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BrBRCVHe0034-71672003000100004

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variedadeBr
ano2003
fonteScielo

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Doação de órgãos e bioética: construindo uma interface PESQUISA

Doação de órgãos e bioética: construindo uma interface

Organ donation and bioethics: building an interface

La donación de órganos y la bioética: construyendo una interfaz

Kely Cristina de AlmeidaI; Anaclara F. V. TippleII;Maria Márcia BachionII; Giulena Rosa LeiteI; Marcelo MedeirosII IEnfermeira, Especialista em Enfermagem em Nefrologia IIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás, E-mail: anaclara@fen.ufg.br

1 Introdução Enquanto muitas pessoas esperam, anos a fio, por um órgão para que suas vidas sejam salvas, milhares de outras morrem, todos os anos, prematuramente, em acidentes ou fatalidades. Muitos órgãos sadios poderiam ser retirados e implantados naqueles que sofrem à espera de um transplante.

A questão da doação de órgãos no Brasil atualmente transcorre de forma ainda pouco esclarecida à população, cheia de mitos, tabus e mal entendidos. Até mesmo a equipe de saúde não está suficientemente esclarecida. O tema envolve questões sócio-culturais, econômicas, afetivas, técnicas e éticas que merecem discussão e pesquisa.

Em 1997 foi aprovada pelo Congresso Nacional a Lei 9434, que trata da remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento(1). Esta lei estabelecia que a autorização para doação de órgãos era permitida em casos de não haver a expressão não doador de órgãos e tecidos na Carteira de Identidade Civil ou na Carteira Nacional de Habilitação. A manifestação da vontade declarada nos documentos referidos poderia ser reformulada a qualquer momento, registrando-se a nova declaração de vontade.

Esta Lei foi regulamentada pelo Decreto 2268 de 30 de junho de 1997 (2) e a partir do dia 01/01/98 começou a vigorar no país, iniciando então, por parte do governo federal, campanhas de esclarecimento à sociedade através da mídia. As oportunidades de discussão e avaliação de dados da opinião pública foram tímidas. O objetivo das campanhas foi de informar que todo brasileiro maior de 21 anos era em potencial um doador de órgão e tecidos, a menos que tivesse registrado na Carteira de Identidade Civil (RG) ou Carteira Nacional de Habilitação (CNH) a expressão do desejo contrário, ou seja, declarar sua opção de não-doador.

A doação voluntária vislumbra o ato de doar como uma ação altruísta, positiva e solidária originada na vontade expressa do indivíduo ou da família, o que traz reconhecimento social. Destacamos o exercício da autonomia motivando a beneficência social, ou seja, a possibilidade de fazer benefício ao próximo.

Goldim (3) considerou que a lei 9434/97 trouxe uma modificação significativa no poder de decisão do indivíduo.

A incerteza da população quanto ao destino dos órgãos e ao conceito de morte encefálica no caso de doador cadáver, gerou um clima negativo para a doação o que acreditamos ser fator impeditivo à mesma, explicando então, o grande número de pessoas que após a divulgação da nova lei, registraram em seus documentos ser não-doador de órgão e tecidos.

Em outubro de 1998 a Medida Provisória nº1718 (4) acrescentou ao artigo da Lei 9434 um novo parágrafo que estabeleceu que na ausência de manifestação de vontade da pessoa, colocando-se como potencial doador, o pai, a mãe, o filho ou o cônjuge poderia manifestar-se contrariamente à doação, devendo esta decisão ser acatada elas equipes de transplante e remoção.

A partir de 23 de março de 2001 entrou em vigor a Lei 10211 (5), que alterou dispositivos da Lei 9434. A nova lei estabeleceu que as manifestações de vontade relativas à doação de órgãos, constantes na Carteira de Identidade Civil e da Carteira Nacional de Habilitação não teriam validade a partir de dezembro de 2000.

A doação de órgãos envolve questões complexas e delicadas e a Bioética constitui importante referencial na busca de compreendê-las.

