Alterações metabólicas induzidas por isquemia hepática normotérmica
experimental e o efeito hepatoprotetor da ciclosporina
GASTROENTEROLOGIA EXPERIMENTAL EXPERIMENTAL GASTROENTEROLOGYINTRODUÇÃO
O transplante de fígado é atualmente uma realidade. Um dos problemas ainda
presente é o período de isquemia completa, que pode acarretar lesões
irreversíveis neste órgão. O fígado humano pode suportar até 60 minutos de
isquemia, sem aumento das complicações pós-operatórias, falência hepática ou
mortalidade(4, 7). Apesar desses aspectos, o período máximo de segurança em que
o suprimento sangüíneo para o fígado pode ser interrompido em condições normais
de temperatura, permanece desconhecido.
Em 1976, a ciclosporina, um poderoso agente imunossupressor, foi desenvolvida
por Borel e introduzida na prática de transplante renal por CALNE et al.(2).
Estudos experimentais demonstraram que o tratamento com ciclosporina tinha
efeito protetor na reperfusão de fígados submetidos a isquemia normotérmica
(13).
Atualmente, todos os métodos eficazes para preservação de órgãos para
transplante baseiam-se na redução da temperatura como principal elemento
protetor. Logo que o órgão fica isquêmico, seu suprimento de metabólitos cessa,
podendo ocasionar lesões irreversíveis. Sabe-se que o simples resfriamento tem
sido bem-sucedido no sentido de reduzir esse dano, porém comporta muitas
limitações. Portanto, caso as alterações metabólicas induzidas pela isquemia
fossem mais detalhadamente estudadas, provavelmente seria possível intervir de
forma ativa e conveniente nestes processos, prolongando a viabilidade hepática.
Conseqüentemente, haveria melhora nos resultados do transplante hepático e de
outros órgãos.
No presente estudo, foram determinadas as alterações nas concentrações
hepáticas e sangüíneas de lactato, piruvato, glicose, corpos cetônicos, razão
acetoacetato/3-hidroxibutirato e estado redox hepático citoplasmático e
mitocondrial após 60 minutos de isquemia hepática normotérmica em ratos, assim
como a provável ação hepatoprotetora da ciclosporina. Assim sendo, foram
definidos alguns aspectos do metabolismo hepático, contribuindo para a
prevenção e tratamento da lesão isquêmica do fígado.
MÉTODOS
Foram utilizados 60 ratos albinos (Rattus norvegicus), variedade Wistar,
machos, com peso médio de 300 g, provenientes do biotério do Departamento de
Fisiologia e Farmacologia da Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE.
Os animais foram submetidos a anestesia inalatória com éter dietílico. Em
seguida, foi realizada uma laparotomia mediana. O pedículo hepático, composto
pela veia porta, artéria hepática e via biliar, foi isolado acima dos lobos
caudado e lateral direito, sendo posteriormente ocluído com pinça vascular
(Figura_1). A oclusão completa da tríade portal no local proposto é confirmada
no transoperatório pela presença de palidez importante nos lobos mediano e
lateral esquerdo, ao mesmo tempo em que os lobos inferiores não sujeitos à
isquemia (caudado e lateral direito) preservam a coloração habitual. Após 60
minutos de pinçamento da tríade portal, que corresponde ao mesmo tempo de
isquemia hepática, os ratos foram novamente anestesiados e a ferida abdominal
reaberta. Mais uma vez se confirma a eficácia da oclusão vascular pela isquemia
dos lobos superiores. A pinça vascular foi retirada, observando-se a reperfusão
dos lobos isquêmicos. Os lobos hepáticos não sujeitos à isquemia, foram, então,
submetidos a ligadura de seus pedículos vasculares e ressecados (Figura_2).
Desta forma, os animais permaneceram vivos somente com os lobos sujeitos à
isquemia, permitindo estudar as alterações metabólicas induzidas pela isquemia,
configurando o grupo isquêmico. Os animais do grupo-controle foram submetidos a
ressecção dos lobos hepáticos inferiores sem oclusão vascular, de tal forma que
permaneceram com a mesma quantidade de tecido hepático do grupo isquêmico.
Os animais foram divididos em 4 grupos de 12 unidades (6 controles e 6
isquêmicos). Todos os ratos do grupo isquêmico foram submetidos a 60 minutos de
isquemia hepática normotérmica. Os animais do grupo-controle foram estudados
nos mesmos tempos, porém sem isquemia hepática. O grupo 1 foi estudado no tempo
0 hora (isquêmico (I): imediatamente após 60 minutos de isquemia hepática;
controle (C): após hepatectomia); o grupo 2 no tempo 1 hora (I: 1 hora após 60
minutos de isquemia hepática; C: 1 hora após hepatectomia); o grupo 3 no tempo
6 horas (I: 6 horas após 60 minutos de isquemia hepática; C: 6 horas após
hepatectomia) e o grupo 4 no tempo 24 horas (I: 24 horas após 60 minutos de
isquemia hepática; C: 24 horas após hepatectomia). Um quinto grupo foi tratado
com administração intraperitoneal de ciclosporina (10 mg/kg/dia), por 4 dias
antes da indução da isquemia, e estudado somente no tempo 1 hora (1 hora após
60 minutos de isquemia hepática normotérmica).
