Exposição corporal do cliente durante a avaliação física em Unidade de Terapia
Intensiva
PESQUISA
Exposição corporal do cliente durante a avaliação física em Unidade de Terapia
Intensiva
Exhibition of the client's body during the physical examination in the
Intensive Care Unit
Exposición corporal del paciente en la evaluación física en Unidad de
Tratamiento Intensivo
Jussara Simone Lenzi PupulimI; Namie Okino SawadaII
IEnfermeira. Mestre em Enfermagem Fundamental. Professor Assistente do
Departamento de Enfermagem da Universidade Estadual de Maringá.
jslpupulim@bol.com.br
IIProfessor Doutor da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto Universidade de
São Paulo. Centro colaborador da OMS para o desenvolvimento da Pesquisa em
Enfermagem. sawada@eerp.usp.br
1. INTRODUÇÃO
A hospitalização imbrica aspectos que afetam direta e indiretamente o cliente,
sendo vista, geralmente, como fator de despersonalização pelo reconhecimento da
perda do controle sobre si mesmo e sobre os fatores que o atinge, somando-se a
dificuldade em preservar a identidade, a individualidade e a privacidade. Esta
visão é reforçada em face da exposição emocional e física a que os indivíduos
estão sujeitos, evidenciando sua fragilidade, incapacidade e insegurança.
Isto é mais nítido nas Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), onde o atendimento
se destina a clientes em estado grave. O tecnicismo e a racionalização
empreendidos para a resolutividade das questões que ameaçam a vida transpõem a
sensibilidade, conferindo a estes setores impessoalidade e desumanização. Além
disso, nestas unidades é comum o cliente permanecer desnudo, protegido com
lençol, predispondo-o à exibição física. Tal prática tem sido justificada pela
necessidade de manipulação do corpo e manuseio de equipamentos e materiais
durante a assistência, sobretudo em casos de emergência(1).
Dentre as atividades desenvolvidas na UTI, que envolvem a exposição do corpo do
cliente, destaca-se o exame físico pela importância fundamental para a obtenção
de informações e detecção de alterações no estado clínico. Entende-se que esse
método é imprescindível, porém não é a única fonte para a identificação de
irregularidades. Radiografia, exames laboratoriais, ultrassonografia,
tomografia, eletrocardiograma e outros, complementam os achados. Em se tratando
de terapia intensiva, os dados fornecidos pelo cliente e por familiares, os
procedimentos terapêuticos e equipamentos utilizados, também ajudam a
determinar anormalidades(2).
O contato físico entre cliente e profissional é inevitável na assistência em
UTI e necessário à avaliação física. O toque, o manuseio do corpo e o olhar são
inerentes ao ato de cuidar, estabelecendo uma relação íntima entre cuidador e
ser cuidado. O reconhecimento que a equipe de enfermagem é a que mais toca,
manipula e expõe o corpo do cliente, atuando como invasor da intimidade,
motivou a elaboração deste estudo, pressupondo-se que os profissionais, em
especial os da enfermagem, têm dificuldade para enfrentar problemas
relacionados à nudez e a privacidadea.
Acreditando que a identificação de aspectos circundantes à assistência
contribua para a qualidade do atendimento, para o processo de cuidar e de
humanização, o estudo objetivou analisar situações positivas e negativas,
relatadas por enfermeiras, implicando a exposição corporal do cliente na
assistência em UTI, os comportamentos das pessoas envolvidas e as conseqüências
para as próprias.
2. MÉTODO
Estudo descritivo com abordagem quanti-qualitativa, aplicando-se a Técnica do
Incidente Crítico (TIC)(3). Julgou-se a técnica adequada à pesquisa por
permitir evidenciar os elementos que circundam o processo de trabalho da
enfermagem, cuja realização compreende condutas e respostas, as quais podem
gerar resultados satisfatórios e insatisfatórios.