A Bioética, de caráter eminentemente multidisciplinar, compreende "o estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados da saúde, na medida em que esta conduta é examinada à luz dos valores e princípios morais" (6: 191).

O objetivo geral da Bioética é a busca de benefício e da garantia da integridade do ser humano, tendo como fio condutor o princípio básico da defesa da dignidade humana (7). Assim, serve de campo para refletir e discutir questões auxiliando as pessoas a tomarem decisões.

Ser doador ou não de órgão(s) depende dos valores morais e culturais de cada indivíduo e população, além do conhecimento do assunto para o exercício pleno da autonomia.

A Bioética pode ser compreendida à luz de vários modelos. O mais difundido no Brasil e que fundamentou inclusive as normas para a realização de pesquisas com seres humanos no país é o Modelo de Princípios que adota quatro pilares explicativos: a autonomia, a beneficência, a não maleficência e a justiça (8).

A beneficência é um dos princípios mais conhecidos e em uma definição mais simplista significa não causar dano. Certos benefícios justificam alguns danos, mas não qualquer tipo de dano. Diante desta afirmação, beneficência significa a obrigação de garantir o bem-estar do indivíduo e de desenvolver informação para tornar mais fácil, no futuro dar essa garantia (9).

O princípio da justiça exige que a distribuição de danos e benefícios seja justa, em nome da justiça é que toda atenção, todo cuidado e todo sistema de saúde devem ser justos. É o princípio da justiça que garante a distribuição justa, eqüitativa e universal dos benefícios dos serviços de saúde (9).

O termo autonomia, de acordo com sua origem grega significa autogoverno referindo-se ao grau de poder da pessoa de tomar decisões que afetem sua vida, sua integridade físico-psíquica, suas relações sociais. A pessoa autônoma é aquela que delibera e escolhe seus planos, sendo ainda, capaz de agir com base nessas deliberações (10-13).

A autonomia refere-se ao indivíduo e sua capacidade de decisão, como também exige da sociedade o respeito a essa decisão. Entendemos que para decidir sobre alguma coisa, são necessários adequados entendimento e conhecimento do assunto para que o processo de análise seja realizado de forma mais inteirada da realidade reduzindo-se os erros advindos de uma conduta ou atitude insensata, o que muitas vezes é irreversível.

Acreditamos que estes princípios podem servir de base para refletir todos os comportamentos humanos. Nesse sentido, propomos um estudo sobre transplantes de órgãos, tomando como referencial teórico os princípios anteriormente citados.

Esta questão, entre outras na área da saúde, envolve controvérsias e discussões (14). A partir dos anos sessenta, entre outras causas, em virtude dos movimentos de defesa dos direito fundamentais da cidadania e, especificamente, dos reivindicativos do direito à saúde e humanização dos serviços de saúde, vem-se ampliando a consciência por parte dos indivíduos de sua condição de agentes morais autônomos, desejosos de estabelecer com os profissionais de saúde relações onde ambas as partes mutuamente se necessitam e se respeitam (15).

O aparecimento dos transplantes serviu para modificar o próprio conceito de morte, que até então era aceita como um fenômeno cardíaco e após o seu surgimento, houve que se aceitar como o término legal da vida, a morte encefálica.

Uma pesquisa realizada pela Data Folha, divulgada pelo Jornal Folha de São Paulo informa que "entrevistados 1049 moradores da cidade de São Paulo, a maioria da população doaria os seus órgãos para transplantes após a morte, independente do nível de escolaridade. Além disso, os entrevistados dariam autorização para remoção de órgãos de familiares mortos"(6:191).

A pesquisa mencionada mostrou que não uma rigidez na postura das famílias frente à autorização para o transplante. O que, então, faz com que seja ainda tão pequeno o número de pessoas que tenham se declarado doadoras em seus documentos de identificação? Por que as pessoas não se posicionam efetivamente como doadoras de órgãos?

