Perfil clínico dos membros da associação dos celíacos do Brasil: regional de
Santa Catarina (ACELBRA-SC)
ARTIGO ORIGINAL
INTRODUÇÃO
A doença celíaca é uma afecção inflamatória do intestino delgado associada à
intolerância permanente ao glúten, que ocorre em indivíduos geneticamente
susceptíveis(24).
No passado era tida como rara; entretanto, recentes estudos populacionais têm
demonstrado prevalência entre 1/120 e 1/300 na população geral, tanto européia
quanto norte-americana(12). No Brasil, estudos recentes entre doadores de
sangue demonstraram prevalência de 1/681(16), 1/273(31) e até 1/214(35),
sugerindo que esta também não é doença rara em nosso país.
Com o objetivo de conhecer melhor as características dessa doença, ainda pouco
estudada em nosso meio, desenvolveu-se um projeto de pesquisa visando
caracterizar o perfil clínico e epidemiológico dos membros da Associação de
Celíacos do Brasil ' Regional de Santa Catarina (ACELBRA-SC).
LITERATURA
A doença celíaca é causada por uma resposta imunológica inapropriada,
geneticamente determinada, contra antígenos presentes no glúten do trigo e
proteínas similares da cevada e do centeio(33). Afeta, principalmente, as
porções proximais do intestino delgado, podendo, nos casos mais graves,
estender-se até o íleo e o cólon(10). Os achados anatomopatológicos típicos
caracterizam-se por uma mucosa intestinal plana, com vilosidades atrofiadas ou
ausentes, hiperplasia de criptas e aumento do número de linfócitos intra-
epiteliais(34).
Devido à existência de ampla gama de variações na intensidade, tanto das
manifestações clínicas quanto das alterações histopatológicas, em 1997, MÄKI e
COLLIN(29) criaram o conceito de iceberg da doença celíaca. Sua teoria
explicaria por que elevadas taxas de prevalência estimada com base em testes
sorológicos vêm sendo encontradas em populações predominantemente
assintomáticas, como doadores de sangue(16).
De acordo com MÄKI e COLLIN(29), o iceberg da doença celíaca conteria em sua
base submersa, clinicamente invisível, todos os indivíduos sadios geneticamente
susceptíveis à doença os com haplotipos HLA DQ2 ou DQ8(25, 33). Avançando em
direção ao topo do iceberg, encontra-se a chamada doença celíaca latente,
característica de indivíduos clinicamente assintomáticos e com arquitetura
intestinal normal, em que alterações histológicas de graus variáveis podem ser
induzidas por uma dieta rica em glúten(12). Em seguida, ter-se-ía a forma
silenciosa da doença, caracterizada pelo achado de alterações histopatológicas
típicas em indivíduos clinicamente assintomáticos. Finalmente, no topo do
iceberg, seria encontrada a doença celíaca clinicamente sintomática,
respondendo por apenas pequena parcela do espectro total da doença(12).
A doença celíaca clinicamente manifesta, por sua vez, pode exibir amplo
espectro de apresentações, que foram tradicionalmente divididas entre a forma
clássica e a forma não-clássica da doença. A primeira geralmente se manifesta
nos primeiros anos de vida com quadro de diarréia crônica, vômitos,
irritabilidade, falta de apetite, déficit de crescimento, distensão abdominal,
diminuição do tecido celular subcutâneo e atrofia da musculatura glútea(41).
Apesar de ter sido considerada, por muito tempo, como exclusiva das crianças,
estudos mostram que a doença tem sido cada vez mais diagnosticada em adultos
(14), nos quais predomina a forma não-clássica da doença(49). Esta já tem sido,
inclusive, considerada a forma de apresentação mais freqüente, segundo alguns
autores(49).
A forma não-clássica, ou atípica, caracteriza-se por quadro mono ou
paucissintomático, no qual as manifestações digestivas estão ausentes ou,
quando presentes, ocupam segundo plano(41). Essa forma, geralmente, se
apresenta mais tardiamente na infância ou idade adulta e caracteriza-se por
manifestações como: baixa estatura, anemia por deficiência de ferro refratária
a ferroterapia oral(20, 38), constipação intestinal, hipoplasia do esmalte
dentário, osteoporose e esterilidade(41). O espectro de possíveis manifestações
atípicas da doença celíaca vem se ampliando constantemente com a descrição de
novos achados, como a estomatite aftosa(44) e distúrbios neurológicos e
psiquiátricos(5, 27).
