A textualização de corpos doentes através de imagens: uma das lições da UTI
contemporânea
PESQUISA
A textualização de corpos doentes através de imagens: uma das lições da UTI
contemporânea*
Sick bodies textualized through images: what contemporary intensive therapy
unit can teach us
La textualización de cuerpos enfermos a través de imágenes: una de las
lecciones de la uti contemporánea
Mara Ambrosina de Oliveira VargasI; Dagmar Estermann MeyerII
IMestre em Educação. Professora Adjunta na Enfermagem da UNISINOS, Enfermeira
Assistencial do Centro de Tratamento Intensivo Adulto do Hospital de Clínicas
de Porto Alegre/UFRGS
IIDoutora em Educação. Professora Adjunta na Faculdade de Educação da UFRGS,
atual coordenadora do grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero, na
mesma instituição
1 Introdução
Este artigo é parte de uma dissertação em que se discutiu o que chamamos de
'processo de ciborguização da enfermeira' no contexto da unidade de terapia
intensiva. Para isso, buscamos apoio na teorização cultural e no trabalho de
autores e autoras que têm problematizado a noção de corpo e de sujeito na pós-
modernidade a partir dos pressupostos teóricos do pós-estruturalismo. Ao seguir
tais pressupostos, entendeu-se que tanto o humano quanto a máquina são
significados culturalmente e que tais significados têm sido produzidos dentro
de práticas discursivas específicas. Desde essa perspectiva, procuramos
evidenciar, dentre as lições decorrentes do uso intensivo da tecnologia no
contexto de saúde, de modo geral, e na UTI, em especial, uma problemática
particular, qual seja, a da conversão dos/as profissionais em híbridos humanos-
máquinas.
Entre os/as autores /as utilizados, indicamos os estudos de Donna Haraway(1, 2,
3) e seu entendimento de ciborgue ' uma idéia produtiva que possibilita
explorar a ciborguização da cultura contemporânea e suas implicações para a
enfermagem em terapia intensiva. O confronto com a figura do ciborgue, um
construto que evidencia a ambíguidade das fronteiras onde as diferenças entre
máquinas e humanos são definidas e que, ao mesmo tempo, coloca em xeque um a
prioride "naturalidade", nos permite sustentar a noção de que a interface a
partir da qual se define o que vem a ser considerado "natural" e "não-natural"
está inserida em práticas culturais e sociais complexas e, em última análise,
contingentes. Com o conceito de ciborgue buscamos operar, no contexto da
problematizaçãodesenvolvida no estudo, no próprio limiar entre as fronteiras do
que tem sido afirmado e reafirmado como sendo saúde, doença, vida, morte,
humano e tecnologia, natural e artificial, orgânico e inorgânico.
Para isso escolhemos como corpus de análise, dentre vários materiais
pedagógicos disponibilizados para a equipe de enfermagem em terapia intensiva,
alguns manuais e protocolos assistenciais. A partir do exame desses manuais e
protocolos assistenciais, procuramos argumentar que, mesmo quando estes operam
com algumas polaridades e posicionamentos bem delimitados por pressupostos
científicos, o fazem com uma certa ambigüidade quando se trata de abordar ou
descrever a relação enfermeira-máquina. Cientes de que tal ambigüidade não é
explícita, o exercício que fizemos foi o de, justamente, pretender dar-lhe
visibilidade. Sob os pressupostos da análise cultural, os manuais e protocolos
assistenciais funcionaram como textos culturais que nos permitiram discutir
mudanças das/nas práticas da enfermeira intensivista mediante sua imbricação
com os equipamentos da tecnobiomedicina, da bioeletrônica e da informática.
Este artigo, em particular, aborda um dos acontecimentos analisados nessa
pesquisa mais ampla, o qual, em nossa opinião, sintetiza significados
importantes produzidos pela articulação humano-máquina, na terapia intensiva,
na contemporaneidade, a saber: a produção de imagens de corpos doentes e sua
decodificação, através de um complexo sistema de monitoramento no qual se
conectam, de diferentes modos e com diferentes efeitos, corpos doentes,
máquinas e corpos de profissionais da enfermagem.
