Influência da transfusão sanguínea no desenvolvimento de infecção em pacientes
com neoplasias malignas do sistema digestório
INTRODUÇÃO
Até há alguns anos, um dos maiores riscos da transfusão sangüínea homógena
estava na contaminação de sangue com diferentes vírus (HIV, hepatites,
citomegalovírus, Epstein-Barr, HTLV-I/II, etc.), agentes parasitários
(tripanossomíase, leishmaniose, plasmódios, etc.) e bactérias(1, 22, 23, 24).
Entretanto, as novas técnicas de seleção e depuração sangüínea, bem como maior
controle dos doadores possibilitou o declínio dessas complicações(1, 23).
Atualmente, as discussões estão mais voltadas para o risco de sepse associada a
fenômenos imunitários decorrente da transfusão(2, 3, 4, 5, 15, 21). Atribuem-se
à transfusão sangüínea alterações na função imunitária, resultando em
manifestações clínicas variadas, de acordo com a compatibilidade doador-
receptor(10, 21).
Alguns trabalhos mostraram maior sobrevida de pacientes transfundidos que
tiveram de ser submetidos a transplantes renais e cardíacos, bem como naqueles
com doença de Crohn e outras afecções auto-imunes(16, 19).
A transfusão também foi eficaz na prevenção de abortos recurrentes(6, 10, 22).
Por outro lado, as transfusões acompanham-se de maior índice de recidiva de
câncer colorretal, cervical e prostático(2, 15, 21, 22). As infecções pós-
operatórias pulmonares e urinárias foram mais freqüentes em transfundidos, nos
quais também foi assinalado retardo de cicatrização(21). Há ainda estudos
afirmando que pacientes aidéticos, ao receberem transfusão sangüínea, podem
sofrer progressão mais rápida da doença, diminuindo sua sobrevida e aumentando
a incidência de infecções por citomegalovírus e bacterianas, acelerando o
processo de caquexia(24).
Acredita-se que a aloimunização, a imunodepressão e a reação enxerto versus
hospedeiro contribuam para o surgimento de infecções(24). A aloimunização após
a transfusão de hemácias, é bastante comum, possibilitando o aparecimento de
aloanticorpos causadores de hemólise, em 1 para 6.000 casos, e reações fatais,
em 1 para 600.000. Já a aloimunização das plaquetas acompanhou-se de maior
mortalidade e de mais complicações, principalmente em pacientes
trombocitopênicos. Quanto ao plasma, casos de anafilaxia também podem surgir.
Embora propiciem alguns problemas graves, as complicações da aloimunização são
geralmente pouco significativas(24).
O sistema imunitário, por meio da atividade dos linfócitos "natural killer" e T
citotóxicos, ambos regulados por interações com citocinas, interleucinas (IL-2)
e interferon, possui importante papel na limitação da disseminação de células
malignas(21, 22). Com o avanço tecnológico, verificaram-se reações imunes
ocorridas após a hemotransfusão, que duraram até vários anos. Entretanto, os
mecanismos exatos que levam a tais mudanças ainda não estão totalmente
esclarecidos. Dentre eles há o aumento de citólise mediada por células T, o
aumento da síntese da interleucina 10, a ativação de linfócitos, transformações
de subgrupos linfocitários, o declínio das células apresentadoras de antígenos,
a redução da população de linfócitos B e T, a alteração dos linfócitos "natural
killer" e o aumento da taxa de linfócitos T supressores(7). Conseqüentemente,
diminui a resistência orgânica, aumenta o índice de infecções e, em presença de
neoplasias malignas, essa disseminação é maior e as recidivas são mais
freqüentes após transfusões(22, 24).
Outro efeito adverso bem conhecido é a reação enxerto versus hospedeiro,
distúrbio mediado por linfócitos imunocompetentes transfundidos, que reagem
contra o hospedeiro. Existem vários componentes sangüíneos que podem
desencadear essa reação. Pacientes imunodeprimidos são os mais susceptíveis,
assim como os prematuros, os com doenças auto-imunes, pacientes oncológicos e
receptores de medula óssea. Complicações também foram observadas em pacientes
sem comprometimento imunológico aparente. Doses baixas de radiação nos
componentes sangüíneos podem minimizar, mas não excluir totalmente o risco
dessa reação(24).
Alguns estudos indicam a infecção por vírus latente ativado como sendo
mecanismo pelo qual a transfusão sangüínea deprime a imunidade do paciente(24).
Outros afirmam que os maiores responsáveis por esse efeito são os componentes
leucocitários do sangue transfundido, tendo em vista que o risco de
contaminação pós-operatória e recidiva de câncer é menor após transfusão com
sangue filtrado que tenha menor quantidade de leucócitos, assim como após
transfusões de apenas concentrado de hemácias(2). A auto-hemotransfusão suprime
as adversidades da transfusão homóloga em pacientes oncológicos, embora, se
realizada em período inferior a 12 dias da operação, possa determinar riscos
hemodinâmicos e diminuir a função dos "natural killer"(15).
