Programa saúde da família: vivenciando a experiência
RELATO DE EXPERIÊNCIA
PRÁTICAS CUIDATIVAS
Programa saúde da família: vivenciando a experiência
Evania Nascimento
Doutoranda em Enfermagem Psiquiátrica pela EERP/USP e docente da Faculdade de
Enfermagem de Passos junto ao Departamento de Enfermagem Geral e Especializada
A experiência de atuar como enfermeira assistencial à nível do Programa de
Saúde da Família (PSF) ocorreu em 1995, basicamente um ano após sua implantação
pelo Ministério da Saúde. Como enfermeira graduada em 1983, tive minha formação
totalmente voltada para o modelo vigente naquele período que era essencialmente
direcionado para a prática curativa, hospitalocêntrica e tecnicista.
Entretanto, era extremamente frustrante a prática profissional, pois, sentia a
necessidade de oferecer, enquanto enfermeira, algo mais, qual seja: uma
assistência baseada na educação do paciente/cliente no sentido de buscar meios
para manutenção de sua saúde; resgatar a responsabilidade da pessoa doente no
seu autocuidado e levar a família a participar deste contexto.
SegundoCampos e Baduy(1999), parece haver um consenso no mundo hodierno sobre a
impossibilidade de convivência entre o modelo médico anteriormente citado - já
que esse influencia a formação dos profissionais de saúde como um todo - e o
acesso universal e eqüitativo da população ao serviço de saúde. Os autores
acima citados, destacam, ainda, que nem sempre maiores gastos revertem em
melhores condições de saúde, o que leva a revisão deste paradigma
organizacional da prática médica, mudando o discurso e tendo como caminho a
concretização de que é melhor promover a saúde e prevenir a doença do que
remediar posteriormente, levando a gerar a exclusão de um bem essencial como é
a saúde.
Prestar assistência no domicílio, coloca o enfermeiro no contexto real onde o
processo de desequilíbrio da saúde se instala, como também, exige desse
profissional "trabalhar" seus valores pessoais e conceituals de família e saúde
para entender os próprios conceitos das famílias assistidas. Propicia, ainda,
uma relação empática, pois, é necessário uma abordagem pautada na interação, no
respeito à pessoa para que o enfermeiro crie laços de confiançã com as
famílias e consiga o acesso dele e da equipe à intimidade e aos problemas
vivenciados no dia-a-dia das mesmas.
Martin e Angelo (1998), citam em suas experiências no cuidado com famílias que,
ao desenvolver certos conhecimentos na área de saúde familiar, o profissional
se depara com uma situação concreta onde muitas vezes temos que nos relacionar
com diversas famílias, diferentes daquelas nas quais crescemos do ponto de
vista sociocultural, o que certamente acaba por gerar a frustração devido aos
irrelevantes resultados das interações enfermeiro-família.
Assim, os profissionais de saúde que conviveram comigo no período de
implantação e estruturação do PSF na cidade de Assis, SP, experimentaram todas
as frustrações e, ao mesmo tempo, cresceram com as mesmas, buscando, através
dos erros e acertos, traçar estratégias que possibilitassem efetivar a relação
família/profissionais de saúde, tendo no diálogo, o ponto de partida na busca
de soluções para problemas tais como:
- desnutrição infantil e altos índices de desemprego e subemprego;
- precárias condições de algumas moradias, bem como falta de saneamento básico
e de esgoto em algumas áreas;
- alto índice de analfabetismo devido a falta de recursos das famílias;
incidência significativa de doença mental, alcoolismo e uso de drogas;
- presença de área de prostituição com baixo índice de informação e prevenção
para doenças sexualmente transmissíveis e Aids;
- aumento de gestação em adolescentes; população adscrita caracterizada por
jovens que ficavam ociosos e procuravam o caminho da marginalidade ou tráfico
de drogas, etc.
