Doença de Chagas: os 100 anos da descoberta e a atualidade do pensamento do seu
descobridor
EDITORIAL
Doença de Chagas: os 100 anos da descoberta e a atualidade do pensamento do seu
descobridor
Chagas' disease: 100 years of discovery and current thought of its discoverer
Sérgio Britto Garcia
Departamento de Patologia e Medicina Legal, Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP
Comemoramos neste ano o centenário da publicação da descoberta da doença de
Chagas. Seu descobridor foi o eminente médico e cientista brasileiro Carlos
Chagas, nascido em 1879. Chagas graduou-se na Faculdade de Medicina no Rio de
Janeiro em 1903 e trabalhou com Oswaldo Cruz no Instituto de Manguinhos, RJ. Em
seguida, como sanitarista e pesquisador, trabalhou para a erradicação da
malária em Santos, SP. Em 1908, Chagas mudou-se para a cidade de Lassance, no
interior de Minas Gerais, por ocasião da expansão das malhas férreas. Lá ele
clinicava no apoio à melhoria das condições de saúde de trabalhadores, em
situação de alta mortalidade por moléstias tropicais, principalmente a malária
e a febre amarela(13).
Nesta atividade, Chagas conheceu os insetos que cohabitavam as moradias da
população humilde e que sugavam seu sangue à noite, conhecidos por "barbeiros".
Naquele mesmo ano, detectou a presença de novos protozoários no intestino dos
"barbeiros" e formulou a hipótese de que estivessem relacionados à doença
misteriosa que afligia a população da região, com sintomas diversos,
predominantemente cardíacos. Finalmente, em 1909, ele examinou uma criança,
chamada Berenice, que apresentava febre, edemas e ingurgitação linfática
generalizada. No seu sangue encontrou os protozoários que observara no
intestino de "barbeiros" no ano anterior, descobrindo, assim, uma nova doença,
que denominou Tripanosomíase americana. Em agosto de 1909, Chagas publicou, no
primeiro volume das Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, um extenso e muito bem
redigido artigo, onde relata a morfologia e o ciclo de vida do tripanosoma(13).
Caso único na história da medicina, Chagas descreveu, na mesma doença, o agente
etiológico, o vetor, as manifestações clínicas das fases aguda e crônica, o
reservatório na natureza (animais selvagens), vários aspectos da patogenia e
inferiu o seu impacto socioeconômico(15). Recebeu muitas críticas agressivas e
invejosas pelo seu trabalho, mas também vários prêmios, títulos honoris causa e
homenagens nacionais e internacionais, vindo a falecer em 1934, no Rio de
Janeiro, aos 56 anos de idade.
A DOENÇA DE CHAGAS 100 ANOS DEPOIS DA DESCOBERTA
Ao longo desses 100 anos, desde a descoberta da doença de Chagas, constatou-se
que a paciente Berenice não teve a forma crônica da doença, tendo falecido aos
72 anos de idade, vítima de um acidente vascular cerebral. Um século após a
descoberta da doença, a população de Lassance continua a viver em condições
bastante precárias e ainda há barbeiros em muitas residências na região(11). É
interessante notar que em 1911, Chagas já sugeria a melhoria das casas como
meio de eliminação do vetor. Um século depois, a doença ainda é uma tragédia
silenciosa que atinge milhões de pessoas na América Latina(21). Em 2006, o
Brasil foi considerado pela Organização Pan Americana de Saúde como o primeiro
país latino-americano a interromper a transmissão da doença via vetor, embora
esporadicamente novos casos sejam relatados, inclusive de transmissão por
alimentos. Hoje estima-se que por volta de 16 milhões de pessoas estejam
infectadas pelo Trypanosoma cruzi e cerca de 75 a 90 milhões estejam sob
potencial risco de se tornarem infectadas(5). Embora originária da América
Latina, muitos casos da doença ocorrem em outros continentes por conta da
migração de indivíduos.
