Carcinoma hepatocelular: impacto do tempo em lista e das formas de tratamento
pré-operatório na sobrevida do transplante de fígado cadavérico na era pré-MELD
em um centro no Brasil
ARTIGO ORIGINAL ORIGINAL ARTICLE
Carcinoma hepatocelular: impacto do tempo em lista e das formas de tratamento
pré-operatório na sobrevida do transplante de fígado cadavérico na era pré-MELD
em um centro no Brasil
Hepatocellular carcinoma: impact of waiting list and pre-operative treatment
strategies on survival of cadaveric liver transplantation in pre-MELD era in
one center in Brazil
Alexandre Coutinho Teixeira de Freitas; Mônica Beatriz Parolin; Lucinei
Stadnik; Júlio Cezar Uili Coelho
Serviço de Transplante Hepático do Hospital de Clínicas da Universidade Federal
do Paraná, Curitiba, PR
Correspondência
INTRODUÇÃO
O carcinoma hepatocelular (CHC) é a sétima causa de óbito relacionada à
neoplasia(15). Sua incidência aumentou em 71% nos Estados Unidos, no período de
20 anos, compreendido entre 1976 e 1995, passando de 1,4/100.000 para 2,4/
100.000 habitantes(4, 6). Em aproximadamente 90% dos casos existe infecção
pelos vírus da hepatite B ou C. O aumento da incidência do CHC está relacionado
ao aumento da incidência de hepatite C observado no mesmo período(8). Pacientes
cirróticos com CHC são freqüentemente tratados através do transplante hepático
(Tx), com potencial de cura para ambas as doenças(15, 16). Existe grande
preocupação relacionada à sobrevida desses pacientes. A presença de neoplasia
associada à imunossupressão no período pós-transplante apresenta risco de
disseminação local e à distância, com resultados desastrosos. Isso foi
confirmado através dos estudos iniciais sobre o Tx, em que a recurrência da
neoplasia ocorreu em 32% a 54% dos casos e a sobrevida em 5 anos foi menor do
que 40%(18). Esses estudos serviram de embasamento para determinação de limites
à indicação de Tx em doentes com CHC. Atualmente, resultados excelentes em
termos de sobrevida são obtidos para pacientes com nódulos solitários até 5 cm
ou até três nódulos menores que 3 cm(1, 13, 14).
O objetivo desse estudo foi analisar a sobrevida de pacientes cirróticos com
CHC submetidos a Tx cadavérico em relação a pacientes submetidos a transplante
por outras indicações.
MÉTODOS
Foram revisados os prontuários dos pacientes submetidos a Tx cadavérico no
Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, PR, no
período entre 5 de janeiro de 2001 e 17 de fevereiro de 2006. As seguintes
informações do receptor foram coletadas: sexo, idade, causa da cirrose,
presença ou não de CHC, sobrevida do paciente em 3 meses e em 1 ano,
classificação de Child-Pugh no momento do transplante, escore do MELD no
momento do transplante, tempo de isquemia morna, número de unidades de
concentrado de hemácias transfundidas durante o transplante, tempo de
permanência na UTI e tempo de internação. Em relação ao doador, foram coletados
dados referentes ao sexo, idade e ao tempo de isquemia fria. Foram excluídos
pacientes com dados incompletos no prontuário.
Os pacientes em lista de espera para transplante cadavérico foram submetidos a
rastreamento para CHC a cada 6 meses, através de ecografia abdominal e dosagem
de alfa-fetoproteína. O diagnóstico de CHC foi realizado através dos critérios
de Barcelona(2, 3): a) para nódulos maiores que 2 cm, através da associação de
dois exames de imagem ' tomografia, ressonância magnética ou arteriografia '
demonstrando hipervascularização arterial no nódulo ou um exame de imagem
demonstrando hipervascularização arterial associado à alfa-fetoproteína maior
que 400 µg/L; b) para nódulos entre 1 cm e 2 cm, através de biopsia hepática
guiada ' nos casos com resultado negativo para malignidade, os pacientes foram
submetidos a seguimento com exames de imagem; c) para nódulos menores que 1 cm,
seguimento com exames de imagem. Pacientes com diagnóstico de CHC foram
submetidos a tratamento com quimioembolização ou alcoolização, dependendo da
localização, número de lesões e disponibilidade do método. O Tx foi realizado
somente nos pacientes que apresentaram nódulo único com diâmetro menor ou igual
a 5 cm ou até três nódulos menores ou iguais a 3 cm cada. Não foram
transplantados pacientes com critérios expandidos, que permaneceram em terapia
com alcoolização ou quimioembolização, ou foram encaminhados para quimioterapia
sistêmica. Foram analisados o tempo entre o diagnóstico de CHC e a realização
do transplante, o número e a localização dos nódulos, o tipo de tratamento
local realizado, o número de sessões, o maior diâmetro dos nódulos nos exames
de imagem no momento do diagnóstico, nos últimos exames de imagem antes do
transplante e no exame anatomopatológico do explante.