Além da descrição das numerosas formas atípicas de apresentação da doença,
também têm sido descritas várias condições a ela associadas. Essas incluem: a
síndrome de Down(48), deficiência seletiva de IgA(22), diabetes mellitus tipo I
(30), hipotireoidismo(40), intolerância à lactose(47), intolerância à proteína
do leite de vaca, dermatite herpetiforme(10), infertilidade(39), abortos de
repetição(17), uveíte, osteoporose e osteopenia(23, 32), entre outras.
Grande parte dessas descobertas, como já foi dito, foi graças ao
desenvolvimento de testes sorológicos sensíveis e específicos, que permitiram o
rastreamento da doença celíaca em populações selecionadas. O primeiro desses
testes, introduzido no início dos anos 80, consistia na dosagem sérica de
imunoglobulinas IgA e IgG contra a gliadina (a fração etanol-solúvel do
glúten). Infelizmente, esses testes apresentavam moderada sensibilidade (75%-
90% para a IgA anti-gliadina e 69%-85% para a IgG) e especificidade (82%-95%
para a IgA e 73%-90% para a IgG)(13). Em 1983, CHORZELSKI et al.(8) detectaram
no soro de pacientes com doença celíaca e dermatite herpetiforme um auto-
anticorpo dirigido contra a matriz de colágeno de tecidos humanos e de macacos,
que foi denominado anti-endomísio. Desde então, sua dosagem tem sido
reconhecida como um marcador sensível e específico para a enteropatia sensível
ao glúten da doença celíaca e da dermatite herpetiforme, com valores de
sensibilidade entre 85% e 98% e de especificidade entre 97% e 100%(8). Seus
valores demonstraram, ainda, estarem relacionados com o grau de atividade da
doença, o que os tornou valiosos indicadores de resposta a uma dieta isenta de
glúten(8). Recentemente, descobriu-se ser a transglutaminase tecidual o auto-
antígeno contra o qual são dirigidos os anticorpos anti-endomísio(26). A partir
de então, a detecção de anticorpos anti-transglutaminase tornou-se o mais novo
teste sorológico de rastreamento da doença celíaca, com valores de
sensibilidade e especificidade entre 90%-98% e 97%-100%, respectivamente(13).
Ainda que o diagnóstico de doença celíaca possa ser sugerido pelas
manifestações clínicas, presença de doenças associadas ou testes sorológicos e
laboratoriais, sua confirmação somente se dará pela demonstração das alterações
histopatológicas típicas em biopsias do intestino delgado, que permanecem como
o padrão-ouro para o diagnóstico(34). De acordo com os Critérios Revisados para
o Diagnóstico da Doença Celíaca, da Sociedade Européia de Gastroenterologia,
Hepatologia e Nutrição Pediátrica (ESPGHAN), a obtenção de uma biopsia
intestinal anormal na presença de sintomas ou testes sorológicos sugestivos,
seguida de resposta clínica ou sorológica favorável na vigência de dieta isenta
de glúten é considerada suficiente para confirmar o diagnóstico, desde que
outras causas de atrofia vilositária sejam excluídas(13). Nos casos em que o
diagnóstico é duvidoso, recomenda-se que, após um período de restrição de
glúten, este seja reintroduzido na dieta, a fim de observar o surgimento de
alterações clínicas, sorológicas ou histológicas típicas que confirmem o
diagnóstico ou o afastem definitivamente(13).
Tantos cuidados no estabelecimento do diagnóstico de doença celíaca são
importantes porque, uma vez estabelecido, este implicará na adoção de dieta
totalmente isenta de glúten de forma definitiva e permanente. A não-aderência à
dieta, mesmo que não leve ao surgimento de sintomas, implica no risco de
complicações a longo prazo, como o linfoma intestinal não-Hodgkin(6),
neoplasias malignas do intestino delgado e do fígado(36), além de deficiências
de inúmeras vitaminas e minerais.
O distúrbio metabólico mais freqüente na doença celíaca é a diminuição da massa
óssea, pela má absorção de cálcio e vitamina D. Em crianças, isso pode levar ao
raquitismo, enquanto em adultos levará a diferentes graus de osteopenia e
osteoporose(23, 32), aumentando o risco de fraturas, especialmente em idosos
(45).