2 Imagens que textualizam corpos doentes
Descartes tem sido considerado o principal mentor da separação entre o corpo e
a mente na Modernidade. Sob a vigência desse pressuposto, já no século XVIII,
falava-se em doenças da mente e doenças do corpo. O hospital, desde então,
tornou-se o grande centro dos estudos das doenças do corpo e, nesse lugar, o
corpo foi constituído e significado pela linguagem enquanto objeto do saber. A
doença, por sua vez, enquanto linguagem, significou o corpo como um corpo
doente.
Atualmente, a UTI, como um cenário caracterizado, entre outras coisas, pela
utilização de diversos equipamentos, significa o corpo como corpo gravemente
doente, exatamente, porque ele se encontra acoplado à máquina. A máquina
hibridizada com a enfermeira intensivista transforma o corpo gravemente doente,
através de distintas linguagens imagéticas, em texto. Essas imagens de corpos
doentes, geradas pelo acoplamento de um paciente e/ou uma enfermeira às mais
diversas máquinas na UTI, reconfiguram estes corpos como textos que devem ser
decifrados ou lidos pela enfermeira intensivista, e não como algo a ser
contemplado. Nessa perspectiva, essas imagens passam a ser vistas como uma
construção e como discurso. Assim, o que nós vemos é o que aprendemos a ver.
Aprendemos, pois, a ver e a interpretar o que vemos de muitas formas
diferentes. E o que aqui nos interessa é o modo como olhamos essas imagens ou,
ainda, o modo como traduzimos o que olhamos, mediadas por tais imagens. Opera-
se, aí, no mínimo, um duplo aprendizado: aprendemos a olhar, conhecer e definir
corpos com essas imagens e aprendemos a operar com eles, de determinado modo, a
partir dessas imagens. Tomamos decisões terapêuticas e do cuidar em enfermagem
apoiadas no conhecimento extraído dessas imagens.
A questão do olhar tem estado no centro da análise cultural. Visão, observação
e registro são "inseparáveis nas estratégias de inscrição utilizadas pela
ciência"(4:60). Assim como há uma conexão necessária entre processos de
significação e poder, há também uma conexão "correspondente entre visão e
poder. Por seu caráter ativo, a visão é, de todos os sentidos, talvez aquele
que mais expresse a presença e a eficácia do poder"(4:60).
Visualizar os corpos já era uma prática importante no século XVIII e início do
século XIX com a intensificação da relação da ciência com a medicina. A obra
Nascimento da Clínica(5), propôs-se a discutir os modos pelos quais o corpo foi
tomado como alvo e objeto de saber, e isso viabilizou-se através da
possibilidade de desvelar, historicamente, a medicina como ciência justamente
porque estava nascendo, através da experiência clínica, uma nova forma de lidar
com a doença. Deste modo, a experiência clínica armava-se para explorar um novo
espaço: o espaço tangível do corpo doente sob o olhar médico. Percebido sob
esse olhar, o corpo doente era falado, classificado e organizado em tipologias
nosológicas, as quais não existiriam em essência, mas como doença de um corpo
específico, concreto. A linguagem médica era vista em perfeita articulação com
seu objeto, o corpo doente percebido pelo olhar daquele que examinava(5). A
ciência denominou esse jeito de olhar de exame físico ou de anamnese clínica,
olhar direcionado por informações subjetivas ou por características
disseminadas nas superfícies dos corpos-pacientes.
Com o desenvolvimento da anatomia patológica por Morgagni em 1760, a análise
clínica passa a ser realizada no interior do próprio corpo doente, ou seja,
busca-se desvelar na profundidade das coisas o que estava disseminado nas
superfícies dos corpos. A anatomia patológica fundamentou-se, principalmente,
no princípio de que as lesões explicavam os sintomas objetivos e subjetivos.
Nesse sentido, o olhar do pesquisador começa a descrever a intimidade do corpo
humano a partir da abertura sistemática de cadáveres e, com essa prática, a
fronteira onde a doença era lida somente pelo testemunho mórbido ou pelos
sinais visíveis na superfície do corpo-paciente foi ultrapassada. Sendo assim,
o médico procura a essência da lesão em sua organização histológica, já que,
munido de elementos nosológicos, ele a re/conhece por que a vê.
