A atividade respiratória mitocondrial é um bom parâmetro para a lesão por
isquemia e reperfusão hepática?
GASTROENTEROLOGIA EXPERIMENTALEXPERIMENTAL GASTROENTEROLOGYINTRODUÇÃO
Embora o transplante hepático tenha se tornado o tratamento padrão para os
casos de insuficiência hepática terminal(20), a disfunção do enxerto ainda é
importante causa de morbidade e mortalidade pós-operatória. Ao se restabelecer
o fluxo sangüíneo ao órgão transplantado, provoca-se o agravamento da lesão
sofrida durante o período de isquemia extracorpórea(4, 9).
A fosforilação oxidativa é processo que sofre as graves conseqüências da
reperfusão. Uma vez que a cadeia respiratória está localizada nas membranas
mitocondriais, e sendo as membranas celulares importantes alvos da lesão por
radicais livres originados durante o período de reperfusão, é natural supor que
a destruição das membranas celulares resultará no impedimento da fosforilação
oxidativa, fenômeno que pode ser facilmente documentado em laboratório(7).
As alterações mitocondriais estão claramente associadas à lesão da
microcirculação hepática, já que o restabelecimento do fluxo sangüíneo na
microcirculação é necessário para a reabilitação da respiração mitocondrial
(13). Admite-se que o sofrimento da mitocôndria durante o período de reperfusão
gere os radicais livres que resultarão ou agravarão a lesão celular(6): durante
a isquemia, há grave diminuição dos componentes da cadeia respiratória. Durante
a reperfusão, ocorre produção de ânion superóxido. O ânion superóxido
intramitocondrial, incapaz de se difundir para fora da mitocôndria, gera
peróxido de hidrogênio por meio da ação de enzima Mn-superóxido dismutase. O
peróxido de hidrogênio difunde-se para o citosol. O resultado da geração de
superóxido intramitocondrial será o aumento da concentração de peróxido de
hidrogênio em toda a célula. Esse irá reagir com grupos hemes de citocromos
citosólicos e intramitocondriais, gerando espécies oxidativas extremamente
reativas e capazes de iniciar as lesões observadas.
Embora os efeitos da reperfusão sejam poderosos, as células possuem eficiente
aparato enzimático antioxidante, que é capaz de neutralizar, em parte, os
efeitos da ação de radicais livres. Esgotados os mecanismos de defesa celular,
a ação de radicais livres provocará os eventos fisiopatológicos que resultarão
na morte celular(11). As alterações mitocondriais que ocorrem durante o período
de reperfusão hepática não são responsáveis pela morte celular, mas são
consideradas como bons indicadores das lesões por isquemia e reperfusão(7) por
estarem intimamente associadas à lesão da microcirculação hepática, uma vez que
sua recuperação é de vital importância para a reabilitação da função celular
(13). As mitocôndrias agravam o sofrimento celular e sofrem as conseqüências da
reperfusão. Não está claro, entretanto, se a lesão celular pode ser documentada
em um momento em que as mitocôndrias ainda são capazes de gerar adenosina
trifosfato (ATP). Se isso for possível, a atividade respiratória mitocondrial
não pode ser usada como um indicador universal da lesão celular.
O objetivo do presente estudo foi investigar se pode haver atividade
respiratória mitocondrial detectável em laboratório durante a lesão por
isquemia e reperfusão do fígado.
MATERIAL E MÉTODOS
Este estudo foi realizado de acordo com as normas para experimentação em
animais da Universidade de São Paulo.
Cães mestiços de ambos os gêneros, livres de verminose por tratamento com
prazinquantel (drontal plus, 660 mg, em duas doses separadas por 15 dias), com
peso variando de 15 a 25 kg, fornecidos pelo biotério central da Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP,
foram aleatoriamente distribuídos nos seguintes grupos: grupo controle: seis
cães, grupo I60, seis cães submetidos a isquemia do fígado por 60 minutos;
grupo I30/R60, seis cães submetidos a 30 minutos de isquemia e a 60 minutos de
reperfusão do fígado; grupo I45/R120, seis cães submetidos a 45 minutos de
isquemia e a 120 minutos de reperfusão do fígado.