2 Objetivos Considerando que a informação é condição imprescindível à tomada de decisão, estabelecemos para este estudo três objetivos: a - Identificar a atitude de graduandos de enfermagem sobre a doação de órgãos.

b - Identificar o conhecimento de graduandos de enfermagem sobre a legislação acerca de doação de órgãos no Brasil.

c - Analisar a atitude e o conhecimento dos alunos de graduação em Enfermagem sobre a doação de órgãos sob o ponto de vista da bioética.

3 Percurso metodológico Escolhemos adotar neste estudo a abordagem qualitativa, que trabalha com "o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores, e atitudes o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos á operacionalizações de variáveis"(16: 21).

O estudo foi desenvolvido na Universidade Federal de Goiás e na Universidade Católica de Goiás, sendo as duas Universidades que oferecem curso de graduação em Enfermagem na cidade de Goiânia, estado de Goiás.

Foram abordados alunos do último ano/período do curso de graduação de Enfermagem. A população foi escolhida levando em conta que seriam, em breve, profissionais de saúde, portanto, presumivelmente detentores de conhecimento suficiente para utilizar sua autonomia com relação à doação de órgãos.

Após serem convidados e esclarecidos sobre a pesquisa, 45 alunos aceitaram participar, através da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.

O projeto de pesquisa foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Bioética da Santa Casa de Misericórdia de Goiânia (GO).

A coleta de dados foi realizada no período de julho a dezembro de 2000, utilizando um questionário previamente validado quanto ao seu conteúdo por dois professores da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás e por um enfermeiro com atuação na área de bioética da Santa Casa de Misericórdia de Goiânia.

Os alunos foram reunidos em sala de aula e então procedemos à leitura do termo de consentimento, prestando esclarecimentos devidos e assegurando o anonimato.

A resposta ao questionário foi considerada como aceite à participação na pesquisa.

A análise quantitativa pautou-se em procedimentos de estatística descritiva e a análise qualitativa foi realizada sob o critério de categorização,(17) a qual se constituiu em uma operação de classificação de elementos constitutivos de um conjunto, por diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento segundo critérios previamente definidos. Além disso, foram utilizados os marcos referenciais da bioética.

Visando o anonimato dos participantes da pesquisa, codificamos cada resposta ao questionário da seguinte forma: Aluno 1 = A1; Aluno 2 = A2, e assim por diante.

4 Resultados, análise e discussão Dos 45 sujeitos que participaram do estudo, 93,3% eram mulheres, com idade média maior ou igual a 21 anos (95,5%).

Após leitura exaustiva das repostas dos questionários aplicados, percebemos que havia elementos que se apresentavam com freqüência, o que permitiu-nos reuni- los em categorias com o objetivo de melhor entendimento/aprofundamento do tema abordado.

As categorias levantadas foram: manutenção da vida, não confiabilidade e desinformação.

4.1 Manutenção da vida Quando questionamos sobre a autorização para doação de órgãos 35 (77,7%) entrevistados autorizariam a doação, justificando que a faria por desejo de ajudar a manter a vida, o que pode ser claramente observado em respostas como: Doaria para ajudar a salvar uma vida. (A1, A14, A15, A22, A23, A26, A29).

Para ajudar o meu próximo(A7, A11, A12, A17, A19, A30, A33, A36).

Daria a chance de alguém continuar com melhor qualidade de vida através de um órgão meu(A32).

Humanismo, consideração à vida(A2).

Considero importante para outras pessoas que vivem o sofrimento de esperar uma doação(A16, A24).

Trata-se de uma questão de solidariedade, amor ao próximo.(A10, A 41).

Acho que doar um órgão é doar vida. Todos têm direito à vida.(A8, A 27, A28).