Uma vez que a doença celíaca é afecção relativamente comum e tem potencial para
levar a complicações graves, salienta-se a importância de estudos nessa área,
especialmente nos países da América, onde a doença era tida como rara. Recentes
pesquisas têm revelado o quão subdiagnosticada ainda é em nosso continente,
mesmo em países desenvolvidos, como a América do Norte. Antes do surgimento de
testes sorológicos de rastreamento, a prevalência estimada da doença celíaca
naquele país era de 1:4.600 habitantes; entretanto, com o rastreamento com
anticorpos anti-endomísio em doadores de sangue, descobriu-se que esta
prevalência pode ser muito maior ' de 1:250 a 1:300 habitantes(18). Esses dados
levam a concluir que grande número de celíacos, atualmente, ainda permanece sem
diagnóstico, o que provavelmente decorra tanto do alto índice de apresentações
atípicas, quanto do baixo índice de suspeita por parte dos médicos. Dessa
forma, reforça-se a importância de se conhecerem as características específicas
de apresentação dessa doença em nosso meio, pois somente através da
identificação das suas várias formas de apresentação clínica e das potenciais
doenças associadas é que se chegará à suspeita do seu diagnóstico.
Como seria muito difícil ter acesso a toda a população de celíacos de
determinada área com o intuito de estudá-la, uma estratégia que pode ser
utilizada para este fim é a análise de um conjunto de indivíduos já
diagnosticados, agrupados em fonte sabidamente conhecida. Amostra relativamente
fácil de se acessar são os membros de uma associação de pacientes com a doença.
Esse tipo de abordagem foi recentemente utilizado nos Estados Unidos, em estudo
de caráter nacional(18) e também no Estado de São Paulo, entre os membros da
Associação de Celíacos do Brasil (ACELBRA) daquele Estado(42, 43). No presente
estudo, a mesma estratégia foi adotada, com o intuito de determinar o perfil
clínico dos membros catarinenses da Associação dos Celíacos do Brasil (ACELBRA-
SC).
MÉTODO
Tratou-se de estudo observacional descritivo transversal, baseado em amostra
não-probabilística extraída dos 506 membros da ACELBRA-SC no ano de 2004. Todos
os associados foram convidados a participar da pesquisa por meio de carta
contendo: 1) folha de apresentação do projeto de pesquisa; 2) questionário
abordando diversos aspectos da doença (Figura_1); 3) Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido (TCLE); 4) envelope selado e endereçado para resposta.
O questionário inicialmente elaborado foi submetido a avaliação da diretoria da
ACELBRA-SC e, então aplicado, a título de teste, aos membros presentes em uma
das reuniões. Após essa avaliação inicial, o questionário definitivo foi
elaborado, impresso (Figura_1) e enviado aos associados durante o mês de
setembro de 2004.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da
Universidade Federal de Santa Catarina.
Foram incluídos no estudo todos os associados que reenviaram o questionário
respondido (parcial ou totalmente) e o TCLE devidamente preenchido e assinado
dentro do período de 90 dias após a postagem. Foram excluídos aqueles que
afirmaram não serem celíacos e os que não possuíam biopsia da segunda porção
duodenal, confirmando o diagnóstico da doença.
Os dados coletados foram digitados em planilha do tipo Excel® e analisados com
o auxílio do programa Statistica® 6.0.
RESULTADOS
Das 506 cartas enviadas, 33 (6,5%) retornaram aos pesquisadores devido à
mudança ou incompletude do endereço. Retornaram 173 cartas como resposta (34%),
dessas foram excluídas 9 por falta do TCLE, 1 por falta de identificação do
remetente e 2 pelo fato de os associados afirmarem não serem celíacos. Das 161
cartas que restaram, 16 (10%) eram de associados que não possuíam biopsia
confirmando a doença, tendo sido, por isso, também excluídas. Os resultados que
se seguem fazem referência aos 145 membros finalmente incluídos na pesquisa,
correspondendo a 28,7% do total de membros da ACELBRA-SC na ocasião.
Com o objetivo de avaliar a representatividade da amostra em relação ao total
de membros da ACELBRA-SC, foi calculada a distribuição por sexo nos dois
grupos. Do total de membros da ACELBRA-SC, 65% eram mulheres e 35%, homens,
enquanto nesta amostra, 68% eram mulheres e 32%, homens; resultando numa
relação de 1.8 mulheres para cada homem na ACELBRA-SC e de 2.1 mulheres para
cada homem na amostra.
Quanto à cor, 95% dos participantes se consideraram brancos; 3,5% pardos, e
apenas um (0,7%) negro. Em relação à origem, predominou a brasileira (43%),
seguida pela italiana (29,7%), alemã (29%) e portuguesa (21,4%) - a soma desses
percentuais ultrapassa 100% porque foi permitido aos participantes assinalarem
mais de uma resposta nessa questão. No geral, 84% dos participantes
consideraram possuir algum grau de ascendência européia.
História familiar positiva para doença celíaca foi relatada por 27% dos
associados.