Foi realizada análise univariada da sobrevida ' em 3 meses e 1 ano ' de acordo
com a divisão dos pacientes em 2 grupos: a) grupo 1 ' não-acometidos de CHC; e
b) grupo 2 ' acometidos de CHC. Esses dois grupos também foram analisados em
relação à idade média e sexo, causa da cirrose, número médio de unidades de
concentrado de hemácias transfundidas, tempo médio de permanência na UTI, tempo
médio de internação, idade média e sexo do doador e o tempo médio de isquemia
fria. Para análise estatística, em relação à causa da cirrose, os pacientes
foram divididos em três grupos: grupo 1 ' doença colestática; grupo 2 -
hepatite C; grupo 3 ' outras causas. Nas doenças colestáticas foram incluídos
os casos de cirrose biliar primária, colangite esclerosante primária, cirrose
biliar secundária e doenças hepáticas císticas. Nas outras causas foram
incluídos casos de cirrose alcoólica, hepatite auto-imune, cirrose
criptogênica, hepatite B, polineuropatia amiloidótica e associação de cirrose
alcoólica e hepatite B.
Para análise do maior diâmetro médio dos nódulos foi utilizado o teste t. Para
a análise univariada relacionada à sobrevida, foi utilizado o método de Kaplan-
Meier com análise estatística pelo teste de Log-Rank. Para a análise
comparativa dos dados entre acometidos e não-acometidos de CHC foi utilizado o
teste t para médias e o teste do qui-quadrado para proporções. Foi considerado
o nível de significância de 5% (P< 0,05).
RESULTADOS
Foram analisados 146 casos de Tx, dos quais 75 foram excluídos devido a dados
incompletos no prontuário e 71 foram incluídos no estudo: a) grupo 1 ' não-
acometidos de CHC (n = 59); b) grupo 2 ' pacientes com CHC (n = 12). Não houve
diferença em relação à idade média dos receptores e doadores nos dois grupos:
48,6 ± 13 anos e 30,3 ± 13 anos nos doentes com CHC e de 54,1 ± 7 anos e 34,6 ±
12 anos nos não-acometidos. Os dois grupos foram iguais em relação ao sexo dos
doadores e receptores, tempo médio de permanência na UTI, tempo médio de
internação, tempo médio de isquemia fria e de isquemia morna. A Tabela_1 contém
dados referentes aos receptores. Os dois grupos foram diferentes em relação à
causa da cirrose. No grupo 1 foi observada maior percentagem de pacientes com
diagnóstico de cirrose de outras causas; no grupo 2 foi observada maior
percentagem de pacientes com diagnóstico de hepatite C. O índice médio do MELD
foi significantemente maior nos pacientes não-acometidos por CHC (grupo 1), o
mesmo ocorrendo com o índice da classificação de Child-Pugh. Nos não-acometidos
por CHC observou-se maior percentagem de pacientes classificados como Child-
Pugh B e C e nos acometidos por CHC maior percentagem de classificados como
Child-Pugh A. A média de concentrado de hemácias transfundidas foi maior no
grupo 1 em relação ao grupo 2.
O tempo médio decorrido entre o diagnóstico de CHC e a realização do Tx foi de
19,3 ± 16 meses (variação de 1 até 48 meses). No total foram detectados 21
nódulos: em cinco pacientes foi detectado 1 nódulo, em cinco foram detectados 2
e em dois, 3. Em 11 casos estes estavam localizados somente no lobo hepático
direito, em 1 caso havia apenas um no lobo direito e outro no lobo esquerdo. O
diâmetro médio dos nódulos foi de 3,3 ± 1 cm no momento do diagnóstico. Oito
pacientes foram submetidos a média de 2,5 sessões de quimioembolização
(variação de 1 até 6 sessões). Dois pacientes foram submetidos a
quimioembolização (2 e 3 sessões) associada à alcoolização (5 sessões cada um).