O estudo foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos,
sendo os dados coletados junto a 15 enfermeiras, total desse profissional nas
UTIs para adultos do município de Maringá-PR, onde executam assistência direta
ao cliente. Todas concordaram em participar do estudo após elucidação do tema,
objetivo, divulgação das informações, garantia do anonimato e privacidade,
mediante Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Resolução 196/96).
Destaca-se que não havia profissional do sexo masculino lotado no quadro de
funcionários das referidas UTIs.
O instrumento esclarece a intenção do estudo e a relevância da participação,
caracteriza os sujeitos e apresenta as questões sobre o tema a ser investigado,
as quais nortearam o relato de uma situação positiva, e de uma negativa,
envolvendo a exposição corporal do cliente durante a assistência na UTI. Assim,
as informantes forneceram dois relatos, um positivo e um negativo.
Constatou-se que nenhuma das enfermeiras tem especialização em UTI,
verificando-se a média de 08 anos de exercício profissional e de 5,4 anos de
atuação nesta unidade. As entrevistas ocorreram em agosto e setembro de 2002,
durando em média de 45 a 60 minutos. Os sujeitos foram orientados a fixar-se
aos fatos do caso experenciado, de forma precisa e completa, sem se reportar a
eventos vivenciados e contados por outros. A pesquisadora registrou o relato
por escrito e leu-o ao final da entrevista para retificações, complementações e
confirmação das informações, o qual, posteriormente, foi redigido, codificado e
organizado. Os dados foram submetidos à análise de conteúdo, a fim de
sintetizá-los e descrevê-los eficientemente, buscando ampliar sua utilidade sem
lesar a validade, compreensão e especificidade(3), para se extraírem os
incidentes críticos positivos (ICPs) e negativos (ICNs), apontados pelas
informantes.
Inicialmente separaram-se os relatos segundo a atribuição emitida pelos
sujeitos, positiva e negativa. Em seguida, após leituras extenuantes,
identificaram-se as situações, os comportamentos e as conseqüências (3).
Assinala-se que as condutas da equipe de saúde e dos clientes, e os efeitos
para os próprios, foram identificados sob a ótica das enfermeiras. Na
seqüência, os dados foram agrupados, lidos repetidas vezes e reunidos conforme
as similaridades. Nesta etapa definiram-se subcategorias de comportamento e
conseqüência, o que favoreceu a categorização.
3. RESULTADOS
Obtiveram-se 30 relatos, 15 positivos e 15 negativos, dos quais extraíram-se 52
(100%) incidentes críticos, 22 (42,3%) positivos e 30 (57,7%) negativos. A
análise dos dados permitiu a definição de seis categorias de situação relativas
à exposição do corpo do cliente durante a assistência na UTI, apresentadas na
Tabela_1.
Optou-se por discutir a categoria avaliação físicapela relevância à definição
do tratamento e condução da assistência, pela participação da enfermagem e de
outros profissionais da saúde, e por apresentar a quarta maior freqüência
(15,3%) entre os incidentes críticos identificados. Tal categoria englobou uma
avaliação de região genital com referência positiva e outra negativa; três
avaliações cardiorrespiratórias, uma positiva e duas negativas; e uma
atribuição negativa para avaliação neurológica, eletrocardiográfica (ECG) e
radiográfica (Rx), respectivamente. Dentre essas, predominaram situações nos
ICNs (11,5%), sendo minoria nos ICPs (3,8%). Vale destacar, que quatro clientes
estavam conscientes, dois inconscientes, um semiconsciente e um confuso e
agitado, sendo seis mulheres e dois homens; a maioria em repouso no leito.
Entre as categorias de comportamento da equipe de saúde prevaleceu proteção e
manutenção da privacidade(Quadro_1), sobretudo exposição corporal parcial e
proteção corporal parcial do cliente. A categoria atitudes do profissional
emergiu apenas nos ICNs, predominando preocupação com o cliente, pela exibição
do corpo no exame físico, e desconsideração de alguns profissionais pelo
próprio ante sua nudez. Na questão de gênerodestacaram-se as condutas
envolvendo cuidador do sexo oposto. Em menor proporção, verifica-se orientação
ao clienteeorientação à equipe, consistindo em esclarecimento sobre cuidado ou
procedimento.
