O uso de nutrição enteral precoce pós-transplante hepático adulto
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLEINTRODUÇÃO
O transplante hepático (TXH) é atualmente o tratamento de escolha para uma
série de doenças terminais agudas e crônicas do fígado(2, 3, 8, 14). A maioria
dos pacientes levados a transplante, no entanto, é desnutrida(16, 21, 23) e
isto pode contribuir para maior morbimortalidade pós-operatória, bem como maior
custo(5, 20). Os pacientes com doença hepática grave têm risco aumentado de
aquisição de infecções(5), reconhecidamente a principal causa de óbito pós-
transplante(2). A translocação bacteriana, por sua vez, é responsável por
parcela considerável desses eventos. A nutrição enteral (NE), por evitar
atrofia da mucosa intestinal, reduz a translocação, podendo reduzir as
complicações sépticas(23). O uso de nutrição enteral precoce (NEP), no entanto,
não é rotina disseminada nos grupos de transplante. Revisão publicada em nosso
meio sugere que a alimentação seja iniciada a partir do terceiro ou quarto dia
pós-TXH(19). Ainda recentemente, foi publicado estudo japonês relatando quatro
casos com o uso de NEP em transplante hepático(24).
O objetivo deste estudo foi relatar a experiência obtida com o uso de NEP em
indivíduos transplantados hepáticos e avaliar sua segurança.
CASUÍSTICA E MÉTODOS
Foi realizado estudo prospectivo em 41 indivíduos adultos com doença hepática
crônica terminal, consecutivamente submetidos a TXH, num período de 52 meses no
Hospital de Clínicas de Porto Alegre, RS. Foram excluídos da amostra os
pacientes que se encontravam hospitalizados imediatamente antes do transplante,
os casos de TXH de emergência por insuficiência hepática aguda grave e os de
retransplante. Todos os indivíduos foram submetidos a imunossupressão tríplice
com ciclosporina em microemulsão, prednisona e azatioprina. A avaliação do
estado nutricional pré-TXH foi realizada através da avaliação nutricional
subjetiva global (ANSG) e da força do aperto da mão não-dominante (FAM),
aferida pela dinamometria(1, 4, 9, 11, 25).
Durante a cirurgia foi instalada sonda nasoentérica (SNE) de 10F em todos os
indivíduos, posicionada pelo cirurgião, no duodeno. Logo após a chegada ao
centro de tratamento intensivo (CTI), mesmo ainda sem ruídos hidroaéreos (RHA),
foi iniciada administração de solução de água e glutamina por bomba de infusão.
Em até 12 horas, esta solução foi substituída pela infusão contínua de dieta
líquida, polimérica, sem lactose e sacarose, e com fibras, na velocidade
inicial de 50 mL/h e, conforme tolerância, 70 ou 80 mL e sucessivamente até 100
mL/h. A partir do momento em que os RHA estivessem presentes, o paciente
recebia também líquidos por via oral. De acordo com a evolução, a dieta líquida
foi gradativamente substituída por dieta normal com controle de sódio (com as
necessárias adequações individuais em relação ao conteúdo nutricional). No
momento em que o paciente estivesse ingerindo dois terços de suas necessidades
calóricas por via oral, estimadas pela equação de predição de Harris-Benedict,
a SNE foi retirada. Durante todo o período, a aceitação da dieta enteral ou
oral era monitorada em relação a efeitos adversos, como distensão abdominal,
náuseas e vômitos. A presença de algum destes sintomas foi motivo de suspensão
da dieta, com retomada após pausa de 12 horas.
No período pós-operatório inicial os pacientes eram controlados diariamente,
até que fosse retirada a SNE, no que se refere aos seguintes itens: a)
quantidade de calorias efetivamente ingeridas, b) tolerância à dieta e c)
sinais de infecção, especialmente respiratória. Foram também considerados os
dias de internação em CTI, o número de dias de intubação orotraqueal e a
permanência hospitalar.
RESULTADOS
Dos 41 pacientes submetidos a TXH no período, 6 foram excluídos: 2 deles por
óbito no transoperatório e os 4 restantes por dificuldades operacionais (não
colocação da SNE no transoperatório em 1, e início inadvertido da solução
enteral de água e glutamina 12 horas após o TXH em 3). Assim, 35 indivíduos
foram avaliados, sendo que 24 (68,6%) do sexo masculino e 11 (28,6%) do
feminino. A média de idade foi de 45,5 anos (± 8,93).
