Soroprevalência da doença celíaca em ambulatório pediátrico, no nordeste do
Brasil
INTRODUÇÃO
A doença celíaca (DC) é uma enfermidade freqüente que afeta crianças e adultos
e cujo diagnóstico e tratamento precoces previnem complicações e mortes(25).
Estudos realizados, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, indicam que
a DC ocorre em torno de 0,5% a 1% da população geral(5, 6).
Os testes sorológicos permitem rastrear de forma menos invasiva maior número de
pessoas, assegurando que formas clínicas leves, com sintomas não-
característicos, ou mesmo indivíduos assintomáticos sejam identificados(14
,18).
O anticorpo antigliadina (AGA) avalia a presença de anticorpos de classe IgA e
IgG contra a fração tóxica do trigo (a gliadina), geralmente medidos através da
técnica de ELISA(1). Foi largamente utilizado até pouco tempo, mas teve seu uso
desaconselhado em revisões recentes(14, 15).
O anticorpo anti-endomísio (EMA) avalia a presença de anticorpos da classe IgA
dirigidos contra o endomísio. Apesar de ser um teste sensível e específico, o
EMA apresenta algumas dificuldades para seu uso em grande escala: custo
elevado, técnica laboriosa e necessidade de sacrificar animais (quando
utilizado esôfago de macaco). Além do mais, por ser um método semiquantitativo,
está sujeito, em parte, à avaliação do observador(8, 15).
A pesquisa do anticorpo antitransglutaminase tecidual (TTG) é útil na
investigação sorológica para DC por ser realizada através da técnica de ELISA,
sendo portanto, de mais fácil execução, fornecendo resultado quantitativo e não
dependente de operador e, ainda, por apresentar sensibilidade e especificidade
que se assemelham ao EMA(4, 15).
Ainda hoje, são poucos os estudos de prevalência da DC na América do Sul. A
maioria dos trabalhos foi realizada na Europa, onde as condições sociais e
ambientais são muito diferentes(5).
Em 2000, foram publicados os primeiros estudos sobre prevalência da DC na
América do Sul, tendo o primeiro sido realizado no Brasil(10, 12). Em 2006,
MELO et al.(20) observaram entre doadores de sangue, em Ribeirão Preto,
prevalência estimada de DC de 1:273. Recentemente, OLIVEIRA et al.(23)
encontraram em população semelhante, prevalência de 1:214 na cidade de São
Paulo.
A DC ainda é vista por leigos e alguns médicos como rara. A realização de
estudos de soroprevalência contribui tanto para um melhor conhecimento do seu
impacto em nosso meio, quanto para a seleção dos indivíduos que precisam ser
submetidos a biopsia do intestino delgado, imprescindível para a confirmação da
doença(25).
O objetivo deste estudo foi conhecer a soroprevalência da DC, utilizando-se
testes sorológicos para EMA e TTG em crianças e adolescentes atendidos em um
ambulatório de pediatria geral.
MÉTODOS
O estudo foi realizado no Instituto Materno-Infantil Professor Fernando
Figueira - IMIP, entidade de direito privado, sem fins lucrativos, conveniado
com o Sistema Único de Saúde (SUS) e credenciado pelo Ministério da Saúde como
Centro de Referência Nacional para a assistência na área materno-infantil,
localizado em Recife, PE.
O desenho do estudo foi descritivo do tipo corte transversal, realizando-se
estudo de soroprevalência, através da dosagem dos anticorpos
antitransglutaminase tecidual guinea pig (TTGgp) e nos positivos dosados os
anticorpos antitransglutaminase tecidual humana (TTGh) e EMA. A população do
estudo foi formada por crianças maiores de 2 anos e adolescentes, atendidos nos
vários setores da instituição, que realizaram coleta sangüínea no laboratório,
durante o período do estudo, independente da indicação clínica.
O tamanho da amostra foi calculado utilizando-se o programa "statcalc" do EPI-
INFO 6.0. Para o cálculo utilizou-se a soroprevalência (4%) obtida com os 100
primeiros soros analisados; com nível de confiança de 95%, foi obtido um n =
637. Foi analisado número maior de crianças para dar maior consistência aos
resultados. Os indivíduos foram selecionados de forma não aleatória, por
critério de conveniência, segundo a demanda do próprio laboratório.
Foram excluídos os familiares de pacientes celíacos já conhecidos, os doentes
com diabetes tipo I e os com síndrome de Down (indivíduos sabidamente com risco
maior para DC que a população geral).
O sangue coletado era colocado em tubo seco e submetido a centrifugação para
obtenção do soro, sendo armazenado em condições adequadas de temperatura. A
sorologia para TTGgp foi realizada no laboratório do IMIP e supervisionada por
profissional de nível superior, treinada em exames sorológicos para DC,
pertencente à Universidade de Trieste, Itália. A sorologia para EMA e a TTGh
foi realizada no laboratório da Universidade de Trieste pela mesma
profissional.
Inicialmente, foram utilizados os kits de TTGgp produzidos pelo laboratório
Eurospital, de Trieste, Itália. Foi avaliada a presença de anticorpos da classe
IgA. A concentração de anticorpos foi expressa em unidades arbitrárias (UA) e
considerado positivo os valores acima de 7,0 UA (valor previamente estabelecido
pelo laboratório).