Os clientes emitiram poucos comportamentos (Quadro_1), prevalecendo proteção e
manutenção da privacidade, os quais versaram em reagir à exposição corporal.
Verificam-se, em menor proporção, atitudes do cliente e questão de gênero,
sendo preocupação com remoção das roupas e reação a cuidador do sexo oposto.
No Quadro_2 constam as categorias de conseqüências para a equipe, não sendo
evidenciadas nos ICPs. Nos sentimentos negativos sobressaiu sensação de mal-
estar e constrangimento. Na garantia da qualidade da assistência destacou-se
proteger a intimidade do cliente, e em relação ao prejuízo na qualidade da
assistência emergiu, somente, desproteção da intimidade do cliente.
Para os clientes (Quadro_2) também predominaram sentimentos negativosnos ICNs,
em especial constrangimento e vergonha. Nos sentimentos positivos sobressaíram
tranqüilidade (ICNs) e ficar à vontade (ICPs). Evidenciou-se, em menor
proporção, a proteção da intimidade (ICPs) como garantia da qualidade da
assistência, e submissão à atitude do profissional e desconsideração do próprio
ante a nudez do cliente (ICNs) no prejuízo na qualidade da assistência.
4. DISCUSSÃO
A complexidade das doenças que acometem os clientes internados em UTI suscita
avaliação física freqüente e, geralmente, envolve vários profissionais pela
característica da assistência e do tratamento empreendido. Dentre os eventos
identificados, observou-se que na avaliação neurológica em uma mulher de meia-
idade e semiconsciente (Escala de Coma de Glasgow), e também para o Rx de
tórax, em mulher jovem confusa e agitada, ambas foram expostas e manipuladas,
não se constatando um motivo concreto para tal. A primeira foi realizada por
enfermeiras e a segunda por técnico do serviço de radiologia acompanhado por
médico e elementos da enfermagem. Tais procedimentos são possíveis de se
realizar sem expor o tórax e partes íntimas da clientela(4-6). Pode-se deduzir,
então, que essa seja a razão para a atribuição negativa das informantes, visto
que nos dois casos houve exposição de mamas.
Por outro lado, as três avaliações médicas, dos sistemas cardíaco e
respiratório, exigiram exibição torácica para ausculta, percussão e observação
da ferida operatória, sendo realizadas em clientes do sexo feminino, uma idosa
consciente e duas adultas jovens, uma inconsciente e outra consciente. Para
tanto, é recomendável despir o cliente até a cintura por facilitar o exame
físico. No caso de tórax posterior, pode-se manter o anterior protegido(5). A
atribuição negativa a duas delas, assim como à execução de ECG, em mulher idosa
e consciente, leva a acreditar que as condutas dos profissionais foram
insatisfatórias ante a exposição torácica, indicando que também sensibilizaram
as informantes por envolverem as mamas. Ao contrário, percebe-se que a situação
positiva relacionada à avaliação médica gerou satisfação, embora realizada em
mulher adulta jovem inconsciente e envolver exposição mamária.
As duas avaliações de genitália, feitas por enfermeiras, consistiram na
observação e na inspeção local, conseqüentemente a região precisou ser exposta.
Ressalta-se que os dois clientes eram homens, um jovem e outro idoso, ambos
conscientes. Nestes casos, deve-se orientar o cliente sobre o procedimento,
expor somente a região a ser examinada, sendo conveniente evitar a presença
desnecessária de mais pessoas. Além disso, em se tratando de homem, pode-se
pedir a ele que desloque o pênis com o intuito de se visualizar melhor o local
(4). Entende-se que tal conduta minimize o desconforto do cliente quando o
examinador é do sexo feminino. A descrição de uma avaliação genital positiva
indica que a enfermeira também considerou a maneira de abordar o cliente, e as
condutas, apropriadas perante exibição de partes íntimas. Entretanto, outra
enfermeira avaliou negativamente uma situação similar, provavelmente por
tratar-se de homem idoso e pela reação dele por ela ser mulher.