Após serem anestesiados com éter e relaparotomizados, os ratos tiveram o sangue
arterial colhido através de punção da aorta abdominal (1 mL). Em seguida, o
fígado foi removido, imediatamente prensado e mergulhado em nitrogênio líquido
a cerca de 190 graus centígrados negativos nos tempos 0, 1, 6 e 24 horas. Tanto
o tecido hepático, como o sangue arterial, foram submetidos a análise, por
métodos enzimáticos, para determinação dos metabólitos: piruvato, acetoacetato,
lactato, hidroxibutirato, glicose.
Os resultados foram expressos como média + EPM, acompanhada pelo número de
observações (n). A significância estatística foi calculada de acordo com o
teste tde Student.
RESULTADOS
Na Tabela_1 são encontradas as alterações metabólicas das concentrações de
lactato, piruvato, glicose, corpos cetônicos, razão acetoacetato/
hidroxibutirato, estado redox mitocondrial e citoplasmático no fígado (mmol/g).
No tempo 0 hora (grupo 1), houve aumento significante (*P < 0,05) das
concentrações de lactato (C: 1,260 ± 0,371; I: 7,584 ± 1,264*), glicose (C:
8,161 ± 1,111; I: 19,774 ± 1,837*), e diminuição, também significante, da razão
acetoacetato/hidroxibutirato (C: 2,970 ± 0,682; I: 0,925 ± 0,119*), do
potencial redox mitocondrial (C: 2053,60 ± 430,55; I: 228,16 ± 40,24*) e
citoplasmático (C: 60,24 ± 13,92; I: 18,75 ± 10,41*). Com 1 hora (grupo 2),
houve elevação estatisticamente significante das concentrações de lactato (C:
3,920 ± 0,359; I: 6,343 ± 0,935*).
Na Tabela_2, em que foram avaliadas as alterações metabólicas das concentrações
de lactato, piruvato, glicose, corpos cetônicos e razão acetoacetato/
hidroxibutirato no sangue arterial (mmol/mL), ocorreram elevações significantes
nas concentrações de glicose no tempo 0 hora (grupo 1) (C: 4,143 ± 0,676; I:
7,039 ± 0,713) e 1 hora (grupo 2) (C: 5,738 ± 0,639; I: 9,425 ± 1,439*). Já com
os corpos cetônicos (C: 0,160 ± 0,022; I: 0,032 ± 0,007*) e razão acetoacetato/
hidroxibutirato (C: 0,905 ± 0,193; I: 0,035 ± 0,035**, P < 0,0002**) houve
diminuição importante 1 hora pós-isquemia (grupo 2).
Na Tabela_3, houve aumento significante, no tempo 1 hora (grupo 1), das
concentrações dos corpos cetônicos (I: 0,032 ± 0,007; I + ciclosporina (I +
Cya): 0,142 ± 0,020***, P < 0,005) e da razão acetoacetato/3-hidroxibutirato
(I: 0,035 ± 0,035; I + Cya: 0,193 ± 0,036***) no sangue arterial (mmol/mL) em
resposta ao tratamento com ciclosporina quando comparado com o grupo submetido
a isquemia.
DISCUSSÃO
Os resultados do presente estudo vão ao encontro dos resultados da literatura,
pois evidenciaram aumento do lactato hepático na fase aguda após
revascularização, particularmente nos primeiros minutos(6). No tempo 0 hora
(imediatamente após 60 minutos de isquemia hepática sem revascularização),
cerca de 30% do fígado (lobo lateral direito e caudado) permaneceu perfundido
e, portanto, funcionante. Desta forma, houve metabolização do lactato, evitando
o seu acúmulo na circulação sangüínea. Isto pode explicar a ausência de
hiperlactacemia neste tempo estudado (Tabelas_1, 2).
Os níveis hepáticos de lactato caíram com o tempo, podendo indicar recuperação
progressiva dos hepatócitos quando o fluxo sangüíneo é restaurado. É possível
que o acúmulo progressivo de lactato no fígado, durante a isquemia hepática,
possa ser um dos fatores responsáveis por dano celular irreversível, visto que
nos experimentos de FARKOUH et al.(5) nenhum cão sobreviveu quando os níveis
deste metabólito ultrapassaram 17 mmol/g de tecido hepático (Tabela_2).