Estes resultados corroboram com outros achados(18) que apontam entre os motivos que levam estudantes a serem favoráveis a doação de órgãos, o desejo de continuar a vida do outro; desejo de dar qualidade de vida aos que necessitam de um transplante. Somam-se a estes a concepção do corpo enquanto matéria, que, após a morte, não contém mais a essência daquele que o habitava, sendo para este último inútil, contudo, podendo servir para outros que ainda estão vivos; com a possibilidade de reaproveitamento de órgãos.

Prolongar a vida de uma pessoa e ou melhorar sua qualidade de vida, evitar a dor e o sofrimento, são motivos os quais fazem com que as pessoas que participaram de outro estudo (19) se coloquem numa atitude favorável à doação de órgãos. Cada uma destas ações é universalmente reconhecida como atos de alto valor de solidariedade na sociedade moderna e ocidental (19) .

A bioética inclui, também, uma valorização do feminino, no que diz respeito ao tomar cuidado dos outros (9) e uma vez que a população estudada é predominantemente feminina 42 (93,3%), torna-se relevante para o momento. As mulheres têm uma noção de moralidade que é diferente da maioria dos homens, percebem mais a responsabilidade para com os outros, a importância das relações e da solicitude (9) .

Resta saber até que ponto essa solidariedade é suficiente para levar o indivíduo à doação de órgãos uma vez que, quando se olha o número de pessoas na lista de espera, aptos a receber transplante, verifica-se que a quantidade de transplantes ainda é insuficiente para atender a demanda.

4.2 Não confiabilidade Dentre os entrevistados 10 (22,2%) não autorizariam a doação e justificam suas respostas com a dificuldade em garantir a confirmação de morte encefálica ou por não acreditarem no cumprimento da lei de doação de órgãos, a qual, para alguns está obscura.

Porque temo pela falta de atenção à minha vida, pelos médicos no caso de eu correr riscos (A25) Porque acredito que as pessoas ainda não são honestas o bastante, para ter os órgãos de outras em suas mãos(A43) Não confio nos profissionais responsáveis pela retirada dos órgãos (A39) É um assunto complexo! Quem iria garantir que eu realmente estaria morta?(A38) Devido à corrupção no Brasil(A37) Em não acreditar no sistema(A35) As leis ainda não são claras quanto a isso, além do que, colocou obrigatoriedade e eu sou contra(A34) Porque não confio na lei para tal procedimento(A40) Em outro estudo(19) também foi encontrada entre os sujeitos a desconfiança no procedimento, que origina desacordo com a doação de órgãos e transplantes. E ainda razões para a não doação reportam-se a aspectos bioéticos, como o receio da morte premeditada, além de críticas ao sistema de saúde brasileiro e à lei de transplantes(18).

O fato de a autonomia admitir graus como foi destacado anteriormente, nos remete a reflexão sobre a condição em que a autonomia está reduzida, o que configura situação de vulnerabilidade. "devemos voltar nossa atenção para as opções sócio-estruturais que interferem na produção da vida e da saúde e acabam por repercutir e determinar as dimensões circunscritas das relações" (12:20). A vulnerabilidade pode ser abordada em três planos interdependentes: a vulnerabilidade individual, a vulnerabilidade social e a vulnerabilidade programática. A vulnerabilidade programática envolve, entre outros aspectos, aspectos relacionados à implementação das normas e diretrizes regulamentadoras da ética e o acompanhamento e informações do sujeito sobre estas.

A vulnerabilidade social inclui a pobreza, as desigualdades sociais, o acesso às ações e serviços de saúde e educação, o respeito às diferenças culturais e religiosas, a marginalização de grupos em particular, as relações de gênero e com as lideranças dos grupos e coletividades (12:21).

A equipe de saúde aborda com o mesmo cuidado e respeito à dignidade todos usuários do serviço e seus familiares, independente de sua cor, sexo, condição social? Sendo o Brasil um país de grandes desigualdades, que produz excluídos e marginalizados, não podemos esperar que o respeito à dignidade da vida humana seja suficiente para que o cidadão sinta-se seguro e protegido.

4.3 Desinformação Quando questionamos os graduandos se conheciam a legislação sobre doação de órgãos no Brasil, 29 (64,5%) responderam que não.