Em síntese, na maioria das vezes em que se realizou avaliação física na UTI, as
enfermeiras perceberam aspectos que geraram desconforto e insatisfação, tanto
para a equipe como para os clientes, levando-as a apontá-las majoritariamente
com referência negativa. De fato, a enfermeira está capacitada para realizar
atividades que favoreçam "a identificação de problemas relacionados ao processo
saúde-doença", podendo contribuir, junto aos outros profissionais, para a
promoção da qualidade assistencial. Destaca-se a necessidade de conhecimento
sobre fisiologia, anatomia e técnicas básicas para a execução do exame físico,
tais como inspeção, percussão, palpação e ausculta(7).
No tocante ao exame físico realizado na UTI, pela variação do comprometimento
fisiológico, a enfermeira é quem, geralmente, detecta alterações significativas
no estado clínico do cliente, cabendo a ela alertar o médico. Porém, entende-se
que para tal, o profissional deve aprimorar a aptidão para observar, a qual
sinalizará a necessidade de reavaliar fisicamente o cliente. O papel da
enfermeira como examinadora é considerado como fundamental, entretanto, ela
deve ter competência para levantar dados e para tomar decisões diante de cada
circunstância(2). Reconhece-se, então, que a avaliação física não é de
competência exclusiva dos médicos, podendo e devendo, sobretudo na atenção ao
cliente grave, envolver outros profissionais, primordialmente a enfermagem.
Os resultados indicam que as informantes conferem significativa importância ao
exame físico na UTI, comprovando-se sua preocupação com a exposição do corpo do
cliente quando apontam aspectos intervenientes, negativos e positivos. Não
obstante, a constatação que a maioria das condutas voltadas ao resguardo da
privacidade foi emitida pela enfermagem demonstra que tal inquietação se
estende a todas as categorias dessa profissão. Assinala-se, que em várias
situações outro profissional realizou a avaliação física do cliente, todavia,
elementos da enfermagem participaram em todos os casos, direta ou
indiretamente.
Admite-se que manter a privacidade do cliente em UTI é uma tarefa difícil, pela
estrutura física e tipo de atendimento, embora o esforço da equipe em protegê-
la sinalize o seu valor. Mesmo assim, uma conduta configurou descuido à
proteção corporal nos ICNs, a qual consistiu em não cobrir o tórax de cliente
feminino após exame físico.
Em contrapartida, as poucas condutas dos clientes voltadas à sua privacidade
demonstram pudor (virar o rosto, se retrair ou tremer) e, sob a ótica das
enfermeiras, que alguns deles se importam em exibir o corpo, sobretudo partes
íntimas, visto que ambiente e profissionais são estranhos, explicitando a
necessidade de resgatar e manter sua privacidade (tentar se cobrir). Vale
lembrar que a maioria deles estava consciente.
O mesmo foi ratificado em estudo sobre a vivência da hospitalização, junto a
clientes em enfermarias, no qual se observou ausência de privacidade ao
presenciar a exposição corporal para exames e procedimentos(8). Outro estudo
comenta que as normas de privacidade, estabelecidas culturalmente, se redefinem
na interação entre a enfermagem e o cliente durante o cuidado(9). Em outras
palavras, o papel e a responsabilidade de prover o cuidado estabelece que o
preceito cultural de privacidade pode ser violado, e as pessoas
institucionalizadas freqüentemente percebem que as normas não são respeitadas.
Talvez isto explique o fato da enfermagem implementar mais medidas para
proteger a privacidade do cliente.