Os animais receberam cetamina por via intra-muscular (ketamin, 50 mg/mL,
Laboratório Cristália, na dose de 5 mg/kg)) como pré-anestésico, sendo a
seguir, anestesiados com pentobarbital sódico (25 mg/kg; bolus endovenoso;
Abbot Laboratórios), por meio de veia periférica, intubados com sonda traqueal
com balão (cânula Rush) e ventilados com 100% de oxigênio por respirador a
pressão positiva. Procedeu-se à monitorização da pressão arterial média pela
cateterização da artéria femoral direita com sonda uretral 8 Fr e da
temperatura corporal por termômetro retal. Amostras de sangue foram colhidas
para dosagens de transaminases, bilirrubinas, fosfatase alcalina e
desidrogenase lática (DHL) no início e ao término da operação. Durante o
período operatório os animais receberam soro fisiológico endovenoso por veia
periférica (20 mL por kg de peso corporal por hora) e anestésicos para manter a
pressão arterial estável e o cão em plano anestésico.
Os animais foram submetidos a laparotomia mediana e colocação de pinça vascular
no pedículo hepático. Após o período desejado de isquemia, a pinça vascular foi
retirada sob visão direta e no grupo I30/R60 e grupo I45/R120os animais foram
submetidos ao período de reperfusão desejado.
Os animais do grupo I60 foram submetidos apenas ao período de isquemia, sem
período de reperfusão. Os animais do grupo controle foram submetidos ao mesmo
procedimento anestésico que os demais animais e a laparotomia sem clampagem do
pedículo hepático por 165 minutos. Após o término do procedimento, os animais
foram rapidamente exsangüinados pelo cateter da artéria femoral e amostras do
fígado foram retiradas para avaliação do malondialdeído (MDA) e avaliação da
função mitocondrial. Amostras de sangue foram colhidas para dosagem de
transaminases e DHL.
Avaliação da taxa de lipoperoxidação hepática
As substâncias que reagem ao ácido tiobarbitúrico são, em sua maioria, produtos
da peroxidação lipídica, sendo a dosagem dessas substâncias usada para
monitoramento da taxa de lipoperoxidação. A dosagem foi realizada de acordo com
o método descrito por BUEGE e AUSSI(1). A determinação da peroxidação lipídica
usou como reagente a solução TCA-TBA-HCL, ou seja, 15% w/v de ácido
tricloacético, 0,375% w/v de ácido tiobarbitúrico em 0,25 N de ácido
hidroclórico. A dosagem de proteínas no fígado foi feita por meio do método de
LOWROY at al.(15).
Avaliação da função mitocondrial(2)
A amostra de fígado foi lavada com soro fisiológico e colocada em becker com
meio de homogenização (sacarose 250 mM, EGTA 1 mM e Hepes-KOH 10 mM, pH 7,2)
para secção do fígado em pequenos fragmentos com tesoura. Os fragmentos foram
homogenizados em homogenizador do tipo Potter Elvhjem por 3 segundos, com
intervalos de 1 minuto entre cada sessão de homogenização, para o total de três
sessões. A amostra foi, a seguir, centrifugada a 750 g por 5 minutos;
centrifugação do sobrenadante do processo anterior por 10 minutos a 12.000 g. O
sedimento obtido pelo processo anterior foi suspenso em 10 mL de meio contendo
sacarose 250 mM, EGTA 0,3 mM e Hepes-KOH 10 mM, pH 7,2 e centrifugado por 15
min a 4320 g. O sedimento obtido foi suspenso em 1 mL do meio contendo sacarose
250 mM e Hepes-KOH 10 mM, pH 7,2.
Uma amostra do preparado obtido foi usada para dosagem de proteínas. Os estudos
com as mitocôndrias energizadas foram feitos dentro de período máximo de 2
horas após o isolamento. Todas as etapas foram realizadas à temperatura
constante de 4ºC.