A média de idade dos participantes foi igual a 30,8 anos, variando entre 3,3 e
82,5 anos. Essa média diferiu significantemente entre os sexos, tendo sido de
35,5 anos para as mulheres e de 22 anos para os homens.
Com relação à idade por ocasião do diagnóstico, esta se concentrou na faixa dos
20 aos 40 anos (Figura_2).
Calculou-se também a distribuição percentual de diagnósticos por faixa etária
entre os sexos (Figura_3), que mostrou predomínio masculino nos diagnósticos
feitos até os 20 anos de idade, e feminino nos diagnósticos feitos após os 20
anos (c2= 14,1948; graus de liberdade = 4; P = 0,0067).
A idade média ao diagnóstico também variou entre os sexos, tendo sido de 16
anos para os homens e de 26,7 para as mulheres (U = 1487,5; Z = 3,21; P =
0,0013).
Quanto à sintomatologia prévia ao diagnóstico, os pacientes puderam assinalar
mais de um sintoma, tendo sido a distensão abdominal o sintoma mais
freqüentemente relatado, seguida de dor abdominal e diarréia (Figura_4).
Analisou-se também a freqüência dos sintomas entre os sexos (Figura_5), que
revelou predomínio estatisticamente significante de sintomas considerados
atípicos nas mulheres (aftas, constipação e anemia), enquanto nos homens
predominaram os sintomas considerados típicos da doença (diarréia, baixo peso).
O número de sintomas entre os participantes variou de 0 a 10, com média de 4,8
(DP = 2,24). Essa média não diferiu significantemente entre os sexos, tendo
sido de 4,86 (DP = 2,30) para os homens e de 4,81 (DP = 2,24) para as mulheres.
Quanto à investigação diagnóstica, como já dito, foram incluídos apenas os
membros que realizaram biopsia de intestino delgado. Nesse grupo, o número de
biopsias realizadas variou entre um e oito. Trinta e três por cento relataram
terem sido submetidos a biopsia apenas em vigência de dieta contendo glúten,
42% apenas em dieta isenta de glúten, e 8,3% tanto em dieta contendo glúten,
quanto após sua retirada. Aproximadamente 12% participantes relataram terem
sido submetidos a biopsia, porém não informaram sobre a vigência ou não de
dieta contendo glúten na época em que foram biopsiados.
Com relação aos testes sorológicos, 61,4% dos participantes relataram terem
sido submetidos a pelo menos um teste e, desses, 71% relataram pelo menos um
resultado alterado. Do total de participantes, apenas 44% possuíam pelo menos
um teste sorológico alterado.
Foram submetidos a dosagem de anticorpos anti-gliadina do tipo IgA, 56,5% dos
participantes. Cinco por cento afirmaram não ter realizado o exame e 38,5% não
souberam informar. Dos que afirmaram terem feito o exame (n = 82), 32%
relataram resultado normal, 67% resultado alterado e uma pessoa não soube
informar o resultado.
Quanto à dosagem sérica de anticorpos anti-gliadina do tipo IgG, 52,4% (n = 76)
dos participantes afirmaram terem sido submetidos ao exame. Desses, 29%
relataram resultado normal e 71% resultado alterado.
Trinta e quatro por cento dos participantes (n = 50) afirmaram ter realizado
dosagem sérica de anticorpos anti-endomísio. Desses, 28% obtiveram resultado
normal e 72% alterado.
Apenas 15 pacientes da amostra (10,4%) foram submetidos a dosagem de anticorpos
anti-transglutaminase. Desses, 86,7% relatam resultado alterado e 13,3 não
souberam informá-lo.
Após o diagnóstico, 45% dos participantes afirmaram ter recebido indicação de
suplementação vitamínica ou mineral. Percentagem semelhante (45,5%) afirmou não
ter recebido essa orientação e 9,5% das pessoas não souberam informar. Quanto
ao elemento (vitamina ou mineral) especificamente utilizado, 30% receberam
indicação de suplementação de ferro, 14% de cálcio, 4,5% de zinco, 3,5% de
cobre, 10,4% vitamina D, 9,6% vitamina B12, e 10,4% ácido fólico.
Com relação às doenças associadas e complicações relacionadas à doença celíaca,
os participantes puderam assinalar mais de uma alternativa. No total, 65,5% dos
participantes relataram possuir ao menos uma das entidades descritas. As
freqüências de cada encontram-se descritas na Figura_6. Nenhum participante
relatou possuir diabetes mellitus. Dos que haviam relatado lesões de pele como
sintomas, apenas 50% assinalaram possuir dermatite herpetiforme como doença
associada.