Acredita-se, também, que os clientes reagiram menos à proteção do corpo na
avaliação física em decorrência das condutas adotadas pela equipe ao resguardo
da intimidade. Por outro lado, permanecer em silêncio ou não se manifestar pode
ser devido ao entendimento de ter perdido o direito à privacidade a partir da
admissão e no decorrer da internação. Esses comportamentos parecem admitir que
os mecanismos de poder disciplinares aplicados nos hospitais configuram-se como
passaportes legais ao acesso e manuseio do corpo do cliente, reprimindo reações
e questionamentos(10).
Isto fica mais evidente quando, entre as atitudes do profissionalnos ICNs,
identificaram-se comportamentos que denotam desvalorização e desconsideração
pelo ser humano, o qual depende dos profissionais para seu restabelecimento,
como exigir que o cliente fosse mantido somente com lençol, chamar a atenção da
enfermagem na frente dele por mantê-lo com camisola, descobri-lo sem pedir
licença ou explicar o motivo, e apertar e torcer o mamilo para avaliar reflexos
dolorosos.
No entanto, boa parte dos profissionais, em especial os da enfermagem,
manifestou preocupação e dedicação pelo cliente, embora condutas que apontem
priorização aos cuidados intensivos, sob o ponto de vista técnico, também
tenham sido encontradas. Aparentemente a equipe está consciente da
desvalorização do cliente como sujeito do cuidado, tendo em vista que a
fragmentação do corpo pelo modelo biomédico vislumbra o homem como objeto,
aludindo impessoalidade. As rotinas do cotidiano na UTI podem coibir a
percepção dos profissionais. Observa-se, ainda, que a tecnologia ao mesmo tempo
em que dá segurança à equipe contribui para a despersonalização do cuidado em
detrimento das relações humanas(11,12).
Nesse sentido, admite-se que os intensivistas geralmente exteriorizam controle
emocional e racionalidade, imprimindo certa frieza e distanciamento na
interação com os clientes por priorizarem o tecnicismo e o mecanicismo.
Contudo, percebe-se que a equipe se importa com esta realidade na medida em que
adotam condutas que expressam sensibilidade e solidariedade, talvez na intenção
de minimizar a imagem automatizada conferida à assistência na terapia
intensiva. Ressalta-se que atitudes do profissional e do cliente não foram
identificadas entre os ICPs.
Os clientes também manifestaram preocupação com a exposição corporal para o
exame físico nos ICNs, embora tenham partido de um familiar (neto e médico
residente), igualmente considerado cliente, consistindo em atender solicitação
para permanecer junto ao cliente, do sexo feminino, e explicar a necessidade da
exposição torácica para ECG. Outro aspecto significativo foi questão de gênero,
tanto para a equipe como para os clientes. A participação de cuidador do sexo
oposto, como executor ou auxiliando cuidador do mesmo sexo do cliente,
incomodou a equipe, sobretudo a de enfermagem, visto que isso ocorreu na
maioria dos casos. Ao referir o sexo do(s) cuidador(es), as informantes
demonstram sua inquietação e revelam que consideram a identidade de gênero
relevante e inerente à realização do exame físico quando implica a exposição do
corpo.
Os clientes, por sua vez, manifestaram-se acerca de cuidador do sexo oposto
aceitando-o e concordando com a avaliação física somente após explicação sobre
a necessidade. Portanto, alguns deles se importam com o gênero do cuidador,
notando-se desconforto quando o profissional é do sexo oposto. Na verdade, as
condutas dos clientes e da equipe refletem os papéis definidos para homem e
mulher, incorporados no seu contexto social. De fato, a construção da
identidade de gênero implica em um processo de socialização e no
estabelecimento de padrões de relação homem-mulher, homem-homem e mulher-
mulher, influenciando as inúmeras maneiras pelas quais os indivíduos interagem,
e se integram, em uma dada sociedade(13). Refletindo acerca dessa colocação,
compreendem-se as reações dos clientes ante a possibilidade de expor-se para
cuidador de outro sexo. Ao reagiram, conforme os valores absorvidos no decorrer
de sua vida, eles demonstram que acham inconveniente despir-se para outras
pessoas, em especial do sexo oposto, e ainda estar sujeito à manipulação.
