Prevalência ambulatorial em um hospital geral de marcadores para hepatites B e
C em pacientes com infecção pelo vírus da imunodeficiência humana
ARTIGO ORIGINALORIGINAL ARTICLESINTRODUÇÃO
Atualmente, aproximadamente 33 milhões de pessoas estão contaminadas pelo vírus
da imunodeficiência humana (HIV) no mundo, sendo mais da metade adultos
residentes na África(33).
A introdução de novos agentes na terapia anti-retroviral (ARV) aumentou a
expectativa de vida entre os infectados pelo HIV, permitindo a observação de um
número maior de pacientes com cirrose e com suas complicações em casos de co-
infecção pelo vírus da hepatite B (VHB) e C (VHC), bem como a hepatotoxicidade
associada ao uso desses medicamentos(39). Estudos recentes realizados na Itália
e na Espanha demonstraram que, em infectados pelo HIV, as hepatopatias crônicas
são responsáveis por 35% e 45% dos casos de óbito, respectivamente(21, 25).
O VHB, o VHC e o HIV utilizam as mesmas rotas de transmissão(1, 2, 5, 35). No
entanto, a transmissão parenteral é mais observada com o VHC do que com o HIV,
e a via sexual é mais eficiente para a transmissão do HIV(38).
A prevalência de VHB e VHC em pacientes infectados pelo HIV varia de acordo com
os fatores de risco para a aquisição de VHB, VHC e HIV(39) e com a
sensibilidade/especificidade dos métodos diagnósticos utilizados para
identificar a infecção(27).
Segundo POLES e DIETERICH(24), metade de todos os pacientes infectados pelo HIV
são co-infectados com o VHB ou com o VHC, o que causa impacto na qualidade de
vida, na sobrevida e nos custos com tais pacientes.
O presente estudo teve como objetivos determinar a prevalência de marcadores
para hepatites B e C em uma população de pacientes portadores do HIV, bem como
os fatores de risco envolvidos.
PACIENTES E MÉTODOS
Foram revisados de forma retrospectiva os prontuários de pacientes portadores
de HIV do Serviço de Infectologia do Hospital Nossa Senhora da Conceição
(HNSC), hospital público de nível assistencial terciário, prestador de
atendimento à população de baixa renda e centro de referência para pacientes
com síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS), localizado em Porto Alegre,
RS.
Os prontuários são arquivados por ordem alfabética e, dentre os 5 870
prontuários existentes, foram revisados aleatoriamente 587. Dentre estes, foram
considerados para análise os 343 em que havia sido pesquisada a presença de
algum marcador para hepatite B (HBsAg, anti-HBc ou anti-HBs) ou C (anti-VHC).
Os anticorpos anti-VHC foram detectados por meio do teste ELISA III, de acordo
com as instruções de fabricação (Abbott Axsym System, N.Chicago, IL, EUA).
A presença de HBsAg, anti-HBc e anti-HBs foi verificada por meio de testes
comerciais de radioimunoensaio, de acordo com as instruções do fabricante
(Abbott Axsym System, N.Chicago, IL, EUA).
Anticorpos para o HIV-1/HIV-2 foram detectados pelo teste ELISA II e "Immune
Chromatrographic Assay Determine" (Abbott Axsym System, N.Chicago, IL, EUA).
Amostras positivas eram submetidas a confirmação pelo teste de
imunofluorescência (Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ). Resultados
indeterminados eram confirmados pelo teste de "western-blot"(14).
Fatores epidemiológicos como o uso de drogas injetáveis (UDI), transfusão
sangüínea antes de 1992 e homens que praticam sexo com homens (HSH), bem como
outros fatores, tais como exposição ocupacional, cirurgias prévias de grande
porte, procedimentos dentários, acupuntura, "piercing", brincos, tatuagens,
história de hepatite no passado, contato com pessoas com hepatite, uso
compartilhado de escovas de dentes, navalhas ou lâminas, aspiração intranasal
de cocaína, história sexual incluindo relacionamento heterossexual promíscuo ou
com cônjuge sabidamente infectado, hemodiálise no presente ou no passado e
história de transplante de órgãos, foram avaliados.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética do HNSC.
Na análise estatística, o programa MsExcel 2000 foi utilizado para tabulação
dos dados; o pacote estatístico SPSS 8.0 ("Statistical Package for Social
Science") foi utilizado para análise posterior dos resultados. As variáveis
qualitativas foram apresentadas em forma de freqüência e percentual. O nível de
significância assumido foi de 5%.
RESULTADOS
A média de idade foi de 34,4 ± 10,6 anos, 206 (62,4%) eram homens e 254 (76,9%)
eram de raça branca.