Houve dois relatos de obstrução intestinal seguida de ressecção parcial do
intestino delgado e um relato de linfoma gastrointestinal.
Quanto à realização de densitometria óssea, 35,2% dos participantes afirmaram
terem sido submetidos ao exame, 52,5% não foram submetidos e 12,3% não souberam
informar. Dos que o realizaram, 59% relataram resultado alterado (osteopenia ou
osteoporose), 40% resultado normal e 1% não soube informá-lo.
DISCUSSÃO
Nos últimos anos, a doença celíaca tem sido cada vez mais reconhecida como
entidade muito mais comum do que se pensava(7) O aperfeiçoamento dos métodos de
rastreamento ' notadamente a detecção de anticorpos anti-endomísio, altamente
sensíveis e específicos para a doença - permitiu a realização de inúmeros
estudos populacionais, que culminaram por revelar taxas de doença celíaca -
confirmada por biopsia - muito superiores às que se imaginava até então.
Apesar de diversos aspectos poderem sugerir o diagnóstico de doença celíaca,
este somente poderá ser feito após a demonstração das alterações
histopatológicas típicas em biopsia de intestino delgado durante uso de dieta
contendo glúten(13). Por esse motivo, optou-se por excluir desta análise os 16
indivíduos que não relatavam terem sido submetidos a biopsia para o
diagnóstico. Estes corresponderam a aproximadamente 10% do total de
participantes, número consideravelmente alto, ainda que inferior aos 25%
observados em inquérito norte-americano(18) e também inferior aos 14,5% em
estudo avaliando membros da ACELBRA ' Seção São Paulo(43).
Ainda com relação ao papel da biopsia no diagnóstico da doença celíaca, é
importante relembrar os critérios revisados em 1990 pela ESPGHAN(13). De acordo
com os mesmos, o diagnóstico de doença celíaca somente poderá ser feito nos
indivíduos que possuírem história e apresentação clínica e testes sorológicos
compatíveis, além de achados histopatológicos característicos em biopsia na
vigência de dieta contendo glúten e exibirem melhora clínica e sorológica em
resposta à dieta isenta do mesmo(2). Outras causas de atrofia vilositária devem
ter sido excluídas e o diagnóstico só deve ser feito em indivíduos com idade
acima de 2 anos(13). Nos assintomáticos, a ESPGHAN preconiza a realização de
nova biopsia após a isenção do glúten da dieta com o objetivo de comprovar a
melhora dos padrões histopatológicos (recuperação da mucosa atrofiada e redução
do infiltrado linfocitário intra-epitelial), para o diagnóstico definitivo(13).
Com base nesses critérios, observou-se que apenas 42,1% dos associados
analisados possuíam biopsias compatíveis com a investigação correta da doença.
Destes, 33,8% relatavam biopsias apenas durante dieta contendo glúten, o que
seria compatível com o diagnóstico adequado, desde que os demais critérios de
diagnóstico estivessem presentes, e 8,3% possuíam duas ou mais biopsias, sendo
pelo menos uma na vigência de glúten e uma na sua ausência - padrão considerado
"ouro" para o diagnóstico.
Em contrapartida, 44,2% dos participantes relataram terem sido submetidos a
biopsia apenas durante dieta já isenta de glúten ' padrão não compatível com o
diagnóstico apropriado da doença. Diante deste fato, restam suposições: teriam
esses indivíduos iniciado a dieta por conta própria antes do diagnóstico
definitivo ' ou seja, antes da realização da biopsia? Ou teriam sido orientados
a proceder de tal forma por algum profissional de saúde? Ou responderam à
questão acreditando que estivessem em dieta isenta de glúten e na realidade não
estavam? São questões para as quais certamente não se encontrarão respostas no
presente estudo, mas que servem de estímulo para trabalhos futuros e reforçam a
necessidade de esclarecimento do público em geral e dos profissionais de saúde
quanto ao correto diagnóstico desta doença.
Com relação à sintomatologia prévia ao diagnóstico, os sintomas "típicos" (ou
da forma clássica de apresentação da doença) predominaram nesta série 65% dos
membros relatando diarréia, 71% dor abdominal e 71,8% distensão abdominal. Os
resultados deste estudo são similares aos obtidos em dois outros brasileiros
sobre o assunto(15, 43) e um norte-americano(18), apesar de publicações
recentes terem sugerido que as apresentações "atípicas" da doença seriam, na
verdade, mais comuns que as "típicas"(37, 49).