Em suma, com a perspectiva positivista, a doença desprende-se da metafísica, e
é na contramão desse pressuposto que se apresenta o caráter positivista da
exploração do corpo ' um corpo iluminado, que se deixa ver, minuciosamente
explicado e subjugado às leis que justificam os dados recolhidos através de sua
observação e que legitimam os processos de detecção de doenças ou causas
mórbidas através da visibilidade da morte. A doença, a vida e a morte deixavam
de ser um mistério existencial e tornavam-se um problema técnico.
A medicina, em plena emergência do século XXI, ainda estabelece uma relação da
doença com a sintomatologia subjetiva do indivíduo e trata os dados objetivos
como sinais. No entanto, a morte deixou, há muito, de ser a única ou a mais
importante fonte de conhecimentos acerca dos corpos. A esse respeito mesmo
entendendo que essa medicina atual ainda está centrada no Positivismo é
afirmado que a concepção atual de lei apresenta alguma variação.
Essa lei não é mais aquela que se confirma com a totalidade dos
casos, mas aquela de perspectiva probabilística e feita sob certas
condições, já que o arcabouço tecnológico se mostra mais sensível às
variações do real(6:25).
Convém lembrar que a informação gerada a partir desse aparato tecnobiomédico é,
na maioria das vezes, numerizada. Assim, mesmo que no contexto de intensivismo
operemos muito com a linguagem da biologia, é, todavia, a linguagem matemática,
cujo instrumento é o número, que aí impera. Nesta perspectiva existe informação
quando a mensagem a ser decodificada não carrega mais nenhum traço de seu
sentido. Se o corpo-paciente já não pode dizer de si e se a enfermeira
intensivista também já não pode dizer do que vê sem a mediação da máquina,
poder-se-ia argumentar que a máquina diz aquilo que paciente e profissional não
disseram. A relação, nesse caso, não é mais de ver e re/conhecer, mas de
substituir a presença do corpo concreto, escrevendo-o em números, delimitando
as suas medidas, os seus valores. A enfermeira, por sua vez, traduz essa
linguagem matemática em um texto que pode ser lido como substitutivo das coisas
do corpo-paciente.
Seria, então, possível dizer que, ao textualizar o corpo de determinados modos,
a máquina o constitui com outros sentidos? Se respondermos positivamente a esta
questão, podemos, então, operar com o pressuposto de que é pela possibilidade
de olhar o corpo pela máquina que o mesmo é configurado de outra forma, não
mais idêntica a esse corpo-paciente; é com e através da máquina que ele se
transforma em outro texto, com outros sentidos em relação a alguma percepção
concreta desse mesmo corpo; um texto que é legível, com determinados efeitos,
nesse campo profissional:
Devido à utilização rotineira da monitorização cardíaca, as arritmias
cardíacas são freqüentemente identificadas no paciente internado em
centro de terapia intensiva(8:86).
CONTROLE, ACOMPANHAMENTO E MANUTENÇÃO DO PROCEDIMENTO PELA ENFERMEIRA
Observar e anotar todos os parâmetros das pressões: PAD (pressão do
átrio direito), PAP (pressão da artéria pulmonar), POAP (pressão de
oclusão da artéria pulmonar) e três medições de DC.(débito cardíaco)
Para qualquer valor que não corresponda à clínica e tratamento
instituído, tomar providências junto com os médicos, para a correção
imediata.[...]Observar a morfologia das curvas, identificando a
posição ideal do catéter.[...]Zerar o transdutor a cada oito horas.
[...]Observar presença de ar no sistema. Checar todas as conexões a
todo instante(9:349-50-52).
As medidas das pressões sangüíneas (PAD, PAP e POAP) e da quantidade de volume
de sangue injetado pelo coração por minuto (DC) e o controle de uma possível
alteração no ritmo cardíaco, tal como são explicitadas nessas citações,
constituem valores capazes de traduzir alguma anormalidade ou normalidade do
corpo-paciente, justamente porque é o discurso do intensivismo que atribui
sentidos a elas. Dessa maneira, fora da UTI e sem a leitura feita pelos/as
profissionais que lá trabalham quando identificam e relacionam os números, as
curvas, as ondas, os gráficos, os traçados e as imagens do visoscópio com o
corpo-paciente, tais medidas seriam destituídas de qualquer sentido, ou, no
mínimo, produziriam outros possíveis sentidos.
