O esôfago de Barrett associado à estenose cáustica do esôfago
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
A ingestão acidental ou proposital de agentes corrosivos ainda é freqüente no
país e significa um desafio tanto aos médicos, como à medicina preventiva em
geral, tendo em vista as complicações agudas e crônicas dessa agressão ao
esôfago, tais como hemorragia, broncopneumonia, perfuração, dor e estenose
cicatricial. Após a fase aguda em que está presente o edema e a inflamação,
segue-se a fibrose parcial ou total do órgão, acompanhada de estreitamentos,
estenoses e encurtamento com danos não só na morfologia, como na sua fisiologia
(2, 8).
A ingestão de hidróxido de sódio, mais comumente conhecido como soda cáustica,
prevalece na literatura como uma das principais causas de estenose benigna do
esôfago, atingindo duas populações: as crianças que ingerem acidentalmente o
cáustico e os adultos jovens que podem estar envolvidos em tentativas de
suicídio(6, 7, 19).
TUCKER e YARINGTON(21), revisando mais de 4.000 casos de ingestão de agentes
corrosivos, relatam 2% de mortalidade após ingestão de soda cáustica e 20% após
ingestão de vários tipos de ácidos. POSTLETHWAIT(12), revisando várias
publicações encontrou a incidência de 5% de estenose em 2.109 pacientes
expostos a agentes corrosivos.
A evolução para a estenose do esôfago depende de alguns fatores, tais como a
quantidade de cáustico ingerida, o tempo de exposição à mucosa esofagiana, as
camadas do órgão que foram envolvidas e a extensão do órgão envolvido. Além
disso, acredita-se que o esôfago fibrosado possa produzir hérnia de hiato por
deslizamento mais freqüentemente devido à retração cicatricial, portanto, é
esperado ocorrer refluxo gastroesofágico com freqüência mais elevada nesses
doentes, uma vez que a hérnia é um fator entre outros envolvidos no refluxo do
conteúdo cloridropéptico agressivo à mucosa esofágica(2, 6, 19). Sendo assim,
não é surpreendente o achado endoscópico concomitante de esofagite por refluxo
nos portadores de estenose cáustica.
A esofagite na doença por refluxo gastroesofágico pode, por sua vez, causar
outros padrões de lesão além da estenose esofágica como, por exemplo, erosões,
úlceras e estenoses pépticas no esôfago e o esôfago de Barrett (EP)(9, 10, 11).
O EP considerado conseqüência de esofagite de refluxo crônica é uma das doenças
esofágicas mais estudadas no momento, principalmente pela sua relação com o
desenvolvimento de adenocarcinoma. Endoscopicamente é caracterizado por
epitélio de cor avermelhada na extensão de no mínimo 2 a 3 cm do esôfago
distal, que se destaca do epitélio esofágico normal(11, 13, 20).
Enfim, nos portadores de estenose cáustica do esôfago presumivelmente somam-se
fatores predisponentes para o desenvolvimento do EP. Revendo a literatura,
porém, foi encontrada uma única publicação completa a respeito, de autoria de
SPECHLER et al.(18), em 1981, descrevendo um caso com EP no terço médio do
esôfago concomitante com a história pregressa de ingestão de cáustico e
conseqüente estenose cáustica.
O objetivo do presente trabalho foi analisar a ocorrência do EP entre os
portadores de estenose cáustica do esôfago no Gastrocentro-UNICAMP '
Universidade Estadual de Campinas, SP.
CASUÍSTICA E MÉTODOS
No período de 1981 a 2000 foram admitidos e tratados no Gastrocentro - UNICAMP
120 doentes apresentando estenose cáustica do esôfago de várias etiologias,
todos seguidos e submetidos regularmente a dilatações esofágicas com auxílio de
endoscopia digestiva(2). Entre eles, foram identificados em nove casos a
ocorrência do EP (7,5%). A confirmação foi através de biopsias adequadamente
colhidas das áreas suspeitas e estudos histopatológicos.
A faixa etária dos doentes variou de 43 a 72 anos (média de 57,7 anos), que se
distribuíram quanto ao sexo em quatro homens e cinco mulheres, e quanto à raça,
em oito brancos e um negro. O tempo de ingestão neste grupo variou de 4 a 54
anos (média de 29 anos) e a etiologia para a estenose foi, em todos os casos, a
ingestão de soda cáustica.
RESULTADOS
Todos os casos apresentavam disfagia de variável intensidade e a endoscopia
digestiva alta flexível mostrou áreas de estenose e seqüelas de esofagite
cáustica. Três doentes referiram sintomas de refluxo gastroesofágico, mas
hérnia de hiato foi verificada em apenas um caso. A extensão endoscópica do EP
variou de 1,5 a 3,5 cm.
O tratamento para alívio da disfagia consistiu de dilatações esofágicas
periódicas, mediante programa de dilatações instituído para cada doente,
conforme a intensidade dos sintomas e a gravidade das estenoses. Dois casos
apresentando esofagite grau C (classificação de Los Angeles) e sintomas de
refluxo grave foram submetidos a tratamento cirúrgico, tendo sido indicada a
fundoplicatura à Nissen modificada, através de videolaparoscopia(9), com
melhora significativa da sintomatologia.
Quanto ao local de ocorrência do EP no esôfago, a maioria deles apresentava a
lesão no terço inferior, acompanhando o local da estenose. Em três casos,
porém, o EP situava-se no terço médio do órgão, distante portanto do local da
estenose.