Determinação da proteína da fração mitocondrial
A concentração de proteína mitocondrial foi determinada
espectrofotometricamente pelo método do Biureto(12), modificado pela adição de
colato 1%, utilizando BSA 1% como padrão.
Determinação do consumo de oxigênio pelas mitocôndrias energizadas
O consumo de oxigênio pelas mitocôndrias energizadas foi determinado
polarograficamente a 30ºC por meio de oxígrafo de Gylson (Medical Eletronics
EUA), acoplado a eletrodo tipo Clarck. O meio de respiração (1,3 mL) é composto
por sacarose 1,25 mM, cloreto de potássio 65 mM, fosfato de potássio 2 mM,
cloreto de magnésio 1 mM, EGTA 0,1 mM e Hepes-KOH 10 mM, e adicionado succinato
5 mM, pH 7,4. Utilizaram-se 2 mg de proteína mitocondrial. O estado 3 da
respiração mitocondrial (estado ativado) foi obtido pela adição de 200 nmoles
de ADP às mitocôndrias energizadas. A relação entre a velocidade de respiração
após a adição de ADP (estado 3) e a velocidade do estado basal (estado 4),
obtida após consumo de ADP, forneceu a razão de controle respiratório (RCR). Os
resultados obtidos dos estados 3 e 4 foram expressos em número átomos de
oxigênio/mg de proteína mitocondrial/minuto.
Determinação do potencial elétrico da membrana mitocondrial interna
O potencial elétrico de membrana das mitocôndrias (PM) foi determinado
espectrofluorimetricamente utilizando 5 µM de safranina O como indicador, em
fluorímetro tipo SLM-AMINCO em comprimentos de onda de 495 nm para excitação e
586 nm para emissão(5). As mitocôndrias foram preparadas em meio contendo
sacarose 200 mM, fosfato de potássio 2 mM, EGTA 0,03 mM, cloreto de magnésio 1
mM e Hepes-KOH 10 mM, em pH 7,2, sendo o potencial de membrana gerado pela
adição de succinato 5 mM/Rotenona 4 µM. Após a estabilização do potencial de
membrana, adicionou-se 1 µM do desacoplador FCCP (carbonil cianeto rtrifluoro-
metoxi fenilhidrazona(3)). Os resultados obtidos (unidade relativa de
fluorescência) foram convertidos em mV, a partir de curva de calibração. Todos
os reagentes usados nessa fase dos experimentos foram adquiridos das empresas
Sigma ou Merck.
Determinação dos valores das trasaminases
Para a determinação da atividade da alanina aminotransferase (ALT) e aspartato
aminotransferase (AST) foi utilizado kit comercial fornecido pela empresa CELM
Cia. Equipadora de Laboratórios Modernos, Barueri, SP
Para determinação dos valores de DHL foi utilizado método cinético ' UV
(International Federation of Clinical Chemistry, 1980). O teste no soro
sangüíneo determina a quantidade de enzima encontrada no coração, fígado, rins,
cérebro, músculo esquelético e glóbulos vermelhos. O kit utilizado foi obtido
da empresa Labormed (Guarulhos, SP).
Análise estatística
Os valores correspondentes aos resultados das provas bioquímicas, dosagem do
MDA e valores referentes aos parâmetros de respiração mitocondrial são
expressos como média aritmética e erro-padrão da média. Em todos os
experimentos, n significa o número de animais dos quais amostras de fígado para
dosagem de MDA e avaliação da respiração mitocondrial, ou as amostras de sangue
foram obtidos. Para a análise estatística, foi utilizado teste de análise de
variância (ANOVA one-way), complementado pelo teste de Bonferroni para
observações não-pareadas. Os cálculos foram feitos por meio do programa para
computador GraphPAd Prism 3.0. Os valores foram considerados significantes
quando P < 0,05.
RESULTADOS
Respiração mitocondrial
A análise dos resultados referentes ao estado de respiração ativada (estado 3),
respiração mitocondrial basal (estado 4), RCR, relação ADP:O e potencial de
membrana mitocondrial não mostrou diferenças com significância estatística
entre os grupos estudados (Tabela_1).