ALGUNS ASPECTOS HISTÓRICOS E ATUAIS DA FORMA DIGESTIVA DA DOENÇA DE CHAGAS
Sabe-se, há muito tempo, da alta prevalência de disfagia no interior do Brasil.
No livro Brazil and Brazilians (1857), dois missionários americanos, Kidder e
Fletcher, já descreviam o "mal de engasgo" como uma nova doença no Brasil. A
partir do início do século XX, várias hipóteses foram formuladas para explicar
o mal, como por exemplo, Paranhos, que em 1913, propôs a existência de uma
toxina na farinha de mandioca; Parisi que propôs uma forma de malária (1925) e
Etzel, que propôs o papel de desnutrição, particularmente o da avitaminose B1
(17, 18).
É interesssante que o próprio Carlos Chagas já havia proposto, em 1916(3, 4), o
papel da infecção pelo Trypanosoma cruzi na gênese da doença, o que foi
desconsiderado pelos meios médicos e científicos no período, até a década de
1950. É muito provável que isto tenha relação com a forte oposição que Chagas
encontrou à época na Academia Nacional de Medicina, fazendo com que a doença
por ele descrita ficasse no esquecimento por cerca de 20 anos(22). Nessa mesma
época, Chagas foi indicado para o prêmio Nobel em duas ocasiões. Admite-se que,
ao menos em 1921, quando por motivos pouco claros ninguém foi nomeado para o
prêmio e a não premiação do genial cientista possa ter ocorrido em razão da
forte oposição que enfrentou no Brasil por parte de alguns médicos e
pesquisadores da época, que chegaram mesmo a questionar a existência da doença
de Chagas, influenciando a decisão do Comitê Nobel para não premiá-lo(2). Por
outro lado, há quem conteste que esta oposição a Carlos Chagas, embora
profundamente lamentável, tenha sido decisiva quanto à não premiação em 1921
porque outros fatores poderiam ter influenciado as decisões do Comitê Nobel
(16).
Na década de 30, diversos clínicos do interior do Brasil passaram a defender a
idéia de que o megacólon e o megaesôfago tivessem causa chagásica(15). Isto se
confirmou em diversos trabalhos, destacando-se os de ETZEL(7) e o de AMORIM e
CORREA-NETO(1), os quais demonstravam ser o megaesôfago e o megacólon uma mesma
doença, cujo achado histopatológico mais característico consiste na degeneração
do plexo mientérico, encontrada em todo o trato digestório, e não apenas nos
segmentos dilatados. Alguns autores, dentre os quais destaca-se FREITAS(8),
demonstram com dados clínicos, epidemiológicos e sorológicos a relação
etiológica entre a doença de Chagas e o megaesôfago e o megacólon endêmicos. Na
realidade, a referência mais antiga a este respeito já data de 1922 e deve-se a
Chagas e Villela que encontraram quatro casos de megaesôfago em 63 pacientes
chagásicos(18).
O conceito de que as dilatações de vísceras fossem secundárias à desnervação
intrínseca das mesmas foi enfatizado no período de 1952 a 1970 pelo Prof. Fritz
Koberle, patologista austríaco radicado na Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto da Universidade de São Paulo(18). Este pesquisador realizou pesquisas
baseadas em estudos histopatológicos detalhados, que culminaram na formulação
da sua Teoria neurogênica para a fisiopatologia das formas cardíaca e digestiva
da doença de Chagas. Nesses estudos foram feitas correlações entre as
populações de neurônios dos plexos submucosos e mientéricos com as megavísceras
chagásicas, principalmente megaesôfago e megacólon. Foram estudos exaustivos,
nos quais mais de 350 mil neurônios foram contados! Constatou-se cabalmente que
a desnervação intrínseca de vísceras ocas era componente essencial da
patogênese das dilatações.
Novamente aqui se deve fazer justiça à genialidade de Chagas, que já havia
descrito a lesão de células nervosas viscerais associada à tripanossomíase(4).