De acordo com a ANSG, a prevalência de desnutrição pré-transplante foi de
77,1%, enquanto que pela FAM 100% dos pacientes foram considerados desnutridos.
A NE foi iniciada em todos os indivíduos em até 12 horas, moda de 10,9 horas, e
foi mantida com exclusividade por período médio de 2,6 dias (± 2,2). Via oral
exclusiva foi obtida no período médio de 9,5 dias (± 9,7). A NEP proveu o
aporte calórico estimado para o indivíduo em 97% dos casos.
O tempo médio de permanência na CTI foi de 8,2 dias (± 5,3), tendo sido a
extubação realizada, em média, em 2,3 dias (± 2,9). Os pacientes permaneceram
internados, em média, por 32 dias no hospital (± 15,8).
Intolerância à dieta enteral ocorreu em cinco indivíduos (14,2%), sendo que em
quatro deles ela foi reinstituída com sucesso após intervalo de 12 horas. No
paciente restante houve intolerância após a reinstituição, motivando a sua
retirada.
A prevalência de infecção respiratória foi de 28,6%. Em apenas dois pacientes
(5,7%) houve broncopneumonia com aspecto aspirativo ao estudo radiológico do
tórax.
DISCUSSÃO
A DPC tem sido relacionada a maior morbimortalidade pós-TXH. Na aferição da
FAM, por exemplo, o desempenho abaixo de 85% do esperado tem sido associado à
incidência aumentada de infecção e maior permanência em CTI(7, 13). A população
avaliada neste estudo era de indivíduos com alta prevalência de desnutrição, o
que vai ao encontro dos achados de outras séries de pacientes em lista de
espera para TXH(17).
A intervenção nutricional nestes indivíduos pode ser realizada no período pré
ou no pós-operatório. No período pré-TXH, a presença de doença hepática e seu
conseqüente impacto sobre o estado nutricional muitas vezes não permite
adequada correção. De fato, estudo randomizado aferindo o impacto da
intervenção nutricional pré-TXH, demonstrou melhora dos parâmetros nutricionais
pré-operatórios, incluindo ANSG e FAM, sem no entanto, demonstrar diferença
significativa na sobrevida a curto prazo(7). A NEP poderia contribuir para a
correção do estado nutricional no transplante imediato, com isto concorrendo
para melhores resultados(10, 12). Ao menos em modelo animal, LEVY e ALEXANDER
(15) demonstraram aumento na sobrevida de enxertos alogênicos cardíacos
tratados com NE. Em humanos, a intervenção nutricional enteral em mulheres
idosas desnutridas, submetidas a cirurgia ortopédica, relacionou-se a menores
complicações e menor tempo de hospitalização(13). Recentemente, RAYES et al.
(22) demonstraram a utilidade de suplementação enteral de lactobacilos em
pacientes submetidos a transplante hepático, em decorrência da menor
translocação bacteriana.
Se alimentar precocemente o indivíduo transplantado parece interessante e
justificável, a via oral nem sempre está disponível, quer seja por complicações
clínicas (alterações do sensório são freqüentes no pós-operatório e os períodos
de intubação orotraqueal são variados) ou ainda pela freqüente presença de
anorexia nesta fase. A alternativa à alimentação enteral seria a nutrição
parenteral total, cujo papel não está bem dimensionado nesta população(17, 18).
Daí o porquê da eleição da nutrição enteral para trabalhar nesta amostra.
A tolerância à dieta enteral foi boa, as complicações diretamente dela advindas
foram pouco prevalentes e solucionadas com a suspensão temporária da infusão.
Ressalva-se, no entanto, a ocorrência de broncopneumonia aspirativa com
evolução a óbito em um dos pacientes desta série, que havia demonstrado sinais
de intolerância (vômitos) à dieta. No único paciente em que não foi possível
reinstituir a nutrição enteral por intolerância, constatou-se piora clínica a
seguir, tendo o paciente evoluído a óbito por grave disfunção do enxerto. A
intolerância nutricional foi atribuída à falência intestinal associada à
disfunção de múltiplos órgãos. Entretanto, o número de casos de infecção
respiratória, efeito adverso teoricamente bastante relacionado à intolerância,
especialmente a náuseas e vômitos, foi inferior ao relatado na literatura(6).
CONCLUSÕES
Os achados deste estudo, mesmo considerando a pequena amostra, sugerem que seja
a NEP método eficaz na provisão de calorias e seguro em sua aplicação a
pacientes transplantados de fígado.