Em função disso, as UTIs têm-se constituído como um locus onde um conjunto
renovado de saberes e de aparatos tecnológicos torna possível esse acesso
rápido às variações do que tem sido definido como real. A transformação das
informações acerca dos dados fisiológicos e de relatos subjetivos em
estimativas objetivas faz com que a evidência de alteração clínica consiga ser
avaliada antes mesmo de o indivíduo percebê-la:
Em cuidados intensivos, você precisa da monitorização que é sempre
predizível. Porque seus pacientes não são predizíveis(10).
Uma consulta ao dicionário informa que monitorizar significa prevenir, avisar,
avaliar e agir. No caso das UTIs, a monitorização visa à medição freqüente e
repetida das variáveis fisiológicas e constitui-se na base da estruturação de
uma unidade de tratamento intensivo. Não há terapia intensiva sem monitorização
intensiva. A monitorização hemodinâmica invasiva e não-invasiva, por sua vez, é
utilizada para o diagnóstico, para a terapêutica e, até mesmo, para fazer um
prognóstico com os dados obtidos. Sua finalidade é fazer com que o/
a profissional reconheça e avalie possíveis problemas, em tempo hábil, com o
objetivo de estabelecer uma terapia adequada imediata(11).
Passo 2. Certifique-se de que o Servidor de Medidas está conectado ao
monitor. Passo 3. Se o paciente já está ligado ao Servidor de
Medidas, deve-se poder visualizar as ondas e os valores numéricos
configurados na tela. Caso contrário: coloque no paciente os
eletrodos sondas ou transdutores, ou insira os cateteres de pressão
necessários para monitorização. Conecte os eletrodos, sondas e
transdutores ao Servidor de Medidas. Treine algumas vezes para
aprender a diferença de pressão entre os dois níveis ' pode-se
treinar primeiro realçando e depois selecionando a Tecla de Função
'Tendências' (pressione a tecla azul Tela Principal para voltar à
tela principal de monitorização)(12:37).
Este excerto indica que os diversos tubos, as linhas, os transdutores e os
cateteres devem estar conectados ao/à paciente e, ao mesmo tempo, aos
computadores. O que inferimos, através dessa indicação, é que estaríamos, com
essas possíveis conexões dos equipamentos com o corpo-paciente, lidando com
diversas câmeras que, por sua vez, estariam filmando o corpo-paciente. São
diferentes filmagens, de diversos ângulos, que nos são mostradas
concomitantemente. Verdadeiro espetáculo do olhar: corpo-paciente, construído e
reconstruído como objeto concreto do discurso da tecnobiomedicina. Tais
sentidos capturados do corpo, no entanto, não estão dados nas imagens geradas
pelos equipamentos. Eles só se concretizam quando passam a ser lidos de
determinado modo pelos/as profissionais subjetivados/as por esse discurso.
Esses sujeitos-profissionais, conectados aos computadores utilizados nas mais
diversas máquinas da tecnobiomedicina, vivenciam, então, novas maneiras de ver
o corpo. Não se trata de ver melhor ou pior, mas de ver de outro modo.
Portanto, pode-se considerar que aqueles/as que trabalham em um ambiente
complexo e carregado de monitoramento conseguem ver os/as pacientes de
diferentes perspectivas, em muitos locais de seu corpo, porque os computadores,
através do processo de decodificação dos sinais, transformam o corpo em
informação. Ou, também, é possível observar que esses/as profissionais
visualizam a mesma imagem repetidas vezes, já que o sistema de monitoramento
armazena informações ' tem memória ', possibilitando a leitura e releitura dos
corpos-pacientes. Para além disso, é possível dizer que uma enfermeira
intensivista, diante do monitor microprocessado, multiplica todo um complexo de
informações sobre o corpo-paciente e cria uma noção de conjunto inacessível ao/
à profissional que utiliza apenas a sua capacidade de observar através dos
sentidos, e, no contexto desta investigação, tudo isso concorre para demonstrar
um processo de ciborguização da enfermeira intensivista.