Nos indivíduos com sorologia para TTGgp positiva foram realizadas provas
sorológicas com EMA e TTGh. O EMA sérico foi medido através da técnica de
imunofluorescência indireta, utilizando secções criostáticas de tecido de
cordão umbilical humano. Uma fluorescência, tipo "favo de mel", ao longo das
camadas musculares peritubulares do cordão umbilical humano foi considerada
positiva para EMA.
O TTGh foi avaliado através da técnica de ELISA, utilizando-se como substrato
enzima clonada pelo grupo de Trieste. Os resultados foram expressos como
percentual do soro positivo controle, sendo considerados normais valores abaixo
de 16% do soro positivo controle, que representou um valor >2DP acima da média
de 100 indivíduos saudáveis.
A pesquisa teve início após aprovação pela Comissão de Ética em Pesquisa do
IMIP e do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da
Universidade Federal de Pernambuco.
Os dados foram armazenados em arquivo do Epi-Info 6.0, sendo utilizados os
programas Check e o Validate para assegurar a consistência dos dados.
As variáveis categóricas que caracterizam a amostra, foram expressas em
percentuais. A prevalência foi calculada através da proporção dos indivíduos
com sorologia positiva em relação à amostra estudada. A concordância sorológica
foi determinada pelo somatório das sorologias positivas e negativas que
concordaram para EMA e TTGh, sobre o número total de sorologias realizadas para
os dois testes.
RESULTADOS
No período de março a agosto de 2000, realizou-se a sorologia em 831 crianças e
adolescentes. A amostra constituiu-se de 52% (433/831) de indivíduos do sexo
feminino e 48% (398/831) do masculino.
A idade das crianças e dos adolescentes variou entre 2 a 18 anos, com mediana
de 8 anos. A distribuição de freqüência por grupo etário foi: pré-escolares 29%
(241/831), escolares 27% (225/831) e adolescentes 44% (365/831).
A soroprevalência para DC obtida através do anticorpo TTGgp, foi de 5% (42/831;
IC de 95%: 3,76%-6,90%). Considerando os indíviduos que tiveram os três testes
positivos, a soroprevalência estimada foi de 1,9% (16/831; IC de 95%: 1,83%-
1,97%).
A concordância do TTGh com o EMA foi de 71%, 16 TTG h e EMA positivos somados a
14 TTGh e EMA negativos, total de 30 sorologias concordantes (Figura_1). Em
todos os indivíduo EMA positivo, o TTGh foi positivo.
![](/img/revistas/ag/v45n3/a14fig01.jpg)
DISCUSSÃO
Os estudos de rastreamento populacional, que se tornaram possíveis com o
advento dos testes sorológicos, mostram uma soroprevalência da DC na população
geral bastante significativa(5, 6, 11, 15).
Neste trabalho, a soroprevalência estimada, utilizando-se o anticorpo anti-
TTGgp como um exame de triagem inicial e os positivos confirmados com o TTGh e
o EMA, foi de 1,9% (16/831; IC de 95%: 1,83%-1.97%). A soroprevalência média da
DC encontrada através dos programas de rastreamento populacional realizados,
principalmente na Europa, situa-se em torno de 1%(14). Sabe-se que para a
confirmação da doença é necessária a realização da biopsia intestinal, pois o
indivíduo pode apresentar anticorpos mas não preencher os critérios que definem
a presença da doença(15).Daí o cuidado de se observar nos diferentes estudos se
a proposta foi conhecer a soroprevalência ou a prevalência da DC.
Um aspecto que diferencia esta população da de outros estudos é o fato de
tratar-se de uma amostra colhida em ambiente hospitalar, o que poderia
justificar a existência de maior número de indivíduos com sorologia positiva,
já que é de se esperar que em uma população de indivíduos "doentes" exista
maior número de celíacos. Vale salientar que em estudo semelhante, realizado em
Oxford, na Inglaterra(16), foi encontrado grande número de celíacos entre
pacientes que vinham sendo acompanhados em ambiente hospitalar (prevalência de
3%) e que, até o momento do rastreamento sorológico, não haviam sido
diagnosticados. Os autores alertam para o subdiagnóstico da DC mesmo em
ambiente hospitalar.
Apesar do exposto, em estudo realizado anteriormente no Brasil por GANDOLFI et
al.(9), no qual foi investigada a prevalência de DC em 1.686 crianças
acompanhadas no ambulatório do Hospital Universitário de Brasília, encontrou-se
uma soroprevalência bastante inferior. As crianças foram rastreadas através de
EMA, tendo sido identificados seis indivíduos positivos; destes, cinco
concordaram com a realização da biopsia do intestino delgado, que demonstrou um
padrão celíaco. A prevalência da DC foi de 1:281, ou seja, 0,35%. O critério
utilizado para a triagem, através da dosagem dos EMA, explica em parte o menor
percentual de soropositividade.