Tenho ainda muitas dúvidas, contudo pude lê-la, mas não discuti-la (A3) Não conheço o tramite legal para os fins da doação(A5) Não me arriscaria a comentar. Sabemos apenas de informações, nada oficial. Nunca tive acesso às informações oficiais(A21) Eu conheço a atual lei por comentário de outras pessoas por isso me considero sem conhecimento nessa área(A22) Os 16 (35,5%) alunos que responderam afirmativamente quanto ao conhecimento da lei, mencionaram apenas alguns aspectos da legislação, como, por exemplo: Colocar se aceita doar ou não na carteira de identidade(A42) É proibida a venda de órgãos, deve-se respeitar uma lista de espera, não deve haver privilegiados, a doação é livre e esclarecida, a família tem o poder de decisão (A8) Existiam aqueles que tinham interpretação errônea da legislação, como pode ser visto na fala a seguir: Sei que quem não quer doar tem que colocar no documento, e que quem não escreve nada é obrigatoriamente um doador, e isso é um absurdo (A34) O exercício da autonomia está intimamente ligado ao conhecimento sobre determinado assunto e quem não tem esse conhecimento não detém a capacidade de escolha(20). Este pressuposto é corroborado pela noção de vulnerabilidade individual, a qual se refere ao comportamento e as crenças pessoais, bem como ao acesso dos sujeitos às informações a ação que pretende tomar, incluindo a forma como são transmitidas e sua competência para consentir, isto é, aceitar tomar parte na ação(12).

A autonomia, enquanto princípio da Bioética diz respeito à capacidade de escolher, decidir, avaliar, sem restrições internas ou externas. A desinformação sobre a atual lei de doação de órgãos está clara e ao nosso ver dever ser sanada o mais rápido possível, ainda na fase de formação profissional.

Todos, sem exceção, devem ter o poder de opinar, de escolher se é ou não doador de órgãos. E cabe ainda ressaltar o fato de que, se a amostra pesquisada não está orientada a respeito da lei, o que se encontraria se fosse pesquisado o imaginário das pessoas que possuem menos escolaridade ou que não estejam inseridas na área de saúde? Estariam preparados a exercer essa autonomia? Acreditamos que não.

O assunto transplante, tão atual e complexo, deve ser abordado principalmente nas áreas interdisciplinares ligadas à saúde como, por exemplo, na formação de profissionais médicos, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas, assistentes sociais, e outros, pois serão eles os responsáveis por acompanhar de perto esse procedimento.

Quando questionamos se este tema esteve presente como conteúdo integrante de alguma disciplina do curso de enfermagem, 39 (86,7%) responderam que não.

O ensino de ética na Enfermagem tem se limitado ao enfoque deontológico e utilitarista, dissociado da prática clínica dos estudantes(21).

Devido à falta de oportunidade para refletir criticamente sobre a temática transplantes de órgãos, estes futuros profissionais de saúde deixam a universidade sem a formação necessária par atuar como educador em saúde nesta área, o que impede a potencialização de agentes multiplicadores de um processo de sensibilização para doação de órgãos. Sem o exercício de construção de uma ética pessoal, que deve anteceder a construção da ética profissional normatizada, este processo não se dará(11).

Este fato é ilustrado com o seguinte relato: Estou saindo da faculdade sem um conhecimento específico na área ...

e como ficamos às vezes sem lidarmos com estas situações ficamos alheios a isto(A1) Quando questionamos quem seria o responsável pelo processo de informação dos profissionais de saúde acerca desta temática, 12 vezes foram citadas as instituições de ensino, sendo apontadas como possuidoras de um papel importante na abordagem de assunto tão relevante para a sociedade.