A isquemia hepática elevou consideravelmente a concentração de glicose no
fígado somente no tempo 0 hora. No fígado isquêmico pode haver ativação da
fosforilase hepática com incremento da glicogenólise, tal como acontece no
músculo cardíaco(11). Portanto, a glicogenólise ativada pode explicar a
elevação da concentração de glicose hepática (Tabela_1).
Nos tempos 1 hora, 6 horas e 24 horas pós-isquemia não houve diferença nas
concentrações de glicose hepática entre os grupos controle e isquêmico,
provavelmente pela reoxigenação do tecido hepático com retorno da respiração
celular e conseqüente diminuição da glicogenólise.
As glicemias sangüíneas se elevaram nos tempos 0 hora e 1 hora. Tal fato se
deve, provavelmente, ao bloqueio de captação de glicose pelo fígado isquêmico e
pela liberação para circulação da glicose armazenada a partir do glicogênio
hepático (Tabela_2).
A isquemia hepática acarretou queda acentuada da concentração dos corpos
cetônicos e da razão acetoacetato/3-hidroxibutirato no sangue no tempo 1 hora
pós-isquemia, possivelmente decorrente da redução da síntese destes
metabólitos. Com o decorrer do tempo (6 horas e 24 horas), esse valores
voltaram a níveis semelhantes aos encontrados no grupo-controle, sugerindo
recuperação do hepatócito após injúria isquêmica. No fígado houve diminuição
significativa da razão dos corpos cetônicos no tempo 0 hora. É provável que
neste tempo de estudo, o tecido hepático, que permaneceu vascularizado (lobo
lateral e caudado), tenha sido responsável pelo balanço e conseqüente
normalização da razão dos corpos cetônicos na circulação arterial (Tabelas_1,
2).
A isquemia hepática causou queda tanto no estado redox citoplasmático, como do
mitocondrial no tempo 0 hora. Desta forma, houve redução entre estes dois
compartimentos na razão [NAD+]/[NADH], dificultando o transporte de elétrons e,
conseqüentemente, a formação de ATP(12). Nos tempos seguintes (1 hora, 6 horas,
24 horas), a revascularização parece ter restaurado o estado redox das células
hepáticas, visto que não houve diferenças entre animais isquêmicos e os grupos
de controle (Tabela_1).
A ciclosporina causou elevação da razão dos corpos cetônicos no sangue
arterial, mas não se elevou no tecido hepático. Portanto, o aumento da razão
acetoacetato/3-hidroxibutirato no sangue não refletiu a recuperação da função
mitocondrial hepática. Deste modo, o efeito protetor da ciclosporina na injúria
pós-isquêmica do fígado poderia estar relacionada ao aumento da capacidade de
sintetizar corpos cetônicos, já que houve elevação das concentrações destes
metabólitos no sangue no tempo estudado. Este efeito protetor da ciclosporina
pode estar relacionado à inibição da abertura dos canais de cálcio dependentes
da membrana interna mitocondrial associados à produção diminuída de radicais
livres de oxigênio(3, 8). O efeito protetor da ciclosporina na prevenção de
lesões hepáticas ocasionadas por isquemia é também devido à modulação da
produção de fator de necrose tumoral (FTN)(9, 10). O aumento dos níveis de FTN
pré-transplante está relacionado com rejeição aguda pós-transplante(1). Assim
sendo, é pertinente especular que a utilização de ciclosporina em receptores
antes do transplante ou seu uso em soluções de preservação, poderá melhorar os
resultados do transplante hepático.
CONCLUSÕES
A isquemia hepática ocasionou aumento significativo das concentrações de
lactato no fígado, sugerindo pronunciado grau de metabolismo anaeróbico durante
o período de isquemia e o período inicial de reperfusão.
Houve elevação da concentração de glicose no fígado, provavelmente por ativação
da enzima fosforilase e conseqüente glicogenólise. No sangue houve
hiperglicemia, provavelmente resultante do bloqueio de captação de glicose pelo
fígado isquêmico e pela liberação para circulação da glicose armazenada a
partir do glicogênio hepático.
A concentração dos corpos cetônicos e a razão acetoacetato/3-hidroxibutirato no
sangue caíram, possivelmente devido à redução de síntese destes metabólitos.
O estado redox citoplasmático e mitocondrial das células hepáticas diminuiu
somente no tempo 0 hora, sugerindo que a revascularização com normalização da
oferta de oxigênio recupera rapidamente o estado redox.
A ciclosporina causou elevação significante das concentrações dos corpos
cetônicos e da razão acetoacetato/3-hidroxibutirato no sangue arterial, podendo
refletir recuperação da função hepática.