O HBsAg foi positivo em 14 de 306 (4,6%). Dentre aqueles em que se pesquisou a
presença do anti-VHC, 126 de 330 (38,2%) tinham-no positivo. Co-infecção por
vírus B e C foi observada em 7 dentre os 296 pacientes que realizaram tanto o
HbsAg, quanto o anti-VHC (2,4%) (Tabela_1).
O anticorpo anti-HBs foi positivo em 40 de 154 (26,0%) e o anti-HBc em 79/205
(38,5%).
Dentre aqueles HBsAg positivos, a principal categoria de exposição foi HSH
(50,0%). Dentre aqueles anti-VHC positivos, a principal categoria de exposição
foi o UDI (75,3%). Outrossim, este mesmo fator de risco foi ainda mais
prevalente quando havia associação entre HIV/VHB/VHC (85,7%). Por outro lado,
naqueles monoinfectados com HIV (185 pacientes), o fator de risco mais
prevalente foi relacionamento heterossexual promíscuo ou com cônjuge infectado
por HIV, tendo sido verificado em 83 pacientes (44,9%).
DISCUSSÃO
Originária de chimpanzés da África Central, a AIDS atingiu proporções
epidêmicas nos anos 80 nos Estados Unidos da América e na Europa, onde a
maioria das infecções era adquirida através de contato homossexual.
Subseqüentemente, houve a disseminação epidêmica para populações heterossexuais
(15). Atualmente, a infecção pode ser adquirida através de transmissão
heterossexual em 75% a 85% dos casos e a transmissão vertical tem emergido como
problema de saúde pública em países em desenvolvimento(15), embora nem todos os
autores concordem com a magnitude atribuída a esta forma de transmissão(16).
Coincidindo com essas mudanças na epidemiologia da infecção pelo HIV, novas
contribuições surgiram no tratamento da doença, destacando-se o papel dos ARV
na sobrevida desses doentes.
Como o prognóstico da infecção pelo HIV melhorou significativamente com a
terapia ARV, as hepatopatias crônicas, inicialmente meras coadjuvantes no
espectro da infecção pelo HIV, têm adquirido destaque e parecem destinadas a
ser causa importante de morbidade e de mortalidade na população co-infectada
por VHB ou VHC(34, 35).
O estado permanente de ativação imune observado nos pacientes com VHC pode
influenciar de forma deletéria os pacientes com HIV, favorecendo a replicação
do HIV e a destruição das células CD4(38). Além disso, a co-infecção acelera a
evolução da hepatopatia relacionada ao VHC(2, 34, 35).
A prevalência de co-infecção VHC-HIV em coortes específicas varia de 15% a 60%
(12). A grande variabilidade depende dos fatores de risco da população estudada
e dos métodos para a detecção do VHC. Taxas mais altas têm sido observadas em
estudos de coorte europeus(26, 37).
Estudos de prevalência demonstram taxas de co-infecção por VHC-HIV em 4% a 15%
entre HSH(6, 29), 60% a 90% entre usuários de drogas injetáveis(8, 32, 36) e
aproximadamente 100% em hemofílicos que receberam concentrados de fatores de
coagulação antes da introdução da inativação pelo calor, em 1987(7, 28).
Nos EUA, estima-se que em torno de 30% dos 800 000 indivíduos infectados pelo
HIV estejam co-infectados pelo VHC(18, 30). No estudo de coorte EuroSIDA, que
incluiu dados de 3 048 pacientes infectados pelo HIV, 33% da população era
anti-VHC-positiva; entre UDI, mais de 75% eram co-infectados(36). A magnitude
do problema é maior na Espanha, onde pelo menos 50% dos 130 000 pacientes
infectados por HIV são co-infectados por VHC(36). Em alguns subgrupos de
pacientes HIV-positivos, como UDI, a prevalência de co-infecção chega a 90%(18,
36).
Na França, estudo de coorte(26) incluindo 272 pacientes infectados pelo HIV,
demonstrou prevalência de 36,4% de co-infecção pelo VHC, atribuída à alta
proporção de UDI (78%).
Estudo de coorte suíço(13) avaliou 3 111 pacientes portadores de HIV,
verificando a presença de VHC em 47,2%, diagnosticado por ELISA III e
confirmado por RIBA.
Entretanto, estudo de coorte norte-americano mais recente(31), envolvendo 1 687
pacientes infectados pelo HIV, mostrou prevalência geral de 16,1% da co-
infecção por VHC.
No Brasil, estudo realizado na cidade de Campinas, SP(23) avaliou 232 pacientes
portadores de HIV em período de 3 anos, observando prevalência de anti-VHC de
54%.
Estudo retrospectivo realizado na cidade do Rio de Janeiro, RJ(9), analisando
202 pacientes com HIV, observou a presença de anti-VHC em 18 (8,9%), sendo que
destes, 33,3% eram UDI, e 22,2% hemotransfundidos.