Acho que principalmente as escolas, pois são elas as grandes modificadoras de comportamento(A27) As escolas através de convênios com as universidades(A14, A15, A16, A22, A23, A25) Sem a formação adequada, não os enfermeiros, mas os demais profissionais de saúde, estarão despreparados para agir eticamente nas relações pessoais/ profissionais junto aos possíveis doadores de órgãos(22), construindo nas instituições de saúde um espaço sigiloso onde estas pessoas possam ser ouvidas, para que expressem suas dúvidas, desejo ou não de doar, medos, pressões que porventura estejam sofrendo, para que possam fazer sua opção. Alerta ainda que as pessoas que necessitam do transplante podem não ser magnânimos ou não ser capazes de compreender ou aceitar uma recusa de doação do órgão que ele necessita.

A Bioética tomou forma no Brasil nos anos 90 (23). Reconhecidamente houve expansão dos cenários de discussões e reflexões desta natureza, contudo, é necessário impregnar este olhar e agir em todos os níveis de ensino formal.

As respostas dos sujeitos que participaram de nossa pesquisa levam-nos a questionar a formação do profissional de saúde como ser global, crítico e consciente de seu papel enquanto cidadão. Ao considerarmos que os participantes deste estudo, serão em pouco tempo profissionais em diferentes instituições de saúde, o que se espera é que sejam capazes de oferecer uma informação diferenciada, ou seja, importa a qualidade da informação, que tem haver com a postura ética dos profissionais (10) e conseqüentemente com as oportunidades de formação a este respeito. Explicita-se, assim, a estreita relação entre (in)formação e autonomia.

Um tema como doação de órgãos, de caráter ético e social, deveria ser abordado na formação desses profissionais com a freqüência e a profundidade necessárias.

Além disso, é necessário considerar as crenças e valores relativos a esta temática na sociedade como um todo.

Entre as recomendações da Declaração Bioética de Gijón (24), destacamos a explicitação de que: o ensino de Bioética deva incorporar-se ao sistema educacional; todos os membros da sociedade devem receber informações gerais, adequadas e acessíveis sobre os avanços científicos; deve-se propiciar e estimular o debate especializado e público a fim de orientar as opiniões, atitudes e as propostas; deve-se garantir o exercício da autonomia da pessoa.

O Estado e instituições de saúde também foram citados pelos entrevistados como responsáveis por informar a população sobre doação de órgãos, em 71,1% das falas sobre este sub-tema.

O Ministério da Saúde é o representante nacional responsável por todas as instituições, ele deve informar(A5, A7, A20, A21, A28, A30, A31, A32, A35, A37) cho que toda lei deveria ser explicada à comunidade pelo Estado(A18, A23, A33, A38, A41) Os postos de saúde e agentes de saúde, pois eles é que estão em contato com a população mais diretamente(A11, A19, A26, A44).

Qual é o papel do Estado no que se refere à doação de órgãos no país? A doação de órgãos é assunto que traz à tona temas que exigem um mínimo de conhecimento sociológico para sucesso futuros. A questão dos valores morais, das características solidárias da população brasileira, da aceitação e entendimento do conceito de morte encefálica não pode ficar na superficialidade numa discussão do assunto.

O período compreendido entre fevereiro de 1997 (aprovação da Lei 9434 pelo Congresso Nacional), a janeiro de 1998, data em que a lei entrou em vigor, poderia ter sido uma fase de exposição do tema à sociedade, e um momento de discussão nas diversas camadas da população, captar as tendências do cidadão brasileiro frente ao ato de doar, e ainda buscar experiências anteriores.

Porém, isso não aconteceu, o que trouxe comportamentos muitas vezes negativos.

Posteriormente, a Medida Provisória 1718 (4)não foi largamente divulgada, o que fez com que muitas pessoas ainda levem em conta apenas a Lei 9434 (1).

Decorridos alguns meses da realização desta pesquisa, foi implantada a Lei 10211 de 2001 (5). Gostaríamos de salientar que a legislação pertinente a nosso estudo não incluiu esta nova legislação. Contudo, é oportuno lembrar que a referida lei também não teve a merecida divulgação nos veículos de comunicação de massa e nas instituições formadoras dos profissionais de saúde.

