissores(41) e a ação de hormônios(25). A participação de hormônios é
duvidosa e, caso exista, é de pequena importância. No caso da acalásia a
gastrina agiria na inervação colinérgica excitatória que, sem o antagonismo da
inervação inibitória, exibe resposta aumentada(6). No caso da doença de Chagas,
a resposta está diminuída(38), o que reforça a idéia de comprometimento da
inervação excitatória, embora os níveis de gastrina circulantes estejam
aumentados(42, 43), o que não ocorre na acalásia idiopática(6). Com a
colecistocinina, que no esôfago normal provoca diminuição da pressão por agir
na inervação inibitória, na acalásia provoca-se o efeito de grande aumento de
pressão(17), conseqüente à ação direta na musculatura do esfíncter.
Anticorpos contra receptores muscarínicos M2 de acetilcolina são mais
freqüentes em pacientes chagásicos com acalásia do que em pacientes com
acalásia idiopática. Estes anticorpos aumentam in vitro o tônus da musculatura
de EIE(22).
Não foram encontradas diferenças entre pacientes com acalásia idiopática e
aqueles com doença de Chagas na amplitude das contrações esofágicas(1, 15),
destacando-se que nas duas doenças ela está diminuída em relação a pessoas
normais(15), e na amplitude das contrações em faringe, neste local sem
diferença com pessoas normais(2). A proporção de pacientes com contrações de
baixa amplitude (inferior a 37 mm Hg) é maior nos pacientes com doença de
Chagas do que naqueles com acalásia idiopática(13). Trabalhos sobre a
complacência esofágica também encontraram resultados semelhantes nas duas
doenças, ou seja, aumento da complacência(19, 24). A duração da contração
esofágica é maior nos pacientes com acalásia idiopática do que nos pacientes
com doença de Chagas(1, 15) e deglutições seguidas de falha de contração(15),
bem como o número de pacientes com falhas de contração(1), são maiores entre os
pacientes com doença de Chagas do que entre os pacientes com acalásia
idiopática (Tabela_2).
No estudo do esfíncter superior do esôfago foram encontradas pressões
semelhantes nas duas formas de acalásia e em pessoas normais em um estudo(14) e
pressão baixa na doença de Chagas em outro(2). Na pessoa normal a distensão do
esôfago com ar faz a pressão do esfíncter superior do esôfago cair e o ar ser
eliminado(32). Em pacientes com acalásia a pressão sobe e o ar é retido, o que
pode provocar grande distensão do esôfago e dificuldades respiratórias, com
vários casos descritos em pacientes com acalásia idiopática(32), não sendo do
nosso conhecimento a existência de casos semelhantes em pacientes com
megaesôfago provocado pela doença de Chagas. A amplitude de contração em parte
proximal do esôfago, poucos centímetros abaixo do esfíncter superior, é menor
nos pacientes com acalásia idiopática do que em controles(16, 18), fato não
observado em pacientes com doença de Chagas(16).
Estas possíveis diferenças nas lesões presentes nas duas doenças não têm grande
influência na apresentação clínica. Observações não controladas sugerem que na
acalásia idiopática os sintomas são mais intensos e evoluem com maior rapidez
do que na doença de Chagas, mas a confirmação desta hipótese aguarda estudos
que visem o seu esclarecimento. Como as doenças têm semelhantes alterações
motoras no EIE e corpo do esôfago, as possibilidades de tratamento são as
mesmas, a escolha da melhor opção para cada paciente na dependência da
apresentação clínica e radiológica e da experiência do serviço médico que vai
realizar a terapêutica. Trabalho recente, que comparou as diferentes opções de
tratamento em pacientes com acalásia idiopática (toxina botulínica, dilatação
pneumática e esofagomiotomia laparoscópica), demonstrou que o melhor
custo'benefício relacionado à melhora da qualidade de vida ocorre com a
dilatação pneumática, considerando-se os primeiros 5 anos após o tratamento
(35). Em conclusão, embora a apresentação clínica e o tratamento da acalásia
idiopática e da acalásia provocada pela doença de Chagas sejam semelhantes, os
trabalhos que estudaram as conseqüências do comprometimento do plexo mientérico
do esôfago sugerem que entre as duas doenças há diferenças neste
comprometimento.