ALT, AST e DHL
Houve diferença com significância estatística entre os valores de transaminases
(P<0,01) e DHL (P<0,05) entre o grupo controle e o grupo I45/R120 (Tabela_2).
Lipoperoxidação
Os valores referentes às dosagens das substâncias reagentes ao ácido
tiobarbitúrico (SRATB) mostraram diferenças com significância estatística entre
o grupo I45/R120 e os grupos controle e I60, P < 0,05 (Figura_1).
DISCUSSÃO
A lesão por isquemia e reperfusão do fígado é fenômeno pouco compreendido e
motivo de grande número de importantes publicações científicas. Há vários
métodos para avaliar e quantificar a lesão. As dosagens séricas de
transaminases e DHL são parâmetros clássicos de lesão dos hepatócitos e são
usadas praticamente em todos os trabalhos que têm como objetivo o estudo da
lesão de isquemia e reperfusão, pois são de fácil reprodução e baixo custo.
Em grande número de trabalhos, os animais são submetidos desde poucos até 120
minutos de isquemia por períodos de reperfusão que variam de minutos até vários
dias, com os mais variados objetivos.
Ratos submetidos a 45 minutos de isquemia passam a apresentar aumentos
significativos das transaminases, já aos 15 minutos de reperfusão e aos 60
chegam a apresentar valores 30 vezes maiores que os valores basais(10). Após 60
ou 90 minutos de isquemia apresentam maior aumento das transaminases, entre 1 e
3 horas de reperfusão. No presente trabalho, o grupo I30/R60 mostrou aumento
dos seus valores séricos, sem significância estatística com relação aos
controles. Entretanto, o grupo I45/R120 mostrou claro aumento dos valores de
transaminases, semelhantes aos publicados na literatura, evidenciando que o
modelo aqui utilizado foi suficiente para induzir lesão celular por isquemia e
reperfusão do fígado.
A literatura mostra dados conflitantes com relação a lipoperoxidação no fígado
reperfundido, havendo estudos bem conduzidos que sugerem ser pouco provável que
a peroxidação de lipídios seja o principal fator responsável pela lesão do
parênquima hepático, embora não se possa excluir que a lipoperoxidação seja o
mecanismo de lesão em compartimentos limitados do fígado, por exemplo, células
de Kupffer, neutrófilos e célular endoteliais(18).
No presente estudo documentou-se aumento da geração de substâncias reativas ao
ácido tiobarbitúrico, diretamente proporcional ao tempo de isquemia e
reperfusão, com aumento significativo apenas no grupo I45/R120. São resultados
concordantes com os observados por MA(16), que sugerem que a extensão da lesão
por isquemia e reperfusão está correlacionada ao conteúdo de MDA nos tecidos
reperfundidos, e com a proposição de YOSHIKAWA et al.(22) de que as espécies
reativas de oxigênio e a peroxidação de lipídios têm importante papel na lesão
por isquemia e reperfusão do fígado. A metodologia empregada nesse estudo não
permite distinguir se os valores aumentados de MDA no grupo I45/R120 são
causados pela peroxidação de lipídios de hepatócitos ou de outras células
(células de Kupffer e leucócitos), mais vulneráveis a esse tipo de lesão por
não possuírem as defesas antioxidantes naturais dos hepatócitos. Os presentes
resultados indicam que há aumento da lipoperoxidação no fígado reperfundido,
utilizando-se o modelo aqui proposto, mas não permitem afirmar que a
peroxidação de lipídios seja o mecanismo principal da lesão do parênquima
hepático.