Na seqüência, orientações ao cliente (ICNs), emitidas principalmente pela
enfermagem, versaram sobre questões técnicas e exposição corporal, indicando
que os profissionais valorizam as explicações e as consideram indispensáveis
para a execução do exame físico, sobretudo quando implica partes íntimas,
embora priorizem os aspectos técnicos. Por outro lado, as poucas orientações à
equipe de saúde (ICNs), a um grupo de estagiárias de curso técnico em
enfermagem envolvidas com a assistência na UTI sobre a Escala de Coma de
Glasgow e avaliar presença de reflexos dolorosos, permite deduzir que o
entendimento comum é que os profissionais estão "sempre" preparados para
realizar o exame físico, visto que não foram encontradas orientações
direcionadas à equipe.
Assinala-se que a socialização do conhecimento deve ser um processo contínuo no
cotidiano profissional, essencialmente em unidades críticas, onde complicações
e intercorrências são freqüentes. Nesses casos a avaliação físicafaz-se
imprescindível e, quando realizada adequadamente, pode desencadear intervenções
a fim de prevenir ou impedir a evolução de um quadro clínico indesejável e que
ameace a vida do cliente.
Focalizando as situações relatadas e os comportamentos das pessoas envolvidas,
a exposição corporal produziu conseqüências, sendo as negativas mais
expressivas para clientes e equipe nos ICNs. É perceptível, que na maioria dos
casos, elas emergiram por tratar-se de genitália ou mamas, da diferença de
gênero e das condutas dos profissionais. Observou-se, ainda, que o descuido à
preservação da intimidade e a insensibilidade de alguns profissionais às
emoções do cliente geraram várias sensações desagradáveis.
A única emoção negativa manifestada pelos clientes nos ICPs foi sensação de
mal-estar, enquanto nos ICNs prevaleceram constrangimento e vergonha, e em
minoria indignação e mal-estar. Os sentimentos negativos emitidos pela equipe
(ICNs), mal-estar, constrangimento, preocupação e insegurança, sugerem que, tal
como os clientes, os profissionais também sentem desconforto ante a nudez,
sobretudo quando percebem as reações daqueles. O fato demonstra que os valores
e as crenças incorporados influenciaram tais manifestações, denotando-se ainda,
que apesar da visão de insensibilidade conferida aos intensivistas, as emoções
afloraram em determinados eventos. Na mesma vertente, um estudo descreveu as
reações de indivíduos que compartilhavam a mesma enfermaria durante a
realização de procedimentos, cujos sentimentos foram indignação,
constrangimento, vergonha, humilhação e desrespeito(8).
Em contrapartida, os clientes esboçaram mais sentimentos positivos nos ICNs,
sendo tranqüilidade, ficar à vontade e sensação de bem-estar. No entanto, a
equipe manifestou somente bem-estar (ICNs). É nítido que a maioria das emoções
positivas emitidas pelos clientes derivou das ações para a proteção da
intimidade, do respeito dos profissionais e das explicações. Porém, muitas
emergiram após modificação ou adoção de condutas pela equipe ao perceber a
insatisfação dos clientes, relacionada a alguns aspectos que permearam o exame
físico, no intento de minimizar os problemas.
Depreende-se, então, que a insatisfação dos clientes reverteu positivamente
conforme a avaliação física foi sendo realizada, seja porque sua inquietação
era infundada, seja porque as condutas adotadas pela equipe foram aceitáveis.
Igualmente, uma investigação sobre as perspectivas e os sentimentos de clientes
internados em UTI evidenciou que a satisfação e a insatisfação estão imbricadas
em relação ao tratamento dispensado. Constatou, também, que "aceitação,
frustração, apoio, mal-estar e surpresa" foram mais comuns no momento da
internação e que estes se alteraram, no decorrer da internação, em função do
desempenho da equipe e da assistência realizada(14).