Diante da possibilidade de a transfusão sangüínea aumentar o risco de
infecções, há tendência para diminuição do número de hemotransfusões alogênicas
e aumento da doação autógena (auto-hemotransfusão)(14), assim como uso de
eritropoietina, elementos sangüíneos artificiais e hormônios estimuladores da
medula óssea(9, 11, 12, 13).
O objetivo do presente trabalho foi avaliar a transfusão sangüínea homógena
como possível fator relacionado à infecção em pacientes oncológicos.
PACIENTES E MÉTODOS
A presente pesquisa foi realizada de acordo com as recomendações da Declaração
de Helsinque e da Resolução nº 196/96 do Ministério da Saúde sobre pesquisa
envolvendo seres humanos(18) e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da
Universidade Federal de Minas Gerais.
Este estudo retrospectivo foi realizado com base em prontuários do Setor de
Oncologia da Santa Casa de Belo Horizonte, MG, tratados no período de agosto de
1992 a julho de 2001. Foram estudados aleatoriamente 400 pacientes acima de 18
anos de idade, de ambos os sexos, distribuídos em dois grupos (Tabela_1):
* grupo 1 (n = 200) - pacientes transfundidos
* grupo 2 (n = 200) - pacientes não-transfundidos durante o tratamento.
Todos tinham neoplasias malignas sólidas do sistema digestório. Foram excluídas
afecções hematológicas (linfomas). O período estudado foi superior a 6 meses,
independentemente da evolução de cada caso. A localização primária dos tumores
está apresentada na Tabela_2.
Pacientes com infestações e infecções decorrentes de procedimentos terapêuticos
invasivos (laparotomias, traqueostomias, drenagens, etc.) foram excluídos
devido à natureza duvidosa da patogênese do quadro séptico. Foram listadas
apenas as infecções que poderiam ter relação eventual com as transfusões
sangüíneas. Nos pacientes transfundidos, levou-se em conta apenas infecções
surgidas no período de 10 dias após a transfusão sangüínea. No grupo dos não-
transfundidos, consideraram-se apenas as infecções descritas no prontuário após
o acompanhamento clínico durante o período de 10 dias a partir do dia seguinte
à internação. Foram também excluídos os pacientes que receberam transfusão
sangüínea diferente das padronizadas no presente trabalho.
A realização de quimioterapia, radioterapia, bem como a execução de
procedimentos cirúrgicos em ambos os grupos foram também registradas.
Considerou-se apenas a transfusão de concentrados de hemácias padrão e de
plaquetas, incluindo os volumes transfundidos, não sendo computada a transfusão
de outros hemocomponentes (plasma) e hemoderivados (albumina, etc.).
Compararam-se os números de pacientes acometidos por infecção nos dois grupos e
a relação entre o surgimento do quadro séptico com idade, sexo, procedimento
cirúrgico e outras condutas intervencionistas realizadas, pelo teste qui
quadrado ou teste exato de Fisher, quando o valor esperado foi menor que 5.
Valores correspondentes a P <0,05 foram considerados significativos.
RESULTADOS
No grupo 1, de pacientes transfundidos, encontraram-se 76 homens e 124
mulheres, enquanto que o grupo 2, controle, foi constituído por 100 homens e
100 mulheres. Infecções foram registradas em 31 (15,5%) pacientes transfundidos
e em 28 (14%) não-transfundidos. A diferença entre as incidências de sepse nos
dois grupos não foi significativa (P = 0,6726) (OR = 1,13; 0,63 <OR <2,03). Dos
31 pacientes infectados do grupo 1, 14 eram do sexo masculino e 17 do sexo
feminino, enquanto que no grupo 2 foram 16 homens e 12 mulheres com infecção.
Não houve diferença da incidência de infecção entre os sexos, tanto para o
grupo 1 (P = 0,3727 quanto para o grupo 2 (P = 0,4161).
O volume médio de concentrados de hemácias no grupo 1 foi de 710 mL nos
pacientes infectados e de 680 mL nos não infectados (P >0,05).
Transfusões de plaquetas foram necessárias em 22 (11,2 %) dos pacientes.
Desses, 5 apresentaram infecção e 17 não tiveram quadro séptico durante os 10
dias de acompanhamento. A relação entre transfusão de plaquetas e infecção nos
pacientes transfundidos não foi significativa (P = 0,32) (OR = 1,72; 0,50 <OR
<5,55).
