A contribuição da medicina baseada em evidências para a introdução de novo
conhecimento na prática clínica
FÓRUM DO JOVEM PESQUISADOR YOUNG RESEARCHER FORUM
A contribuição da medicina baseada em evidências para a introdução de novo
conhecimento na prática clínica
The importance of evidence-based medicine concepts for the clinical
practitioner
Fauze Maluf-Filho
Disciplina do Programa de Pós-graduação em Cirurgia do Aparelho Digestivo da
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo: "Medicina Baseada em
Evidências: Fundamentos e Aplicabilidade na Investigação Científica"
Correspondência
O processo de tomada de decisões médicas envolve a utilização de conhecimentos
científicos de veracidade facilmente verificável, bem como de conhecimentos,
experiências e habilidades de valor científico menos reconhecido. Estes últimos
constituem-se fundamentalmente de conceitos transmitidos, em geral oralmente,
por professores, preceptores ou algum "R" (residente) mais antigo. O mais
notável é que dificilmente o estudante ou residente que recebe estes conceitos
reflete sobre os mesmos, procura por atualizações sobre o tema ou sequer
verifica a origem destes conhecimentos. Recentemente, este modelo de ensino,
onde informações estáticas são oferecidas cumulativamente para estudantes
"passivos", foi desafiado pelo paradigma proposto pela Medicina Baseada em
Evidências (MBE) ou "Evidence-Based Medicine", em 1992(2). Na definição de seus
criadores, trata-se do uso da melhor evidência científica para a tomada de
decisões para determinado paciente(3). A principal crítica a tal movimento e,
principalmente a esta definição é: "Não é o que costumamos fazer em nossa
prática diária?" Claramente a reposta é Não. No modelo proposto pela MBE,
frente a qualquer indagação sobre diagnóstico, prognóstico e tratamento, o
profissional de saúde acessa determinado banco de dados (como o Pubmed®, por
exemplo), inserindo algumas palavras-chaves, recupera os artigos relevantes,
qualifica a evidência contida nas publicações (avaliando a qualidade dos
artigos) e aplicando as informações obtidas para o contexto clínico em questão
(isto é, para aqueledoente específico), toma decisões que são quantificáveis
através de razões probabilísticas e de medidas de associação epidemiológica. O
grupo criador deste modelo exemplifica-o com o caso clínico de um homem de 48
anos que se apresenta à emergência com 1º episódio de convulsão do tipo grande
mal, sem história de trauma ou ingestão alcoólica, com estudo tomográfico de
crânio normal e eletroencefalograma sem alterações conclusivas. No momento da
alta, o paciente indaga sobre o risco de novas crises convulsivas (prognóstico)
e se alguma medicação deve ser prescrita para evitá-las. No modelo antigo, o
médico residente se dirigirá ao preceptor e este, ao assistente, que o
informará de que há alta chance de nova crise (quanto exatamente?) e que o
paciente deverá tomar anticonvulsivante por tempo indefinido. No modelo atual,
o médico residente procura um terminal conectado à Internet e faz busca no
Pubmed®, avaliando os artigos relevantes para o seu paciente. Após cerca de 30
a 60 min, pode informá-lo de que o risco de recurrência é de 40 a 50% no
primeiro ano, caindo esta cifra para 20% passados 18 meses da primeira crise. O
paciente recebe a prescrição de anticonvulsivante por 18 meses e recomendação
de retornar regularmente ao médico assistente, para possível interrupção do
medicamento passado este período, se assintomático.
Estes mesmos princípios devem reger a introdução de novo conhecimento na
prática clínica. Quando se fala sobre tratamento, a melhor evidência ou aquela
mais confiável é a que tem origem de estudos controlados com alocação
aleatória, ou os conhecidos "RCTs - randomized controlled trials". Neles, o
novo tratamento (experimento) é comparado com a terapêutica considerada padrão-
ouro para o manejo da doença ou com o placebo, se este tratamento não existir.