Isto fica mais nítido ao se observar que a proteção da intimidade foi apontada
como fator relevante e primordial para a garantia da qualidade da assistência,
tanto pelos clientes (ICPs) como pela equipe (ICNs), somando-se o respeito dos
profissionais (ICNs), o qual, aparentemente, foi valorizado na realização do
exame físico, especialmente quando envolveu partes íntimas. Esta constatação
vem ao encontro da visão de que o cliente hospitalizado perde o status de
pessoa e passa a ser "objeto de cuidados" e que "o respeito pode e deve ser
entendido como a arte da conduta", visto que é senso comum na área da
enfermagem que o respeito "é o princípio fundamental para prestar cuidados"
(15). Da mesma forma, entende-se que na esfera profissional conscientizar
acerca da importância do cuidado e do respeito mútuo, entre os envolvidos, pode
favorecer sua realização(16).
Estas colocações são muito pertinentes quando se lembra que o espaço físico e o
corpo do cliente são violados constantemente no contexto hospitalar. Em se
tratando de UTI, isto é praticamente inevitável, uma vez que a equipe circula
constantemente junto ao cliente e que exibir e tocar o corpo são essenciais em
diversas atividades assistenciais, exercidas em sua maioria pela enfermagem.
Considerando que a realização freqüente da avaliação física é fato na UTI, e
que o ambiente dificulta a manutenção da privacidade, acredita-se que ao
relatarem episódios em que, além da nudez, as condutas da equipe também
comprometeram a intimidade do cliente, as informantes procuraram alertar sobre
as questões que produziram insatisfação e desconforto, nelas próprias e nos
clientes.
No senso comum a "enfermeira é a profissional da área de saúde que tem maior
autorização social para tocar o corpo do outro"(17). Compreende-se que tal
concepção não confere a estes profissionais, e nem a outros, o direito de expor
e manipular o corpo dos clientes indiscriminadamente. Neste sentido, a
identificação de fatores que indicamprejuízo na qualidade da assistência
reforça a necessidade do respeito e da proteção à privacidade do cliente
durante o exame físico.
A desproteção da intimidade, aspecto que mais interferiu na qualidade
assistencial, emergiu de falhas da equipe e imposição de profissional médico
relacionada à proteção corporal do cliente. Por outro lado, para os clientes, a
desconsideração de profissional de enfermagem, apertando e torcendo o mamilo, e
se submeter à solicitação médica referente a desproteção corporal são
prejudiciais ao atendimento.
Percebe-se que a relação de poder, entre as classes e com o cliente, foi
exercida no momento da avaliação física, e desconsiderou os sentimentos e a
individualidade do ser humano, fragilizado pela enfermidade, e o saber de
outros profissionais. Muitas vezes a submissão da pessoa hospitalizada ocorre
porque esta se vê "desapossada de si própria, não lhe cabendo mais as decisões
a serem tomadas sobre sua pessoa"(8). Provavelmente, esta percepção deve-se ao
entendimento de que o saber dos profissionais lhes confere este direito e que
deles depende para sua recuperação.
A enfermagem também se submeteu à atitude médica. Aparentemente, elas
incorporaram a subordinação para evitar conflitos e manter a interação, sem
procurar mudar esse tipo de relacionamento. Segundo um estudo, isso acontece
porque as enfermeiras não identificam respaldo externo ou nos seus próprios
recursos, somando-se ainda a percepção de inferioridade ao "saber" médico(18).
Na prática cotidiana da enfermagem emergem inúmeras situações de conflito
geradas pela divergência entre moralidades. Quando os conflitos se
desencadeiam, o "processo de ação" individual e profissional não consiste de
uma única atitude, podendo "desdobrar-se ilimitadamente na medida em que surgem
conseqüências decorrentes das decisões tomadas, e das interações entre os
processos provenientes de diferentes atores sociais". De fato, nenhuma ética
profissional precede a postura ética individual, uma vez que os valores de
certo e errado, oriundos da reflexão pessoal e incorporados individualmente,
não podem ser substituídos por nenhum referencial ético(19). Ao relatarem
eventos em que houve o exercício do "poder", as informantes revelam sua
inquietação interior, talvez por não reagirem ao discordarem com a conduta de
outro profissional, e ao mesmo tempo, por não terem defendido o interesse e
atendido as preferências do cliente. Isto parece reforçar a desumanização da
assistência.