Todos os doentes continuam em seguimento ambulatorial, sendo periodicamente
submetidos a novas biopsias na tentativa de identificar displasias ou
malignização.
DISCUSSÃO
Vários autores têm tentado realizar nos últimos anos estudos epidemiológicos
para avaliar a prevalência do EP tanto na população em geral, como em séries
clínicas de doentes portadores de esofagite de refluxo ou outros sintomas
gastrointestinais(1, 10, 11, 13, 17).
Revisão realizada no Gastrocentro-UNICAMP mostrou prevalência de 22,4 casos por
100.000/ano(1). A revisão da literatura mostra que entre 23% e 40% dos
portadores de EP não têm quaisquer sintomas dispépticos e que esses casos não
são identificados, até que a endoscopia digestiva seja realizada por outras
razões. Além disso, é referido que entre 10% e 20% dos casos, o diagnóstico é
feito devido a alguma complicação, como úlcera, estenose e neoplasia associada
(3, 10, 11).
O EP associado ao refluxo gastroesofágico crônico tem possibilidade de sofrer
malignização ao longo dos anos, em percentagens variáveis referidas na
literatura, se não for adequadamente tratado(3, 10, 14).
Por outro lado, as estenoses esofágicas de origem cáustica são freqüentes em
todo o território nacional, ocorrendo em 5% a 33% dos casos registrados. O mais
comum é a própria soda cáustica para uso doméstico, porém, outros produtos,
tais como amoníaco, acído nítrico, ácido muriático, ácido clorídrico, soluções
para baterias e outros produtos de limpeza contendo substâncias cáusticas
também são ingeridos. A evolução para estenose geralmente ocorre nas primeiras
2-8 semanas, freqüentemente é de grande extensão e persiste por longo tempo(2,
6, 19).
O tratamento inicial é a tentativa de dilatações e caso não ocorra melhora da
disfagia, com queda do estado geral e emagrecimento, o tratamento cirúrgico
deverá ser logo indicado. O progresso e os avanços trazidos pelos novos
dilatadores e métodos de dilatações associados à endoscopia flexível foram
notáveis nos últimos anos, de modo que apenas 1 entre aproximadamente 20
doentes que ingerem caústicos têm necessidade de tratamento cirúrgico para
reconstrução do trânsito digestivo e retorno à alimentação por via oral(2, 7).
É importante lembrar que o doente portador de estenose cáustica deverá ter
acompanhamento médico e endoscópico por longos anos, não somente para controle
da disfagia, mas porque a literatura descreve nesses casos a ocorrência mais
freqüente de carcinoma epidermóide, principalmente após 30 a 40 anos do
incidente, sendo que essa associação, segundo algumas publicações, não
ultrapassa 3% a 5%(2, 6, 19).
SPECHLER et al.(18) descreveram o caso de doente masculino de 67 anos que havia
ingerido soda cáustica há cerca de 40 anos. Realizaram seguimento endoscópico
durante vários anos, e aproximadamente 20 anos após a ingestão passou a
apresentar área bem definida de epitélio atípico, bem diferente do epitélio
esofágico e no terço médio do esôfago, cujas biopsias mostraram tratar-se de
EP. O doente em questão não apresentava hérnia hiatal e nem esofagite de
refluxo. A hipótese desses autores para o surgimento do EP foi de que se
tratava de mucosa gástrica ectópica secundária à ingestão da soda cáustica. A
mucosa esofágica danificada pelo cáustico teria sido reepitelizada às custas de
proliferação de restos heterotrópicos de mucosa gástrica no terço médio do
esôfago.
FISHER et. al.(5), em 1983, descreveram a indicação de cintilografia com
tecnécio-99 para determinar a presença e extensão de EP nos dois terços distais
do esôfago em um doente que tinha história prévia de ingestão de soda cáustica.
Assim, na presente casuística o EP em seis dos nove casos estudados pode estar
associado diretamente com a ingestão de cáustico, porque não apresentavam
concomitante esofagite de refluxo. Além disso, em três desses seis casos essa
metaplasia não estava situada no terço distal do esôfago, como é habitualmente
encontrada na esofagite por refluxo.
Este estudo mostra que o tempo para o aparecimento de transformações na mucosa
características do EP é bem longo, cerca de 30 anos após o episódio agudo da
ingestão do cáustico.
No caso de malignização desse EP associado à ingestão cáustica, certamente o
tipo histopatológico será de adenocarcinoma, diferindo, portanto, do que
habitualmente tem sido encontrado, que é o carcinoma epidermóide. Encontrou-se
na literatura um único trabalho que relata a ocorrência de adenocarcinoma no
terço médio do esôfago de doente com história prévia de ingestão de cáustico,
feito por CORNET et al.(4), em 1976, que não referem a ocorrência do EP
associado, mas estranham muito este fato, enfatizando que a malignização seria
em decorrência do produto ingerido.
No sentido de prevenir a degeneração maligna do EP ao longo dos anos, alguns
autores recomendam a sua ablação endoscópica com laser, eletrocauterização ou
terapia fotodinâmica(15,16). Entretanto, especificamente no caso de EP
associado à ingestão de cáusticos não há relatos na literatura.
Concluindo, mais uma vez a soda cáustica desponta como agente agressor do
esôfago, o que reforça os trabalhos para a educação e prevenção desses
acidentes, principalmente entre as crianças. Além disso, é muito importante que
esses doentes realizem endoscopias digestivas periódicas, mesmo se estiverem
assintomáticos, para diagnóstico de ocorrência de EP associado ou eventual
malignização.