No entanto, a discussão que desejamos introduzir, aqui, aponta para o aspecto
do quanto devemos nos tornar responsáveis pelo que aprendemos a ver. Nesta
direção, desde essa perspectiva de análise, entendemos que as delimitações de
algumas polaridades são teorizadas muito mais como movimentos de poder do que
movimentos em direção a verdade. Ou seja, ressaltamos o caráter dinâmico das
tecnologias médicas como instrumentos para a imposição de novos significados e
o que tem sido validado em cada época para traduzir a realidade do corpo doente
(1-3). Essa tradução da realidade do corpo doente, mesmo que envolvida em um
processo contínuo de diferenciação, em dado momento é fixada através de alguma/
s polaridade/s. Isto é, na medida em que entram em jogo outras opções
tecnológicas, algumas polaridades são secundarizadas, outras são invertidas (o
termo que em um primeiro momento é privilegiado, em outro momento,
interessadamente é deslocado) e poucas são até abandonadas. Mas, ao nosso ver,
para além de examinar as relações entre os termos que constituem uma
determinada dicotomia, esse próprio caráter dinâmico do que conta como verdade
também entra em um processo de diferimento. O modo de abordar a monitorização
hemodinâmica nas edições de 90, 93 e 2001 do manual Rotinas em Terapia
Intensiva permite discutir melhor esse processo:
A monitorização hemodinâmica é mais uma arma no manejo do paciente
gravemente enfermo, e como tal deve ser adequadamente utilizada.
Nunca deve ser subvalorizada a avaliação subjetiva do paciente, que a
despeito de toda a moderna tecnologia ainda persiste como o maior e
melhor método de avaliação. Dados erroneamente coletados ou
interpretados podem conduzir a caminhos desastrosos. Assim, é
importante avaliação meticulosa de cada valor obtido durante a
monitorização. Finalmente, um conceito que deve estar sempre presente
é o de que monitorar não é tratar, mas sim discernir a orientação a
ser tomada (13:55).
Os catéteres de Swan-Ganz [ ] representam um grande auxílio na coleta
de informações do paciente gravemente enfermo, na medida em que
fornecem um meio fácil, seguro e contínuo de verificar pressões de
artéria pulmonar e de encunhamento capilar pulmonar [...] e débito
cardíaco (14:307).
As controvérsias quanto às indicações do uso do cateterismo cardíaco
à beira do leito se devem ao fato de os estudos clínicos não terem
demonstrado a diferença no prognóstico final dos pacientes que o
utilizam(15:47).
Em um primeiro momento, em 1990, o procedimento da monitorização hemodinâmica à
beira de leito, recém inserido no contexto da terapia intensiva, mostrava-se
como algo promissor e ainda percebido como algo a ser melhorado, conhecido e
explorado pelos profissionais que o utilizariam. Isto é, mesmo que a inserção
do cateter de Swan-Ganzfosse entendida como um importante avanço, tal
procedimento era associado a outras maneiras de observar e obter dados da
doença de um determinado paciente. Naquele momento, a dicotomia que ancorava a
argumentação desenvolvida era, nada mais, nada menos, do que a relação dados
subjetivos/dados objetivos. Aí, importava como os sintomas referidos pelos
pacientes eram avaliados na sua interface com a máquina e como os sintomas
detectados pelo humano, através da máquina, eram avaliados na sua interface com
o humano. Já em 1993, pela intensificação da utilização desse procedimento,
enfatizavam-se suas vantagens sobre os outros procedimentos possíveis de serem
realizados à beira do leito. A polaridade inverteu-se em 1993 para operar a
validação e confiabilidade dos dados objetivos em detrimento dos dados
subjetivos. Subjetividade versus objetividade, objetividade versus
subjetividade, o sujeito que investiga o corpo é subjetivado em sua relação com
a máquina; o corpo como objeto de investigação é objetivado em sua relação com
a máquina. Desconstruir essa polaridade é torná-los, ambos, sujeito e objeto de
(e dentro de) um mesmo jogo de significação. Humano e máquina são pensados como
sujeito e objeto do conhecimento, em uma relação paralela. Nessa relação
paralela, corpos e máquinas não jazem inertes prontos para serem lidos. Assim,
o/a paciente fornecendo informações ao/à profissional acerca de seus sintomas e
a máquina fornecendo informação à/ao profissional, através de medições e
estimativas, são relações que estão inseridas em um mesmo conhecimento
específico, constituído em uma relação social de conversa carregada de poder
(2).