Pode-se medir o consumo de O2 em mitocôndrias isoladas por meio de traços
polarográficos. Esses traços refletem o estímulo do consumo de O2 (estado 3)
obtido pela adição de pequena quantidade de ADP, seguido por diminuição na taxa
respiratória devido ao consumo do ADP (estado 4). Essa seqüência pode ser
repetida por outras adições de ADP, até que ocorra o esgotamento do O2 (estado
5). A relação entre a taxa de respiração ativa (estado 3) e de repouso (estado
4) é referida como RCR e é medida da certeza do acoplamento entre a
transferência de elétrons pela cadeia respiratória e a fosforilação oxidativa,
indicando a qualidade da preparação mitocondrial e sua capacidade em acelerar a
respiração sob condições de demanda de energia, conservada a energia livre das
reações de óxido-redução na forma de ATP(8). Valores baixos de RCR, comparados
aos respectivos controles, indicam alterações em um ou mais componentes da
cadeia respiratória e, portanto, do estado energético celular(14).
A regulação da taxa respiratória de um tecido pela oferta de ADP é situação
fisiológica normal. Quando o tecido é submetido a isquemia total, as reservas
de ATP continuam sendo convertidas a ADP + Pi e as fosfocreatinas são
convertidas a creatina, liberando fosfatos de alta energia. Se há acúmulo de
ADP, há estímulo à respiração, que não pode ser ativada, pois não há oferta de
O2. A taxa de fosforilação diminuirá, não se restabelecendo os estoques
celulares de ATP(19), indispensáveis para a manutenção da integridade e para o
exercício da função celular. O ATP é produzido pela mitocôndria e a lesão
mitocondrial pode levar à morte celular, portanto, a concentração de ATP é
importante parâmetro de viabilidade celular(21).
Os resultados encontrados indicam que não há prejuízo para a respiração celular
em estado de repouso (estado de ausência de ADP) das mitocôndrias. O estudo dos
valores do estado 3 (respiração ativada por ADP) mostra diminuição dos valores
de consumo de O2 se as mitocôndrias são estimuladas com ADP. Embora haja clara
tendência para a diminuição dos valores referentes ao estado 3, o tratamento
estatístico por meio de análise de variância não mostrou diferenças entre os
valores encontrados. Como resultado disso, a RCR também não mostrou diferenças
significantes. GONZALEZ-FLECHA et al.(6) documentaram diminuição significativa
dos valores relativos ao estado 3 somente após 120 minutos de isquemia sem
reperfusão, ou 60 minutos de isquemia seguidos por 30 minutos de reperfusão em
fígados de ratos, e nenhuma diminuição dos valores relativos ao estado 4, mesmo
após 180 minutos de isquemia, ou 180 minutos de isquemia seguidos por 30
minutos de reperfusão. São valores próximos aos observados neste experimento.
Por que não houve impedimento da atividade respiratória mitocondrial, mesmo no
grupo em que houve clara lesão celular? É possível que, se os cães tivessem
sofrido isquemia por tempo pouco mais prolongado, as lesões mitocondriais
fossem mais evidentes no grupo I45/R120. Durante o período de isquemia, a
importante diminuição na oferta de O2 para a cadeia respiratória limita a
fosforilação oxidativa e a peroxidação lipídica. A capacidade respiratória dos
tecidos nessas condições está perigosamente diminuída e as reservas de ATP não
podem ser refeitas. Durante a reperfusão, a oferta de O2 permite que se
restabeleça o metabolismo oxidativo, e também o aparecimento do estresse
oxidativo. Seguramente, a gravidade do estresse oxidativo depende do tempo de
isquemia. Em fígados de ratos, 60 minutos de isquemia sem hipotermia resultam
em lesão celular reversível e o consumo de O2 retorna aos valores basais quando
a oferta de O2 é restabelecida. Tempos maiores de isquemia (120-180 minutos)
seguidos por reperfusão, resultarão em lesão celular irreversível(6). Esses
achados são compatíveis com as observações do presente estudo. Os valores
relativos ao estado 3 não mostraram diferenças significativas porque o tempo de
isquemia foi relativamente curto, embora tenha sido possível observar a
tendência à diminuição do consumo de O2 na presença de ADP, à medida que se
aumentou o tempo de reperfusão. A diminuição da utilização do O2 mediante a
oferta de ADP reflete o grau de impedimento funcional da cadeia respiratória
como resultado da lesão por isquemia e reperfusão.