Achado que tem sido constante nos diversos estudos populacionais até hoje
realizados é a alta prevalência da doença celíaca no sexo feminino em relação
ao masculino. Em inquérito nacional norte-americano(18), a razão de 2,9
mulheres para 1 homem foi encontrada, valor bastante semelhante ao de estudos
populacionais europeus(21, 46) e que não difere muito dos encontrados na
presente amostra (2,1:1 na amostra vs 1,8:1 na população total de membros da
ACELBRA-SC). Na América Latina, poucos estudos de prevalência estão
disponíveis. Estudo argentino revelou prevalência de 1:167 habitantes na região
estudada, dos quais 67% eram mulheres e 33% homens(19). No Brasil, no primeiro
estudo de prevalência realizado, diferenças de prevalência entre os sexos não
puderam ser avaliadas, devido ao alto percentual de homens na amostra - 87,53%
(16). Em posterior estudo de prevalência entre doadores de sangue, houve o
cuidado de incluir número igual de participantes de ambos os sexos (1500 homens
e 1500 mulheres)(31). Desses, foram diagnosticados como celíacos 10 mulheres e
1 homem - proporção que, segundo os próprios autores, pode estar superestimada,
uma vez que os 2 participantes que se recusaram a realizar a biopsia de
intestino delgado eram homens(31). Caso esses fossem, de fato, celíacos, essa
proporção cairia para 3,3 mulheres para 1 homem ' valor mais próximo mas, ainda
assim, acima dos habituais 2:1(31). Já em estudo envolvendo membros da ACELBRA
' Seção São Paulo, 62% dos associados eram mulheres e 38%, homens - dados
bastante semelhantes aos do presente estudo(43). Por outro lado, no trabalho de
prevalência brasileiro mais recentemente publicado, não houve diferença
estatisticamente significativa de prevalência entre os sexos(35), o mesmo tendo
ocorrido na população pediátrica estudada por GALVÃO et al.(15).
Apesar dos discordantes dados de prevalência nacionais, os valores desta série
são compatíveis com grande parte da literatura internacional sobre o assunto, o
que leva a concluir que a presente amostra pode ser considerada representativa
dos celíacos do Estado, uma vez que segue o mesmo padrão de distribuição entre
os sexos mundialmente descrito em estudos de grande porte. No mesmo sentido, se
se considerar a prevalência de doença celíaca no Brasil de 1:681 (conforme
descrito por GANDOLFI et al.(16)), verificar-se-á que a amostra presente
corresponderia a 1,8% do total de celíacos do Estado (de acordo com dados do
Censo 2000 do IBGE, que aponta a população total em Santa Catarina de 5.356.360
habitantes). Esse valor é semelhante ao tamanho da amostra obtido por GREEN et
al.(18) em seu inquérito norte-americano, que correspondeu, na ocasião, a 2% do
total de celíacos norte-americanos e foi considerada por esses autores como
razoavelmente representativa da população celíaca daquele país.
À luz dos inúmeros estudos já citados(9, 18, 19, 21, 43, 46), que mostram maior
prevalência e maior risco relativo de doença celíaca em mulheres do que em
homens, seria de se esperar, também, maior índice de suspeita por parte dos
médicos diante de mulheres com sintomas sugestivos, o que poderia levar a um
diagnóstico mais precoce nas mesmas. Entretanto, no presente trabalho, o que se
verificou foi exatamente o contrário ' enquanto nos homens a média de idade ao
diagnóstico foi de 16 anos, nas mulheres foi de 26,7, diferença
estatisticamente significativa (U = 1487,5; Z = 3,21; P = 0,0013). Diante desse
achado, levantam-se as hipóteses de que, nesta amostra, ou as mulheres
iniciaram com sintomas em idades mais avançadas, ou seu diagnóstico foi tardio,
mesmo com os sintomas já presentes. Ainda, quando se comparam os percentuais de
diagnóstico por sexo por faixa etária, percebe-se predomínio masculino nos
diagnósticos feitos até os 20 anos de idade, padrão que se inverte após os
mesmos, quando passam a predominar os diagnósticos em mulheres (c2= 14,1948;
graus de liberdade = 4 e P = 0,0067). Tal comportamento, no presente estudo,
não pôde ser explicado por diferença quantitativa na sintomatologia apresentada
entre homens e mulheres, tendo em vista que ambos apresentaram, em média, o
mesmo número de sintomas (4,86 sintomas para os homens e 4,81 para as
mulheres). Entretanto, talvez possa ser explicado por variações qualitativas na
sintomatologia, haja vista que os homens apresentaram mais diarréia (82,6% vs
57,8%; P <0,05), e déficit ponderal (67,4% vs 46,5%; P <0,05); enquanto as
mulheres relataram mais constipação (46,5% vs 24%; P <0,05), aftas (37,4% vs
15,2%; P <0,05) e anemia (54,5% vs 41,3%; P <0,05). Especula-se, dessa forma,
se os sintomas apresentados pelos homens (diarréia e baixo peso) teriam sido
mais preocupantes ou mais desagradáveis para os pacientes ou seus pais, do que
aqueles apresentados pelas mulheres (constipação, anemia e aftas), de modo a
levá-los à busca diagnóstica mais precoce. Outra possibilidade seria de que,
realmente, as mulheres desta amostra apresentaram sintomas em idades mais
avançadas (quando se sabe que tendem a predominar os sintomas atípicos), o que
levaria a diagnóstico também numa faixa etária mais avançada nessa
subpopulação.