Porém, em 2001, pelo aprimoramento de outros procedimentos considerados menos
invasivos no corpo-paciente, percebe-se ao mesmo tempo um declínio, assim como
um certo desestímulo, para a utilização desse tipo de monitorização. Ou seja,
entra em cena, no discurso tecnobiomédico, a relação entre os procedimentos
invasivos e os procedimentos não-invasivos. É importante observar que invasivo,
neste exemplo do cateter de Swan-Ganz, está sendo entendido como algo que é
inserido no interior do corpo-paciente e que permanece em seu interior. Ou
seja, é estabelecido um contato profundo e contínuo com o interior desse corpo-
paciente. Não-invasivo, por outro lado, é entendido como algo que entra em
contato com o corpo-paciente, mas esse contato é feito ora pela superfície da
pele ou com o que é nomeado como parte externa do corpo do paciente, ora com a
sua parte interna. Isto é, alguns procedimentos ditos não-invasivos também são
inseridos internamente no paciente. O que muda em relação aos invasivos é o
fato de não permanecerem, ali, continuamente. Independentemente disso, tanto a
monitorização invasiva quanto a não-invasiva propõem-se a visualizar o interior
do indivíduo. Mais uma vez, a opacidade corporal, que impediria que víssemos as
estruturas que compõem os nossos corpos, deixa de ser problema. Através dos
procedimentos invasivo e não-invasivo, podemos pensar que as relações entre
dentro/fora ou, mais explicitamente, entre a superfície e o interior articulam-
se de maneira combinada: o interior é superficializado, e a superfície,
interiorizada.
Ainda nessa direção, é pertinenteapontar para o aspecto de que, desde 1960, com
a união entre computadores e a tecnologia médica do Raio X, tem sido possível a
obtenção de imagens das estruturas internas e das funções do corpo humano e que
estas, somadas à habilidade do profissional, contribuem para a elaboração de
diagnósticos de determinadas doenças. Sendo assim, a pele não se constitui mais
numa barreira para a técnica visualizar o interior do corpo, e a
tecnobiomedicina transforma aquilo que é invisível "a olho nu" em dado visível,
atribuindo-lhe um statusde realidade(16). Por conseguinte, as enfermeiras
intensivistas, também, tornam-se especialistas em exteriorizar o que ainda é
nomeado e reconhecido como sendo o interior do corpo, através de todo um
aparato de monitoramento.
Em suma, polaridades como o profundo e o superficial, o dentro e o fora, o
interior e o exterior e o subjetivo e o objetivo são distinções que a/
o profissional enfermeira/o, ao desenvolver seu trabalho plugando-se com a
máquina na UTI, torna problemáticas e suscetíveis de serem desconstruídas.
Desse modo, o caráter naturalizado do que pode ser considerado como profundo,
dentro, interior e subjetivo nessa experiência de visão é questionado e
deslocado, justamente, pela polaridade considerada antagônica: superficial,
fora, exterior e objetivo.
O corpo não cessa de ser redescoberto ao mesmo tempo em que nunca é totalmente
revelado(7). Essa assertiva de Sant'anna remonta à questão de que esse corpo
não existe como essência, que não é algo que esteja simplesmente aí à espera de
ser revelado, descoberto ou respeitado. E, nessa direção, podemos dizer que
"aquilo que se vê depende de onde nos situamos e quando. O que pretendemos,
pela visão, é função da nossa posição no tempo e no espaço"(16:1). Normalmente,
os usuários das tecnologias geradoras de imagens não constumam questionar a
objetividade, neutralidade e veracidade dessas imagens.
As imagens produzidas pelos artefatos tecnológicos são, em geral,
tidas como evidências médicas, objetivas e confiáveis, ou seja,
assume-se que a interpretação dessas imagens é não-problemática, que
'aquilo que se vê é o que é na realidade'(16:1).
Assim, entre esses usuários, o que passa a importar são as traduções que
objetivam esclarecer os modos de conhecer o corpo através das tecnologias de
visualização. A partir desse pressuposto, em meio a uma gama possível de coisas
que aí importam, desejamos sinalizar, através de duas indagações, outro viés
dessa discussão: em um ambiente permeado pela tecnobiomedicina, o que conta
como verdade e como essa verdade é contada? A quem se destinam os guias e os
manuais de orientação acerca dos equipamentos disponibilizados pela indústria
da tecnobiomedicina?