A alocação aleatória ou "randomização" (anglicismo da palavra inglesa "random"
- ao acaso) garante que os dois grupos a serem comparados sejam semelhantes
quanto aos dados demográficos (sexo, idade, cor), gravidade da enfermidade e
frequência de outras comorbidades. Evita-se, assim, o viés de seleção, onde
pacientes mais graves se acumulam em determinado grupo de tratamento. Evitando-
se este viés, se houver diferença entre os grupos, no que se refere aos
resultados, poder-se-á inferir que esta diferença foi fruto dos tratamentos e
não das condições prévias dos pacientes. Fundamental também é definir qual
desfecho clínico será medido e como fazê-lo. São comuns estudos demonstrarem
que determinado tratamento provoca menor frequência de um desfecho secundário,
sem informar sobre o evento principal. Num estudo comparando o uso de lidocaína
versus placebo em pacientes infartados, qual será o desfecho mais importante a
ser mensurado: frequência de arritmias ventriculares ou mortalidade?
Certamente, o segundo. De fato, mesmo na era pós-trombólise para o tratamento
do infarto agudo do miocárdio, vários estudos sugerem que o uso de lidocaína
não está indicado, pois, embora reduza a frequência de arritmias ventriculares,
aumenta a mortalidade entre os pacientes(4). Ainda, ao se analisar qualquer
estudo que sugere a introdução de nova droga ou operação, deve-se avaliar se o
número de pacientes incluídos é suficiente para demonstrar a diferença que se
quis provar entre os tratamentos. Exemplo clássico deste problema são os
estudos que lidam com tratamento de hemorragia digestiva provocada por úlcera
péptica. Uma vez que a mortalidade gerada por esta situação é de 5%-8%, ao se
comparar dois grupos de 100 pacientes submetidos a dois tipos diferentes de
tratamento para a hemostasia daquela úlcera, espera-se que ocorram cerca de
cinco a oito óbitos em cada grupo. Assim, a maioria dos trabalhos sobre este
tema consegue demonstrar a superioridade de um tratamento sobre o outro em
relação às taxas de ressangramento, volume de hemotransfusão, permanência
hospitalar, mas não conseguem demonstrar impacto sobre a mortalidade. Fica-se
sem saber se esta redução estatística da mortalidade não ocorreu porque, de
fato, os tratamentos têm resultados semelhantes neste aspecto, ou se não foi
estudado número suficiente de pacientes para se demonstrar a diferença. Esta
última situação configura que o estudo não teve poder estatístico ("unpowered
trial") para provar a hipótese (ou diferença entre os tratamentos), também
conhecido como erro tipo II que não deixa de ser um tipo de falso-negativo. O
contrário raramente acontece, isto é, o estudo demonstrou que houve diferença
entre os tratamentos, mas em realidade, esta diferença ocorreu ao acaso, isto
é, foi um falso-positivo, pois se fixa o valor "estatisticamente significante"
em inferior a 5% ou o conhecido P< 0,05. Significa que a chance de determinada
diferença ter ocorrido ao acaso é inferior a 5% e é de 95% de que a diferença
ocorreu pela superioridade de um tratamento em relação ao outro. Outra
impropriedade frequentemente detectada nos estudos é a maneira de coletar os
resultados. Idealmente, quem coleta os dados e o paciente incluído no protocolo
não devem saber a que grupo este pertence, o que transforma o estudo em "duplo-
cego". Se o próprio médico intensivista sabe qual tratamento o paciente está
recebendo afere a medida do desfecho do estudo, é possível que ocorram viéses
("bias" da literatura inglesa) no momento da aferição dos dados. Ainda, a
análise dos resultados deve ser por intenção de tratamento ("ITT - intention to
treat") e não por protocolo ("PP - per protocol"). Por exemplo, um determinado
paciente, alocado para o grupo experimento, não consegue ser submetido a este
tratamento porque, por exemplo, desenvolve uma alergia à droga. Consiste em
erro metodológico grosseiro simplesmente colocar este paciente no grupo placebo
(já que ele não conseguiu receber todas as doses da droga "ativa") e analisá-lo
como tal. Esta é análise PP. O paciente deve ser analisado como se tivesse
recebido todo o tratamento ("ITT"), porque afinal, esta é a vida real e o
estudo deve aferir a efetividade daquele tratamento. Em resumo, são as melhores
evidências científicas sobre determinado tratamento de uma doença aquelas
extraídas de estudos controlados, duplo-cegos, de alocação aleatória, com
análise por intenção de tratamento, com poder estatístico suficiente, com
desfechos válidos e adequadamente mensurados.
Muitas vezes, encontra-se na literatura análise de vários destes estudos, como
se fossem uma única coorte de pacientes. Trata-se da revisão sistemática.