Os últimos exames de imagem realizados antes do transplante, mostraram remissão
total dos nódulos em três casos com nódulo único. Houve diminuição do diâmetro
médio dos nódulos para 2,4 ± 1 cm (P= 0,02) após a terapia local. Dois
pacientes não foram submetidos a terapia local: o primeiro porque o transplante
foi realizado 1 mês após o diagnóstico de CHC, o segundo porque a biopsia
hepática realizada no momento da detecção de dois nódulos foi negativa. Esse
paciente foi submetido a acompanhamento com exames de imagem seriados, havendo
crescimento de 2 cm no diâmetro de um dos nódulos nos 33 meses de seguimento
até o transplante. O exame anatomopatológico do explante mostrou carcinoma CHC
em um nódulo e colangiocarcinoma no outro. O exame anatomopatológico dos outros
pacientes confirmou o diagnóstico de CHC em oito casos. Os nódulos apresentaram
diâmetro médio de 2,8 ± 1 cm, sem diferença estatística em relação ao diâmetro
no momento do diagnóstico (P= 0,13) e em relação ao diâmetro após a terapia
local (P= 0,16). Em três casos observou-se remissão completa. Invasão
angiolinfática foi observada em um caso. Invasão capsular não foi observada nos
casos analisados. Dos oito casos de CHC, dois foram descritos como grau III da
classificação de Edmondson-Steiner e seis como grau II.
A sobrevida geral em 3 meses e 1 ano (Figuras_1 e 2) foi de 77,4% e 74,6%,
respectivamente. Os pacientes com CHC apresentaram sobrevida em 3 meses
significantemente maior que os não-acometidos (100% e 72,8%, respectivamente, P
= 0,04), conforme a Figura_3. O mesmo aconteceu em relação à sobrevida em 1 ano
(100% e 69,4% respectivamente, P = 0,02), conforme a Figura_4.
DISCUSSÃO
O Tx é atualmente a melhor alternativa para tratamento da cirrose hepática
associada ao CHC, devido a possibilidade de resolução das duas doenças(11). A
remoção do fígado doente evita a ocorrência de tumores sincrônicos e
metacrônicos. Inicialmente, os critérios para indicação de transplante em
acometidos por CHC eram mais amplos, o que gerou resultados ruins em termos de
sobrevida. Atualmente, o critério mais aceito para indicação é restrito a
pacientes com doença precoce: nódulo único até 5 cm de diâmetro ou até três
nódulos com até 3 cm cada um(1, 14).
Nessa situação, diversos estudos na literatura têm demonstrado resultados que
variam de 70% a 90% para a sobrevida em 1 ano e de 49% a 75% para a sobrevida
em 5 anos(1, 7, 8, 10, 13, 21). Segundo dados da United Network for Organ
Sharing - UNOS, a sobrevida em 1 ano de doentes com CHC é igual a de não-
acometidos(20). As estatísticas envolvendo os transplantes realizados entre
2002 e 2004, mostram sobrevida em 1 ano de 86,3% em 1.066 pacientes cirróticos
com doença maligna e de 85,8% em 6.543 pacientes com cirrose hepática não-
colestática. No entanto, há diferença da sobrevida em 3 anos dos transplantes
realizados entre 1999 e 2002 e da sobrevida em 5 anos dos transplantes
realizados entre 1997 e 2000. Em 491 doentes com cirrose e doença maligna a
sobrevida em 3 anos foi de 69,8%, significantemente menor que a sobrevida de
76,3% observada em 6.983 pacientes com cirrose de origem não-colestática. A
sobrevida em 5 anos foi de 57,6% em 265 pacientes com cirrose e doença maligna
e de 69,2% em 5.218 com cirrose não-colestática.
Neste estudo observou-se sobrevida geral de 74,6% em 1 ano. A análise dos
doentes com CHC mostrou sobrevida de 100%, significantemente maior em relação
aos não-acometidos. A análise dos dois grupos demonstrou diferença no estádio
evolutivo da cirrose hepática através do escore do MELD e da classificação de
Child-Pugh. Nos acometidos de CHC eles foram significantemente menores em
relação aos outros pacientes. O diagnóstico de CHC, ainda que em fase evolutiva
precoce da cirrose sem comprometimento importante da função hepática, foi o
motivo da listagem desses pacientes. Os não-acometidos de CHC foram listados
mais tardiamente, somente após a verificação de evolução da cirrose,
apresentando número significativo de pacientes na classe C de Child e com
índice médio do MELD mais elevados. O transplante precoce nos doentes com CHC
proporcionou ainda menor necessidade de transfusão sangüínea no peroperatório,
fator esse relacionado intimamente com o grau de hipertensão portal e de
alteração de fatores de coagulação.
Pacientes com escore do MELD mais baixos ou com classificação de Child-Pugh A
ou B apresentam melhor prognóstico após a realização de Tx(5, 21). Em um
estudo, 1.472 pacientes foram estratificados de acordo com o índice do MELD em
três grupos: a) MELD de 6 a 15; b) MELD 16 a 25; c) MELD maior que 25(5). A
sobrevida em 1 ano e em 10 anos foi de 86%, 84%, 75% e 62%, 59%, 45%,
respectivamente, havendo diferença significante entre os grupos. Outro estudo
com 8.102 pacientes demonstrou que incremento de 10 pontos no escore do MELD
está associado ao aumento de 39% na mortalidade em 1 ano após o transplante(9).