No presente estudo, a prevalência de VHC em pacientes portadores de HIV foi de
38,2%, semelhante à descrita por SHERMAN et al.(30), LAUER e WALKER(18),
SORIANO et al (36). no estudo EuroSIDA, QUARANTA et al.(26) e maior que a
observada por FERRAZ et al.(9) e SHERMAN et al.(31) em seu estudo mais recente.
Apesar de ambos os vírus serem transmitidos por sangue contaminado, o VHC tem
10 vezes mais risco de ser transmitido em acidente de punção do que o HIV e é
adquirido mais facilmente por usuários de drogas injetáveis do que o HIV(17,
40). Estima-se que 0,3% dos indivíduos expostos a agulhas contaminadas com
sangue HIV-positivo serão infectados(10), comparados com 2% a 8% dos expostos
ao VHC(3, 22).
Dentre aqueles anti-VHC positivos, a principal categoria de exposição foi o uso
de drogas ilícitas injetáveis (75,3%), sendo ainda mais prevalente quando havia
associação entre HIV/VHB/VHC (85,7%).
É possível que os índices aqui observados estejam aquém da real prevalência de
co-infecção, já que existem flutuações no status sorológico e mesmo soro-
reversão (negativação do anti-VHC), sendo 2,5 vezes mais freqüente entre os co-
infectados por VHC/HIV, quando comparados com os monoinfectados pelo VHC(4). A
este respeito, deve-se observar que os estudos de FERRAZ et al.(9) e PAVAN et
al.(23) também não realizaram teste confirmatório.
Quanto ao VHB, é também importante o conhecimento epidemiológico da co-infecção
com o HIV, sendo o dano hepático e a posterior depuração viral mediados por
imunidade celular. A depleção das células CD4 que ocorre nos pacientes com HIV,
modifica a história natural da hepatite por VHB. Nos pacientes com HIV, há
grande replicação de VHB, com maior risco de evolução para cirrose e carcinoma
hepatocelular(20, 38).
Dentre os pacientes infectados pelo HIV por exposição sexual (homo ou
heterossexual), por UDI ou por transfusão de sangue ou hemoderivados, 95%
apresentavam evidência de infecção passada causada pelo VHB (anti-HBs ou anti-
HBc no soro), e cerca de 10% a 15% eram portadores crônicos (HBsAg positivo)
(11, 19).
No presente estudo, a prevalência de HBsAg (4,6%) foi semelhante à observada em
outros estudos brasileiros(9, 23), bem como ocorreu com a alta prevalência de
marcadores de infecção passada (26,0% anti-HBc positivos e 38,5% anti-HBs
positivos). Assim, no estudo de FERRAZ et al.(9), onde foram avaliados
retrospectivamente 211 pacientes portadores de HIV, 5,5% eram portadores de
HBsAg, 63,5% apresentavam evidência de infecção passada, e 10%, imunidade
adquirida por vacina. Anti-HBc isolado foi identificado em 20%.
Em outro estudo brasileiro(23), que avaliou 232 pacientes HIV positivos, o
HBsAg foi positivo em 5,3% dos casos. No entanto, marcadores de infecção
passada (anti-HBc e anti-HBs) estavam presentes em 44% e 35,3%,
respectivamente. No grupo que apresentava algum marcador para infecção pelo
VHB, 59 (54,1%) eram HSH. Foi menor, no entanto, que em estudos publicados na
literatura internacional. Assim, estudo espanhol(27) evidenciou HBsAg positivo,
entre HIV-positivos, em 58% dos HSH, em 27% daqueles que receberam transfusão,
em 21% dos heterossexuais e em 11% de UDI.
No presente estudo, dentre aqueles pacientes com HBsAg positivo, a principal
categoria de exposição foi HSH (50,0%), como também observado por PAVAN et al.
(23) e RODRIGUEZ-MENDEZ et al.(27).
Ressalta-se que naqueles monoinfectados com HIV (185 pacientes), o fator de
risco mais prevalente foi relacionamento heterossexual promíscuo ou com cônjuge
infectado por HIV, o que ocorreu em 83 pacientes (44,9%).
Conclui-se do presente estudo que, em nosso meio, a co-infecção VHB-HIV e VHC-
HIV é elevada, notadamente a VHC-HIV. Estes dados são de fundamental
importância, já que indicam obrigatoriedade de se solicitarem marcadores de
vírus das hepatites nos pacientes com HIV. Só assim procedendo teremos
condições de avaliar adequadamente esta população de pacientes, oferecendo
tratamento para aqueles que preencherem os critérios atuais e favorecendo,
assim, melhor sobrevida aos mesmos.