Fazia parte também da Teoria neurogênica a hipótese de que a maior parte da
perda neuronal ocorresse na fase aguda da doença, motivo pelo qual Koberle
propunha que o destino do chagásico era "selado na fase aguda da doença"(14).
Como logo se observou que muito raramente se encontravam neurônios parasitados,
Koberle também propôs a existência de uma hipotética neurotoxina produzida
pelos tripanossomos, que lesaria seletivamente as células nervosas. Entretanto,
nem Koberle ou qualquer outro pesquisador da época conseguiram demonstrar a
existência de tal neurotoxina. Outros problemas em relação à Teoria neurogênica
foram a observação por diversos autores de fenômenos de autoimunidade e também
a ocorrência de perda contínua de neurônios, ou seja, a desnervação não se
restringia à fase aguda da doença(17). Somente 43 anos depois da elaboração da
Teoria neurogênica é que foi possível se demonstrar a existência de uma
substância, associada à infecção chagásica, que lesaria os neurônios
intramurais do tubo digestório. Não se trata de uma toxina propriamente dita,
mas de óxido nítrico - e possivelmente outros radicais livres - liberado na
reação inflamatória periganglionar. Este agente, componente da defesa contra o
microorganismo, afeta colateralmente os neurônios vizinhos à reação
inflamatória e o seu bloqueio farmacológico reduz acentuadamente as lesões
neuronais(9). Ainda aqui, há que se fazer justiça à genialidade de Carlos
Chagas. A releitura cuidadosa de seus textos mostra que, na verdade, estes
mecanismos não escaparam da observação acurada e da interpretação brilhante
daquele pesquisador, quando afirmou que também eram lesadas as células não
parasitadas que circundavam aquelas infectadas e ao tecido inflamado(4).
Refletimos aqui que, embora seja muito difícil de definir o que seria
genialidade, certamente este conceito passa pela capacidade de se ver o que os
demais não estão vendo e de se antever os rumos dos acontecimentos além do seu
tempo, atributos estes que certamente não faltavam a Carlos Chagas.
Sabe-se hoje também que as lesões neuronais não ocorrem ao acaso, mas que
existe algum tipo de seletividade para subpopulações distintas de neurônios,
como ilustra, por exemplo, o fato de que a inervação excitatória é mais
intensamente lesada no megaesôfago chagásico do que na acalásia idiopática(6).
Recentemente, uma sequência de trabalhos, bem conduzidos e cientificamente
embasados, alguns deles elaborados por pesquisadores brasileiros em parceria
com o eminente Prof. John Furness, da Austrália, trouxe novas contribuições ao
entendimento da fisiopatologia da forma digestiva da doença de Chagas. Ficou
bem estabelecido que a imunidade e a inflamação crônica persistente têm papel
importante na evolução do megaesôfago e que fenômenos de neuroplasticidade
fazem parte da fisiopatologia da doença(19, 20). Outra linha de pesquisa que se
abriu nas últimas duas décadas foi a do estudo da relação entre megaesôfago e
aumento de risco de câncer e da redução de incidência desta doença no megacólon
(10, 12). A partir desses estudos, novas informações têm surgido e contribuído
para a melhor compreensão da carcinogênese do tubo digestivo e quiçá,
contribuirão também para que se desenhem novas estratégias preventivas ao
câncer.
Concluímos lembrando que, além de seu magnífico trabalho como médico,
pesquisador e administrador, Chagas era também um grande professor, que
afirmava sua convicção da conveniência de sempre se "pesquisar ensinando e
ensinar pesquisando". Nesta frase simples ilustra-se um pensamento inspirador
que ajudou a moldar toda uma geração de pesquisadores brasileiros e que
continua válido nos dias de hoje para aqueles que trabalham na formação das
novas gerações de pesquisadores. Terminamos, portanto, aliando-nos com ardor a
todas as justas homenagens que neste ano têm sido prestadas ao grande mestre:
Carlos Chagas.