Este guia destina-se aos Engenheiros Biomédicos do hospital ou aos
Especialistas Clínicos e de Manutenção da Hewlett-Packard que têm que
executar os procedimentos de configuração do HP Viridia M3/M4.
Destina-se também às Enfermeiras e Clínicos que necessitam alterar a
configuração do equipamento de acordo com as suas necessidades (17:
1).
Contém todas as informações gerais acerca do monitor e é um bom ponto
de partida para novos usuários, pois proporciona urna introdução ao
sistema e ao seu modo de funcionamento, mostra como começar a
utilizá-lo e fornece informações passo a passo sobre o uso de teclas
na utilização do monitor(12:5).
Equipamento projetado e construído para satisfazer os mais rígidos
critérios de qualidade e precisão. Emprega a mais recente tecnologia
em arquitetura computadorizada dedicada, visando a maior rapidez e
eficiência no diagnóstico e acompanhamento dos clientes
monitorizados. É um aparelho modular, podendo ser fornecido em
diversas configurações distintas, conforme as necessidades. O
aparelho é fabricado de modo a possibilitar ao usuário a ampliação, a
posteriori, para qualquer configuração, dentro das seguintes opções:
ECG; pressão não-invasiva; temperatura; débito cardíaco; freqüência
respiratória; oximetria de pulso. É um aparelho auto-explicativo,
possuindo uma tela de auxílio para o usuário, mostrando o significado
das principais teclas usadas na operação (9:325-6).
As duas primeiras citações indicam que um guia do usuário deve ser capaz de
traduzir para usuários/as, explicitamente indicados/as, os modos de utilização
adequada dos mais diversos equipamentos. A terceira citação anuncia a mesma
coisa, mas de outro modo. Ou seja, tal citação sinaliza que um equipamento
moderno deve ser auto-explicativo para o/a usuário/a e, nesse caso, à medida em
que o/a usuário/a utiliza essa máquina, ele/ela estará interagindo com ela. No
entanto, balizadas em algumas das concepções que estudamos(18), entendemos que
o conhecimento teórico-técnico-científico, se aplicado, entre outros campos
possíveis atualmente, na tecnobiomedicina, implica uma mudança radical na
atuação, também, de quem projeta os equipamentos utilizados na terapia
intensiva. Nessa direção, mesmo que estejamos, aqui, tratando dos/as usuários/
as desses equipamentos no contexto da UTI, e mesmo que centralizemos nossa
discussão na questão da tradução adequada aos/às usuários/as que aplicarão
esses inventos em outros seres humanos e, em função disso, estejamos nos
referindo a nós, técnicos/as usuários/as desses equipamentos, não podemos
abster-nos de articular esse tipo de tradução a um contexto sociocultural mais
amplo. Latour faz uma utilização prática do conceito de tradução quando discute
sua teoria de rede sociotécnica. Traduzir, para Latour, significa
atribuir a um elemento de uma rede um papel a ser representado por
ele; significa emprestar-lhe uma identidade, prática que é realizada
por todos os elementos de uma rede num movimento mútuo e contínuo, a
partir dos desejos, expectativas ou interesses de cada um dos
'tradutores(20:54).
Mas, para que as traduções passem a ser consideradas corretas e, portanto,
sejam tomadas como indiscutíveis, uma entidade a quem se atribui um papel dado
não deve contradizer seu tradutor ou porta-voz.
Uma tradução bem-sucedida "depende assim da capacidade de negociação dos
atores, na medida em que definir papéis supõe convencer os outros a desempenhá-
los"(19). Deste modo, nessa rede sociotécnica, os engenheiros seriam os
tradutores dos comportamentos dos/das futuros/as usuários/as - enfermeiras,
médicos/as e engenheiros/as biomédicos hospitalares - e dos artefatos -
equipamentos tecnobiomédicos - que projetam.