Certamente, estudos de soroprevalência e o refinamento diagnóstico através da
realização de biopsia intestinal, irão ajudar a estabelecer a verdadeira
prevalência da DC em diferentes regiões e populações no Brasil. Fatores
relacionados ao ambiente, como diferentes práticas alimentares e fatores
agressores do meio ambiente, podem explicar as diferenças na prevalência de DC
em nosso país quando comparadas aos estudos europeus(13).
Enquanto se sabe que a ingestão de glúten é responsável pelo desenvolvimento
dos sinais e dos sintomas da DC, não se conhece quais fatores estariam
associados ao desenvolvimento ou não da doença e a época de início da mesma.
Estudos epidemiológicos anteriores já constataram que diferentes práticas
alimentares, principalmente no que se refere à época de introdução do glúten e
sua quantidade na dieta, podem influenciar a prevalência da DC em uma população
(13, 19).
NORRIS et al.(22) acompanharam prospectivamente 1.560 crianças com risco maior
de desenvolver DC, por possuírem seu marcador genético ou por serem familiares
de primeiro grau de doentes com diabetes mellitus tipo I, condição fortemente
associada à DC. Essas crianças foram acompanhadas por 5 anos, período em que os
autores tentaram observar a associação entre a época de introdução do glúten
com o risco de desenvolver DC, constatando que a introdução de glúten nos
primeiros 3 meses de vida esteve associada a um risco 5 vezes maior da criança
desenvolver DC, em relação às crianças que iniciaram sua ingestão entre 4 e 6
meses de vida. Crianças que não ingeriram glúten até 7 meses ou mais, também
apresentaram risco marginalmente aumentado. Os autores concluíram que a época
de introdução do glúten na dieta das crianças está associada com o
desenvolvimento ou não de doença.
É provável que na população deste estudo, considerada socioeconomicamente
carente, o trigo (na forma de massas, pães, biscoitos, macarrão), principal
fonte de glúten, seja introduzido precoce e abundantemente, por tratar-se de
alimento de baixo custo e do gosto popular. Por outro lado, sabe-se que, ao
contrário do que deveria ocorrer, a maioria das crianças é desmamada
precocemente, antes dos 6 meses. Não se pode afastar a possibilidade do hábito
alimentar estar associado à alta soroprevalência observada. A presença de
fatores agressores do meio ambiente contribuindo para a ocorrência da DC tem
sido pouco estudada. Diante do que se conhece atualmente sobre a patogênese da
DC, acredita-se ser necessário um fator que altere a barreira do trato
digestório, promovendo maior influxo de gliadina e liberação de TTG, para que
se desenvolva a DC(2, 17). É razoável especular que fatores como desnutrição,
infecções intestinais de repetição e parasitoses intestinais favoreceriam
ambiente apropriado para o desencadeamento da doença.
A busca por um teste sorológico preciso para o diagnóstico de DC é um dos
maiores desafios na atualidade. A necessidade de biopsia de intestino delgado
para confirmar o diagnóstico de DC torna a investigação invasiva e requer
profissional médico treinado para a realização do procedimento. Teste
diagnóstico que não seja invasivo e que esteja prontamente disponível seria o
ideal, não só para conveniência do paciente, mas também para otimizar o uso dos
recursos em saúde(7, 21, 24).
Observou-se, nos pacientes que realizaram os três testes, que a concordância da
TTGgp, principalmente com o EMA, não foi satisfatória (apenas 34%); tais
achados fazem levantar questionamentos sobre o kit sorológico utilizado na
triagem inicial.
O grupo de trabalho em rastreamento sorológico para DC da Alemanha, em
publicação de novembro de 2000, relata serem muitos os métodos descritos para
determinação de seus anticorpos e que a padronização de métodos e materiais é
de suma importância, já que avaliações interlaboratoriais prévias têm
demonstrado resultados conflitantes(26). Nesse estudo, houve a participação de
sete diferentes laboratórios europeus, a análise sorológica utilizando o TTGgp
apresentou reprodutibilidade interlaboratorial que não alcançou o EMA. Surgiram
questionamentos sobre variações nos protocolos dos testes e a respeito dos
preparados de TTGgp utilizados como antígeno, tendo sido observada diferenças
na dependência do lote da enzima empregada.
No trabalho realizado por CLEMENTE et al.(3) intitulado "Armadilhas no
rastreamento para DC utilizando transglutaminase guinea pig ELISA", relatou-se
alta freqüência de resultados falso-positivos (50%) em indivíduos com outras
doenças auto-imunes, particularmente hepatite auto-imune e cirrose biliar
primária.
Em vista da elevada soroprevalência observada no presente estudo, especula-se
como possível explicação para este achado a existência de fatores ambientais
que, atuando numa fase precoce da vida das crianças, levem a aumento da
permeabilidade intestinal, facilitando a sensibilização ao glúten e,
conseqüentemente, o desencadeamento da DC.
Conclui-se que a triagem sorológica para DC em crianças e adolescentes que
apresentem sinais e/ou sintomas compatíveis com a mesma deve ser realizada em
todos os níveis de atendimento, bem como nos grupos de risco já conhecidos,
dada a soroprevalência observada em nosso meio.