Quando os resultados da revisão sistemática são analisados estatisticamente,
define-se metanálise. Vários autores consideram a metanálise evidência ainda
mais poderosa do que um "RCT" bem conduzido. As revisões sistemáticas devem
incluir apenas estudos controlados, "randomizados", de alta qualidade, que
respeitem os preceitos acima expostos. Conclui-se que mesmo as revisões
sistemáticas e metanálises merecem olhar crítico, antes que suas conclusões
sejam simplesmente aplicadas na prática clínica. Deve-se ter em mente que não
existem "RCT" ou metanálises" sobre todos os assuntos. Assim, muitas vezes,
nossas decisões se baseiam em estudos que analisaram retrospectivamente o
resultado de determinado experimento (intervenção ou droga) ou ainda, que
acompanharam prospectivamente pacientes submetidos àquela intervenção, sem
compará-los a grupo controle (desenho de estudo conhecido como ensaio clínico
não controlado). O médico opta pelo experimento pois os resultados destes
estudos são superiores àqueles obtidos historicamente com outros tratamentos.
Ou ainda, porque está diante de condição de reconhecida alta letalidade, em que
o estudo demonstrou resultado do tipo "tudo ou nada", isto é, quase todos os
pacientes submetidos a intervenção sobreviveram, enquanto o desfecho esperado
para todos era desfavorável.
Quando da introdução de novos conhecimentos na prática clínica, deve-se
quantificar o impacto deste novo tratamento, através das medidas de associação
como "odds ratio" ou razão de chances, "relative risk" ou risco relativo,
"relative risk reduction" ou redução relativa do risco, "absolute risk
reduction" ou redução absoluta do risco e o "number needed to treat" - NNT ou
número necessário para tratar. Suponhamos que determinado tratamento reduza a
mortalidade de uma doença de 30% para 10%. A redução absoluta do risco, com
este tratamento, é de 20% (30-10), a redução relativa do risco, de 67% (20/30)
e o NNT, de 5 (1%/20%). Esta última medida de associação indica que, ao
aplicarmos o novo tratamento em cinco pacientes, evitar-se-á a morte em um.
Estas medidas, especialmente o NNT, são fundamentais para a análise da relação
custo-benefício de um determinado tratamento. Suponhamos tratamento de alto
custo para situação de alta letalidade cujo resultado tenha NNT muito elevado
(mais de 100, por exemplo). Dificilmente, este tratamento será aplicado para
todos os pacientes portadores daquela condição. Nesta situação, devem-se
identificar subgrupos de pacientes que se beneficiem "mais" dos que os outros,
reduzindo o NNT. Por outro lado, o tratamento tríplice para H. pylori apresenta
NNT próximo de 1, quando o objetivo é a erradicação da bactéria; por outro
lado, este número é 20, quando se analisa o alívio da dispepsia .
Estes conceitos se tornam fundamentais nos tempos atuais se o médico quiser
analisar criteriosamente se o que há de mais novo ou mais avançado é, de fato,
o melhor a seu paciente. Os exemplos se acumulam em nossa área de atuação. No
início deste século, foram propostas algumas terapias endoscópicas
antirrefluxo. Por mais de 4 anos, tudo o que se apresentou foram ensaios
clínicos em que pacientes com graus leves de esofagite, sem hérnia de hiato, de
peso normal, foram submetidos a injeções, plicaturas e outras intervenções na
transição esôfago-gástrica. Os desfechos clínicos buscados pelos estudos foram
nitidamente intermediários: redução no uso do inibidor de bomba de prótons,
redução no tempo de exposição ao ácido medido pela pHmetria, redução dos
"escores" de sintomas. Naquele momento, os desfechos válidos ensinados na
graduação, a saber, controle de sintomas e cicatrização da esofagite, foram
esquecidos, ou "afrouxados" para se permitir a realização destes protocolos.
Não se deve esquecer de que, ao final do processo de busca pela melhor
evidência sobre o tipo de tratamento a ser ministrado, ou ao introduzir novo
conhecimento na prática clínica, o médico deverá individualizar a terapêutica,
isto é, avaliar se a evidência obtida se aplica àquele determinado paciente e
se algumas adaptações devem ser feitas. O que o conceito da MBE prevê é o
perfeito equilíbrio entre a melhor evidência científica e a experiência
("viés") pessoal, onde o agente de saúde enxerga o enfermo além de sua doença
(1).