A vantagem conferida pela realização do transplante em fase mais precoce da
doença reflete-se na sobrevida em 1 ano. No entanto, após 3 anos, pacientes com
CHC apresentam diminuição da sobrevida relacionada à recidiva da neoplasia ou
metástases à distância(19). A sobrevida livre de recidiva da neoplasia está
relacionada ao estádio pós-operatório realizado na análise patológica do
explante(19). Estudo mostrou que 43% dos pacientes apresentaram-se fora dos
critérios de Milão na análise do explante, a despeito da análise pré-operatória
com exames de imagem incluir os doentes nesses critérios(19). A sobrevida livre
de neoplasia em 3 anos foi de 67%, significantemente menor que a sobrevida dos
pacientes que foram classificados dentro dos critérios de Milão no pós-
operatório (87%)(19).
A grande dificuldade é a obtenção de um órgão em estádio evolutivo precoce da
cirrose. No Brasil, até recentemente, na era pré-MELD, os critérios de alocação
de órgãos privilegiavam os receptores pela ordem de inscrição na lista de
espera. Devido à carência de órgãos no país, o período de espera nessa situação
era prolongado, ocorrendo progressão da cirrose e do CHC e realização do
transplante em condições menos favoráveis. O risco de progressão do CHC durante
o período em lista de espera, ultrapassando-se os critérios para indicação do
transplante varia, em alguns estudos, de 20% a 50%(2, 10). Segundo dados da
Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos -ABTO, no ano de 2005 foram
realizados no Brasil 956 Tx(17). Destes, 763 nos Estados de São Paulo, Rio de
Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul e Pernambuco. No entanto, a lista de espera
em janeiro de 2006 nesses Estados era de 6.501 pacientes. Em uma estimativa
simplista, o período de espera seria de 8,5 anos. Atualmente, com a utilização
do MELD como critério de distribuição de órgãos, a probabilidade de realização
de transplante em fase favorável de evolução da cirrose é maior. Esse sistema
prevê a necessidade mais urgente de um órgão nos doentes com CHC, conferindo
pontuação extra no índice do MELD.
Nos Estados Unidos, o uso do MELD como critério de distribuição de órgãos
elevou o número de transplantes em doentes com CHC de 3,1% para 22,2%(9). No
entanto, apesar do transplante ocorrer em fase mais precoce da evolução da
cirrose, a sobrevida em 1 ano de acometidos de CHC foi igual a dos não-
acometidos, tanto na era pré-MELD quanto na era pós-MELD. Infelizmente os
autores não testaram a sobrevida dos doentes com CHC na era pré-MELD em relação
a era pós-MELD.
Terapia local com alcoolização, quimioembolização, ablação por radiofreqüência,
entre outras, pode diminuir a progressão da neoplasia(13). Isso permite período
maior de espera em lista. Observou-se nesse estudo, estabilização da doença com
a utilização de quimioembolização ou quimioembolização associada à
alcoolização. Inclusive, em três casos, houve remissão completa da doença
evidenciada ao exame anatomopatológico do explante. Dos 12 pacientes com
hepatocarcinoma, 8 apresentaram classificação de Child-Pugh B e 4 Child-Pugh A.
Estes, apesar da pontuação baixa nessa classificação, apresentavam sinais de
hipertensão porta. Este motivo, associado ao fato desses quatro pacientes terem
hepatite C e de os nódulos não serem periféricos, motivou a realização do Tx ao
invés de ressecção após a boa evolução decorrente de terapia local.
O Tx intervivos é alternativa muito utilizada no Brasil devido ao longo tempo
em lista de espera. Em 2005, dos 956 transplantes hepáticos realizados, 197
(20,6%) foram com doador vivo(16). O Brasil é atualmente um dos países com
maior experiência na realização desse procedimento no mundo. Nos Estados
Unidos, em 2005, dos 6.443 transplantes realizados, 6.120 foram cadavéricos e
323 (5%) foram intervivos(20). Doentes com CHC se beneficiam do curto tempo de
espera em lista, não havendo necessidade de terapia local em muitos casos.
Grande limitação é imposta pelo risco ao doador. Espera-se que, com a
introdução do MELD como critério de alocação de órgãos no Brasil, ocorra
incremento do número de transplantes cadavéricos realizados para doentes com
CHC, à semelhança do que ocorreu nos Estados Unidos, diminuindo a necessidade
de transplante intervivos.
Os resultados do presente estudo indicam que pacientes cirróticos, acometidos
de CHC, apresentam maior sobrevida em 3 meses e em 1 ano em relação aos não-
acometidos. Isso está associado à realização do transplante em estádio de
evolução mais precoce da cirrose.