Os dados referentes à idade dos 400 pacientes oncológicos analisados encontram-
se na Tabela_1. Não houve diferença na incidência de infecção em relação a esse
parâmetro, tanto no grupo de pacientes transfundidos (P = 0,1698), quanto no de
não-transfundidos (P = 0,3986). Observou-se, entretanto, que dos 31 pacientes
transfundidos que apresentaram infecção, 19 (61,29%) tinham idade superior a 45
anos (P = 0,0670). Dos 28 pacientes não-transfundidos que tiveram infecção, 24
(85,71%) estavam com mais de 45 anos (P = 0,1764). O volume médio de
concentrados de hemácias transfundidos nos pacientes infectados foi de 830 mL,
enquanto que os sem infecção receberam em média 750 mL. Essa diferença também
não foi significativa (P = 0,3452).
A Tabela_2 mostra a localização primária das neoplasias malignas nos pacientes
avaliados. Observa-se a predominância de câncer gástrico, de esôfago e de cólon
em ambos os grupos. Não houve diferença na incidência de infecções em relação à
localização do câncer e à transfusão sangüínea em nenhum dos tumores (P >0,05).
Em relação à natureza das infecções, em ambos os grupos predominaram pneumonia,
infecção urinária e monilíase oral (Tabela_3).
O tipo de tratamento adotado e sua possível relação com o surgimento da
infecção estão apresentados na Tabela_4. Nessa comparação também não se
encontrou diferença entre os pacientes transfundidos e os não-transfundidos (P
>0,05).
DISCUSSÃO
Os resultados do presente trabalho aparentemente contrariam informações da
literatura que apontam a hemotransfusão como causa de imunodepressão e
conseqüente maior incidência de infecções em pacientes oncológicos(2, 3, 4, 5,
15, 21, 22). Não se avaliou o sistema imunitário na presente série, entretanto,
caso tenha existido algum efeito da transfusão sobre esse sistema, ele não foi
suficiente para determinar maior quantidade de infecções nesses doentes
oncológicos.
Nos pacientes acima de 45 anos de idade, em ambos os grupos, houve maior número
de infecções. Esse resultado está de acordo com os dados da literatura, que
apontam a relação entre o avançar da idade e a queda da resposta imune, com
conseqüente maior tendência à infecção(3, 17). Contudo, ao se compararem as
infecções encontradas em ambos os grupos, nas diferentes faixas etárias, não
foi encontrada diferença. Portanto, mesmo nessa situação, a transfusão
sangüínea não foi fator marcante.
Em estudo piloto deste trabalho, verificou-se que a maior parte dos pacientes
com afecções oncológicas que ficavam internados por períodos superiores a 10
dias, evoluíam com complicações decorrentes da doença de base ou do tratamento.
Para evitar que os doentes desta pesquisa tivessem que ser excluídos por co-
morbidades, limitou-se o acompanhamento da casuística a 10 dias.
Quanto às localizações primárias dos cânceres apresentadas na Tabela_2, é
importante salientar que não foram estudadas as metástases. Uma vez excluídos
os tumores que comprometiam diretamente o sistema imune e que, certamente,
causariam imunodepressão e aparecimento de infecções, é possível que as
neoplasias pesquisadas no presente estudo não tenham sido responsáveis por
infecções posteriores(8, 25). Por ser estudo retrospectivo baseado em
prontuários, a não descrição de metástases não significa que elas não possam
ter existido e, por limitações propedêuticas, não terem sido evidenciadas.
Em relação às infecções encontradas na Tabela_3, é importante ressaltar que,
por ser estudo retrospectivo, avaliaram-se apenas aquelas relatadas nos
prontuários, porém eventuais subnotificações podem ter ocorrido nos dois
grupos. O local da infecção não parece ter tido relação com o tipo ou região da
neoplasia. Quanto à natureza e a gravidade desses quadros sépticos, foram
maiores nos pacientes sem transfusão. Esse fato reforça a hipótese de que a
hemotransfusão talvez não seja fator destacado na etiopatogenia da sepse.
Sabe-se que há relação entre os diversos processos terapêuticos adotados, como
radioterapia, quimioterapia e cirurgia, com a imunodepressão do paciente
oncológico(7, 8, 20, 25, 26). Todavia, não se pode afirmar que a natureza da
terapêutica possa ter sido causadora isolada dessa imunodepressão e conseqüente
infecção em ambos os grupos. No grupo de pacientes transfundidos, embora tenha
havido maior número de procedimentos cirúrgicos aliados à quimioterapia, houve
menor índice de infecções do que no grupo de pacientes sem transfusão. Esse
resultado ressalta que a terapêutica adotada na casuística desta série não foi
importante para o surgimento de infecção.
CONCLUSÕES
É pertinente concluir que no paciente com neoplasia maligna do sistema
digestório, a transfusão homógena de hemácias não representou um fator de risco
para o surgimento de infecções.