Até o momento, poucos estudos foram publicados abordando especificamente a
relação entre gênero e apresentação clínica da doença celíaca. O primeiro,
publicado em 1995(9), concluiu por uma apresentação mais sintomática, mais
precoce e mais grave (maior número de complicações e de doenças associadas) nas
mulheres, o que, entretanto, não explica os achados da presente série. Por
outro lado, dois estudos mais recentes, ambos datados de 2005, chegaram a
resultados que se aproximam mais daqueles observados nesta amostra. BARDELLA et
al.(3), estudando uma população italiana, encontraram diferenças
estatisticamente significantes entre os sexos, apontando para a maior
prevalência de diagnósticos em mulheres na faixa etária acima dos 14 anos,
maior prevalência de anemia em mulheres, e maior prevalência de dor abdominal,
dispepsia, vômitos e baixo peso em homens ' todos achados concordantes com os
deste estudo. Já em trabalho norte-americano(4), não foram encontradas
diferenças estatisticamente significantes entre os sexos quanto à idade ao
diagnóstico ou à forma de apresentação da doença; entretanto, foram encontradas
evidências indiretas de maior má absorção em homens (inferida por valores mais
baixos de colesterol total e densidade mineral óssea), além de menor duração de
sintomas antes do diagnóstico em homens - 33% das mulheres contra 18% dos
homens possuíam história de mais de 5 anos de sintomas antes do diagnóstico (P
= 0,006).
Quanto à tendência à agregação familiar da doença celíaca, estudo norte-
americano(46) revelou prevalência de 17,8% entre familiares em geral (1º e 2º
grau) de pacientes celíacos. Na ACELBRA-SC, 27% dos associados relataram a
presença de familiares com doença celíaca ' contra 19% dos avaliados em
inquérito nacional nos Estados Unidos(18) e 6,2% dos celíacos da ACELBRA '
Seção São Paulo(43). Como se desconhece o número total de familiares dos
associados, não se pode inferir a taxa de prevalência da doença entre esses.
Entretanto, pode-se inferir que, caso não houvesse agregação familiar da
doença, as taxas de prevalência nos familiares deveriam ser semelhantes à da
população em geral, ou seja, de 1:681 ou 0,166%(16) - valores bastante
inferiores aos encontrados. Isso sugere existir, de fato, uma agregação
familiar dos casos de doença celíaca, o que está de acordo com a teoria de que
determinantes genéticos (especialmente os HLA DQ2 e DR4) estariam associados
aos fatores ambientais (exposição às prolaminas) na gênese dessa doença(7).
Quanto aos outros sintomas relatados pelos celíacos, além dos sintomas do
aparelho gastrointestinal que não haviam sido incluídos nas alternativas
anteriores (náuseas, vômitos, flatulência) e cuja alta freqüência já era
esperada, tem destaque o grupo de sintomas neurológicos, psiquiátricos e
comportamentais. Estes vêm sendo descritos cada vez mais freqüentes em
associação à doença celíaca, embora a etiopatogenia dessa associação ainda não
esteja completamente esclarecida(1, 5).