Assim, diante de tantos problemas detectados pela equipe do PSF, sentimo-nos
impotentes e procurávamos, pela experiência profissional anterior, buscar meios
para intervir, não tendo certeza se estávamos indo no caminho certo. Contudo,
foi de relevante contribuição a visita de uma equipe de técnicos cubanos que,
além do suporte teórico-prático, assessorou as equipes do PSF na elaboração do
diagnóstico de saúde de cada área, possibilitando à equipe, não só planejar de
forma mais direcionada a intervenção junto à comunidade, como também a
reavaliar o trabalho inicial e detectar o que estava incorreto, permitindo um
aperfeiçoamento na busca de se efetivar concretamente o PSF nos princípios da
universalidade, equidade e integralidade.
Quanto às dificuldades sentidas no início da implantação no PSF, além da
própria formação profissional, estão aquelas relacionadas à complexa visão de
saúde da própria população, a saber:
- a população adscrita não esperava pela visita da equipe na residência e
dirigia-se ao núcleo do PSF, formando filas e exigindo agendamento e consulta
médica, como se ali fosse um ambulatório;
- a comunidade tinha certa resistência quanto à avaliação do enfermeiro na
detecção do seu estado de saúde (consulta de enfermagem);
- pressão da comunidade sobre a equipe em determinadas situações exigindo
internação hospitalar quando, na realidade, o médico da família tinha condições
de efetuar o tratamento no próprio domicílio (internação domiciliar);
- resistência por parte dos pais no atendimento do médico generalista para os
casos de pediatria;
- resistência das instituições de saúde (hospitais, principalmente) quanto à
presença da equipe do PSF no acompanhamento da recuperação do indivíduo
encaminhado para internação;
- na fase inicial de trabalho da equipe do PSF, verificou-se a existência de
uma população doente devido à dificuldade de acesso aos serviços de saúde o
que demandou esforços para conseguir praticar ações de prevenção e promoção da
saúde.
ConformeCampos e Baduy(1999), essas situações podem ser explicadas quando uma
prática especializada, tecnológica, centrada no ambiente hospitalar se reproduz
no ideário coletivo, tanto dos usuários dos serviços, quanto dos profissionais
de saúde. As autoras ainda chamam a atenção para a necessidade de uma difusão
ideológica do novo modelo de saúde proposto para o interior das Instituições
formadoras, oferecendo ao enfermeiro e demais profissionais de saúde, não só o
preparo acadêmico para atuar no PSF, mas que estas sejam pólos de educação
permanente das equipes que atuam em PSF.
ConformeElsen (1994), a prática de cuidar de famílias continua permeada por
incertezas, apesar de ter sido sempre considerada como cliente da enfermagem.
Deste modo, faltam instrumentos precisos para abordar a família e a própria
definição de saúde da família.
Compartilhando das colocações das autoras acima mencionadas, vejo que
precisamos buscar o desenvolvimento de pesquisas na área de saúde da família
para definir concretamente as características ètico-culturais da família
brasileira e agir eficazmente na busca de uma assistência domiciliar de
qualidade.
Finalmente, podemos considerar que a experiência de atuar no PSF de Assis, SP,
teve também seus aspectos facilitadores, quais sejam, a conscientização da
importância do papel do enfermeiro domiciliar, pois este presta cuidados a
indivíduos que, por sua vez, fazem parte da família, estando presente em fases
de crise ou transição, como no nascimento, enfermidade e morte. Assim, o
enfermeiro é capaz de providenciar apoio não só nas suas atividades
instrumentais, como também, naquelas atividades consideradas expressivas,
pautadas no apoio emocional, ajudando os membros da família a lidar com
diferentes situações.
Consideramos que para o enfermeiro domiciliar torna-se possível o exercício
profissional voltado para uma prática holística, já que no dia-a-dia de sua
relação com a família, o instrumento de trabalho essencial sem dúvida é o
relacionamento interpessoal para compreensão dos aspectos
biopsicossocioespiritual que intervém e modificam o estado de equilíbrio da
saúde física e mental do indivíduo e sua família. Por outro lado, este
relacionamento humano também é o elo do enfermeiro com os auxiliares de
enfermagem, agentes comunitários de saúde e o próprio médico, pois, a nível de
PSF, o trabalho em equipe é fundamental para o sucesso da intervenção
desenvolvida junto à comunidade adscrita.