O senso de visão dos pesquisadores e pesquisadoras deveria ser inserido também
como tema para todos os argumentos tecnológicos. Podemos, então, afirmar que,
na terapia intensiva, o status do olhar é dispersado através dos instrumentos e
dos/as profissionais que olham, todos ' instrumentos e profissionais '
celebrados pelas suas habilidades de avivar o corpo dentro de um campo de
alcance da visibilidade. Consideramos, pois, que estamos lidando, novamente,
com um processo de reorganização desse olhar, uma vez que o sentido do
monitoramento acaba por refletir um novo status do corpo como um sistema móvel
de reorganização de novos tipos de corpos. Deste modo, o scopedo monitor
distancia o observador de uma visão de corpo que é vista em geral fora desse
ambiente permeado por sistema de monitoramento. Sendo assim, o sistema de
scopia, tal como abordado aqui, diz de uma imagem ampliada das estruturas
internas e externas do corpo; dos espaços corporais que são visualizados e dos
espaços corporais que não são visualizados; e de uma técnica específica para
olhar a partir desses instrumentos tecnológicos de visualização(20).
É interessante observar com a autora(20) que é comumente sustentado o aspecto
de que o sistema de scopia aumenta a extensão da visão de um observador ou
observadora, permitindo a percepção do oculto e das imperceptíveis estruturas
do corpo. Essa concepção de um sistema de scopiacomo aprimoramento do olhar de
quem olha, de certo modo, legitima a idéia de que existem algumas verdades que
são inquestionáveis(20). Em contrapartida, a partir da perspectiva de análise
adotada nesta investigação, entende-se o sistema de scopiaprojetado em
laboratório como um singular ponto de vista que adota técnicas para conseguir
olhar através da imagem da máquina, diferentemente da imagem do olho do
observador. O focusda máquina, o focusdo/a observador/a e o focusdo/
a observador/a através do focusda máquina são modos (convenções) privilegiados
de novas configurações de corpo, vida e subjetividade. Para além disso,
normalmente é "silenciado" o fato de que todo esse sistema óptico constitui-se
em um aparato de normas culturais e de poder acerca dos corpos e das
subjetividades. As posições do/a técnico/a (e nós aqui reutilizamos essa noção
para a enfermeira intensivista e para a própria máquina), do/a paciente e do
objeto (no caso o sistema de scopia) como posições instáveis e sujeitas, muitas
vezes, ao desaparecimento(20).
3 À guisa de conclusão
Poderíamos, aqui, nos estender através de um interminável número de trechos
extraídos dos manuais para problematizar diferentes modos pelos quais a máquina
escreve o corpo humano nas UTIs, constituindo-o, portanto, como outro(s) tipo
(s) de corpo(s). Nesse sentido, na terapia intensiva, há a possibilidade de a
profissional olhar o corpo do/a paciente através da máquina que o constitui a
partir de uma multiplicidade de imagens de corpos doentes. Assim, ao
explorarmos processos de textualização do corpo pela imagem, procuramos sempre
reforçar o aspecto de que o corpo é o que dizemos dele. Ele deixa, pois, de
constituir uma presença original. A máquina é uma escrita, um pensamento e um
texto. O corpo, olhado e decodidificado pela máquina, e na conexão do humano
com a máquina, também é uma escrita, um pensamento e um texto. Radicalizando:
tudo é escrita; a doença é escrita; o corpo humano é escrita. Se são escrita,
doença e corpo humano opõem-se à presença física e podem ser retirados e
extraídos de seu contexto. Deste modo, nenhum contexto esgota aquilo que ele
contém. Nenhum contexto pode encerrar-se em si mesmo.
Então, na medida em que nos vemos imbricadas nessa rede de relações,
responderíamos que o que conta como verdade e como essa verdade é contada em um
ambiente permeado pela tecnobiomedicina envolve compreender as relações entre a
indústria e a ciência e seus desdobramentos, em toda uma gama de métodos que
resultam na dinâmica da aplicação dos mais diversos equipamentos(21). Nesse
sentido, a tradução, a informação gerada a partir dessa tradução e a tecnologia
são mutuamente constitutivas e estão, em última análise, intrinsecamente
articuladas. Em outras palavras, não se deveria pensar de forma separada e
estanque em equipamentos disponibilizados pela indústria da tecnobiomedina, em
enfermeiras intensivistas cuidando de seus/suas pacientes na UTI e na
informação gerada a partir desses equipamentos e suas implicações no tratar/
cuidar dos/das pacientes; seria necessário e pertinente, isto sim, visualizar e
problematizar toda essa rede de relações como instâncias de produção e
disseminação de sentidos sobre o corpo, a vida e o cuidar em enfermagem.