Com relação às condições associadas, destaca-se o elevado percentual de
celíacos que afirmaram possuir no mínimo uma doença ou complicação relacionada
à sua doença (65,5%). Esse valor é consideravelmente superior aos 8,6%
encontrados em estudo semelhante realizado entre membros da ACELBRA ' Seção São
Paulo(43); entretanto, vale ressaltar que, nessa última, 72% dos membros tinham
idade igual ou menor que 20 anos, enquanto, na presente casuística, 62% eram
maiores de 20 anos, tendo havido, portanto, maior tempo para o desenvolvimento
de doenças associadas. Dessas, a mais freqüentemente relatada nesta casuística
foi a intolerância à lactose (33%). Entretanto, questiona-se o fato de ser essa
a real prevalência dessa doença nessa população, levando-se em conta que, por
terem sintomatologias semelhantes, um diagnóstico inicial de intolerância à
lactose pode ter sido feito antes que o diagnóstico de doença celíaca fosse
finalmente estabelecido. Pelo mesmo motivo, questiona-se também o alto
percentual de doentes com intolerância à proteína do leite de vaca (10,4%) e de
síndrome do intestino irritável (11,8%) que, em inquérito norte-americano, foi
relatada por 36% dos celíacos como seu primeiro diagnóstico(18). Quanto às
demais doenças relatadas, acreditam-se serem mais confiáveis as informações,
pois são diagnósticos bastante específicos e cuja apresentação geralmente não
se confunde com a da doença celíaca ou outras. Destacam-se, ainda, os dois
relatos de obstrução intestinal seguida de ressecção parcial do delgado, que
devem, sem dúvida, levantar a hipótese de neoplasia maligna, bem como o relato
específico de linfoma gastrointestinal em um associado ' complicação maligna
mais temida da doença celíaca e principal causa de morte entre os acometidos
dessa afecção(11).
Com relação à osteopenia e à osteoporose, reconhece-se hoje que o déficit de
mineralização óssea e suas conseqüências são as complicações mais comuns da
doença celíaca(28). Estudo norte-americano mostrou que apenas 28% dos celíacos
possuíam massa óssea normal à densitometria(32). Na população aqui estudada,
entretanto, apenas 14,5% relataram osteopenia ou osteoporose, o que
possivelmente pode ser conseqüência do baixo percentual de participantes
submetidos a densitometria óssea (apenas 35,2% relataram tê-la realizado).
Ressalta-se que, dentre os submetidos ao exame, quase 60% relataram massa óssea
anormal, dado que está mais de acordo com a literatura mundial sobre o assunto
(7) e que sugere que a baixa prevalência encontrada na presente amostra deve-
se, na realidade, ao baixo índice de investigação e diagnóstico dessas
afecções.
CONCLUSÕES
No presente estudo, confirma-se a prevalência duas vezes maior de doença
celíaca em mulheres, valor que está de acordo com a maior parte da literatura
mundial, apesar de os estudos nacionais de prevalência terem obtido resultados
conflitantes.
Foi, entretanto, achado totalmente inesperado o fato de as mulheres, nesta
amostra, terem recebido o diagnóstico de doença celíaca em idades
significativamente mais avançadas que os homens ' dado que somente se repetiu
na literatura em um estudo italiano(3) e para o qual nem o presente estudo e
nem o italiano possuem explicações. No mesmo sentido, foram também inesperadas
as diferenças encontradas na sintomatologia entre homens e mulheres. A
possibilidade de má absorção mais intensa nos homens, levantada por estudo
norte-americano(4), pode explicar o fato de esses, na presente amostra, terem
tido com maior freqüência diarréia e baixo peso. Infelizmente, dados como
colesterol total e densidade mineral óssea, que foram utilizados no estudo
norte-americano como evidências indiretas de maior má absorção, não foram
especificamente investigados neste estudo. É interessante mencionar que muitas
das diferenças sintomatológicas entre os sexos verificadas em nesta amostra
foram também encontradas no estudo italiano anteriormente citado(3), o que
talvez possa seja explicado pelo fato de que, dentre as origens relatadas pelos
participantes do presente estudo, a italiana foi a 2ª mais apontada (quase
30%), perdendo somente para a brasileira (43%).
Surpreendeu ainda o número de associados que se consideravam celíacos e que, no
entanto, não haviam sido submetidos a biopsia de intestino delgado para
confirmação do diagnóstico (10% da amostra e 3% do total de membros da ACELBRA-
SC), bem como o número de participantes que relataram biopsias incompatíveis
com uma investigação apropriada da doença (44,2% foram submetidos a biopsia
apenas após a exclusão do glúten da dieta). Esses dados indicam que ainda
existe déficit de conhecimento tanto da população em geral quanto dos
profissionais de saúde com relação à doença celíaca, o que pode estar gerando
não só diagnósticos inapropriados em indivíduos saudáveis, condenando-os à
dieta restritiva desnecessária, mas também impedindo que verdadeiros celíacos
sejam diagnosticados.
Dessa forma, ressalta-se a importância das associações regionais de celíacos no
sentido de esclarecimento tanto dos próprios celíacos e familiares, quanto da
população em geral sobre a doença, e reforça-se a necessidade de ampla
divulgação, entre médicos e demais profissionais de saúde, dos critérios para o
correto diagnóstico dessa doença.