O potencial elétrico da membrana mitocondrial (DY) pode ser aferido utilizando
a mesma fração mitocondrial usada para determinação do consumo de O2 (método
polarográfico). A membrana interna atua como sistema polarizado internamente
com cargas negativas, que funcionam como sítios de ligação para corantes
lipofílicos, por exemplo a safranina(3). É possível avaliar DY quantificando o
número de sítios de ligação. A intensidade de fluorescência indica, de maneira
inversamente proporcional, o grau de energização da membrana interna, ou seja,
o potencial de membrana. Uma vez estabilizado o DY, adiciona-se um
desacoplador, o protonóforo FCCP [carbonil cianeto r-(trifluoro-metoxi)
fenilhidrazona](5). Esses ácidos lipossolúveis fracos podem transpor a barreira
lipídica da membrana mitocondrial sem transitar pela ATP-sintetase. Depois de
entrar na matriz mitocondrial na forma protonada, por outra via para o fluxo de
H+ que não a da ATP sintetase, eles se dissociam do próton. Esse fato elimina o
gradiente de prótons gerado pela cadeia transportadora de elétrons e, portanto,
elimina o potencial de membrana. Há interrupção da síntese de ATP sem bloquear
a captação de O2 pois tanto a oxidação de substratos, quanto o transporte de
elétrons e o bombeamento de H+ continuam, mesmo na ausência de ADP(14, 17, 19).
O potencial de membrana é avaliado em fluorímetro com comprimentos de onda de
495 nm para excitação e 586 nm para emissão, sendo o indicador usado a
safranina O. Os valores obtidos são comparados a valores controles e são
apresentados como medida fluorimétrica equivalente ao potencial de membrana
mitocondrial interna.
Os resultados do presente estudo não mostraram alterações no potencial de
membrana celular das mitocôndrias, achado que pode ser facilmente explicado
pelos resultados obtidos nos parâmetros de respiração celular. Se não houve
diferenças significativas nos parâmetros de respiração celular, o resultado
observado é o esperado.
Esses resultados não contradizem a teoria mitocondrial, que explica a lesão
celular causada pela geração de radicais livres pela mitocôndria reperfundida.
O fato das mitocôndrias não sofrerem impedimento da fosforilação oxidativa,
significativamente demonstrável no grupo I45/R120, não significa que não tenha
havido geração de radicais livres pelas mitocôndrias reperfundidas, capazes de
causar a lesão celular observada, uma vez que o método utilizado nesse
experimento não avaliou a geração de radicais livres pelas mitocôndrias
reperfundidas.
A interpretação dos dados obtidos permite afirmar que, embora se possa observar
lesão de hepatócitos com extravasamento de enzimas no grupo I45/R120 e
tendência à diminuição dos valores relativos ao estado 3 proporcional ao tempo
de isquemia e reperfusão, não houve lesão mitocondrial suficiente nesse grupo
para que diferenças significantes entre os grupos estudados fossem
documentadas. As mitocôndrias ainda eram capazes de gerar ATP, mesmo com
evidente sofrimento celular. Os resultados sugerem que embora tenha havido
lesão de hepatócitos no grupo I45/R120, não houve prejuízo irreversível para a
fosforilação oxidativa.
CONCLUSÃO
A análise dos dados pelos instrumentos matemáticos escolhidos, dentro das
condições em que esse experimento foi realizado, permite concluir que a lesão
por isquemia e reperfusão do fígado de cães pode ser documentada sem que haja
prejuízo demonstrável para a função mitocondrial.
Dados referentes à respiração mitocondrial podem não mostrar diferenças
expressivas em relação aos controles, mesmo em situações de evidente lesão
tecidual por isquemia e reperfusão do fígado. Essa observação sugere que embora
a atividade mitocondrial possa ser marcador de lesão hepática grave, não pode
ser utilizada como marcador universal da lesão por isquemia e reperfusão do
fígado canino.