Além do Estado, a sociedade organizada também possui importante papel na multiplicação de informações e pode haver programas de esclarecimento à população através de empresas, indústrias, igrejas, associações de bairros, ONG's (Organizações Não Governamentais). A doação é vista como papel social e esta aprendizagem inicia-se em casa, na família.

Para que uma ação seja autônoma(13) devem ser cumpridas três condições propostas por Faden e Beauchamp, em sua obra A history and t heory of informed consent (publicado em 1986): intencionalidade, conhecimento adequado e ausência de controle externo. A intencionalidade refere-se a desejo ou motivação autêntica. O conhecimento diz respeito ao entendimento. Aqui surge um complicador, pois não está definido a priori que tipo de conhecimento e compreensão são exigidos para que a ação seja autônoma. Contudo, pode-se falar em conhecimento adequado quando existe a compreensão: da natureza da ação, das conseqüências previsíveis e dos resultados possíveis da execução ou não da ação. Controle externo refere-se a uma ação controladora externa e pode ter três modulações: coerção, manipulação e persuasão.

A intencionalidade não admite graus, "podendo-se falar em atos intencionais ou não intencionais. O conhecimento e o controle admitem graus" (13:24). Desta forma pode-se dizer que não existe ação completamente autônoma, mas pode-se "aspirar ações que sejam substancialmente autônomas" (13:24). Para que a doação de órgãos seja efetivamente legitimada como ação autônoma, é necessário encontrar estratégias éticas em que os possíveis doadores sintam-se seguros e protegidos, que desenvolvam intenção autêntica de doar órgão(s), livres de controle externo.

5 Conclusão O presente estudo representa uma concretização de esforços na tentativa de construção de um olhar bioético enfocando a doação de órgãos.

A partir da análise das falas dos 45 alunos de graduação de Enfermagem identificamos sua atitude positiva com relação à doação de órgãos, expressa na solidariedade com a "Manutenção da Vida". Contudo, coexiste o sentimento de vulnerabilidade, expresso na "Não Confiabilidade" nos profissionais envolvidos com a retirada de órgãos e insegurança quanto às garantias do cumprimento da legislação específica.

Entendemos que o cidadão somente será capaz de decidir sobre as questões da vida a partir do momento que receber informações suficientes.

Os bacharelandos em enfermagem expressaram "Desinformação" sobre a legislação de doação de órgãos em vigor até 2000, o que lhes impede constituir-se, neste momento, em multiplicadores de informações para a população, e, por outro lado, também, os torna alheios com relação ao emprego da sua autonomia para serem doadores de órgãos. Ao evidenciar esta situação, conclamamos esforços para que a mesma seja revertida mais rápido possível, pois somente com a construção de um conhecimento adequado sobre a doação de órgãos é que o cidadão/profissional de saúde poderá optar por ser doador ou não e, assim, terá chance de promover a melhoria da vida e bem estar de um receptor e ainda assumir este desafio como educador de saúde.

O olhar bioético nos trouxe a importância da divulgação do conhecimento como elemento básico à doação de órgãos.

O empenho da reconstrução da bioética no âmbito da formação dos enfermeiros é essencial. Não obstante, como revelado no estudo, existem ainda lacunas sob o ponto de vista teórico, temas que necessitam ser pesquisados para facilitar os enfermeiros no cotidiano pedagógico e ético de sua profissão, além da adoção da disciplina Bioética com o destaque que ela merece.

Ressaltamos a importância do papel do Estado na criação das leis, sua aplicabilidade e divulgação. Favorecer o consentimento voluntário para a doação de órgãos a nosso ver é a forma de garantir uma decisão mais justa e participativa. Como demonstrado neste estudo, as pessoas se propuseram a ser doadoras por visualizar o ato como uma conduta de ajudar o outro e representa o estímulo maior na ação. Eis a questão da doação de órgãos como atitude socialmente positiva.


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