A implementação da humanização do cuidado de enfermagem, em especial na UTI,
certamente é um dos aspectos mais difíceis a ser alcançado. Sugere-se que o
primeiro passo seja a reflexão, individual e da equipe multiprofissional, sobre
o que é cuidado humanizado. Destaca-se que se concluiu, após investigação, que
entre outros, o significado cultural do cuidado humanizado para enfermeiras
intensivistas é colocar-se no lugar do cliente, é focalizar o cuidado na
perspectiva do doente(20).
Assim sendo, mesmo que inconsciente, percebe-se nos incidentes críticos
relatados, que a equipe, sobretudo a enfermagem, se empenhou em desenvolver a
assistência não se detendo somente ao desempenho técnico, mas sim, procurando
vislumbrar o cliente com sensibilidade e imbuída do sentido humanitário. Vale
destacar, que o fato do grupo de informantes compor-se somente de enfermeiras,
deixa uma lacuna sobre a percepção de profissionais do sexo masculino.
Certamente, a contribuição daqueles seria significativa, descrevendo casos
experenciados no cotidiano, admitindo-se que também assistem clientes de ambos
os sexos e que a identidade de gênero emergiu como fator complicador
significativo, acentuando-se ante a exposição de partes íntimas.
Em algumas circunstâncias foi visível a divergência de interesses entre as
partes envolvidas, notando-se, implicitamente, a insegurança e a inabilidade da
equipe, mormente da enfermagem, para contornar os conflitos desencadeados.
Outra questão a considerar é o domínio sobre o corpo do outro e a relação de
poder entre as classes. Os valores e princípios de cada pessoa permeiam a
assistência à saúde e o processo de humanização, exigindo do profissional
intuição, reflexão crítica e auto-avaliação constante, o que favorecerá a
percepção de como se comportar e como contornar os conflitos emergentes.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Explorar a questão da nudez do cliente, somada à implicação de invasão da
privacidade, no âmbito da UTI não se mostrou tarefa fácil, tendo-se em vista
que este tema engloba diversos fatores relacionados às características básicas
do ser humano, particulares e coletivas.
Preservar a privacidade, respeitar, demonstrar preocupação e dedicação,
valorizando a individualidade do cliente, além de visualizar-se no seu lugar,
pensar sobre o que precisa ser feito e como ele prefere que o seja, respeitando
suas crenças e tabus, é uma forma de garantir a promoção da saúde e a qualidade
da assistência, visto que muitos cuidados transpassam a intimidade. Entende-se
que isto influencia a relação interpessoal, imprimindo credibilidade à equipe,
e propicia um ambiente de cuidado satisfatório, já que a prática assistencial é
complexa e permeada pela subjetividade.
Oportunizar momentos para discussão e reflexão acerca da nudez do cliente, na
esfera do cuidado à saúde, faz-se pertinente quando tal condição não é encarada
com naturalidade, nem por clientes e nem pela equipe de saúde. É discernível a
necessidade de se preparar melhor os profissionais para captar e compreender os
aspectos intervenientes na intimidade do cliente, no sentido de adotar medidas
que resguardem a privacidade. Mais do que isto, a equipe pode e deve ajudar o
indivíduo sob sua responsabilidade a lidar com a perda da privacidade, visto
que a exposição parcial ou total do corpo é inevitável em diversas situações.
Não foi intenção deste estudo esgotar a discussão sobre o tema focalizado, mas
sim atrair a atenção dos profissionais e docentes, de enfermagem e de outras
áreas, para a questão da exposição corporal do cliente e da invasão da sua
intimidade no cenário da assistência à saúde. Com certeza esta investigação não
encontrou soluções imediatas para as dificuldades relacionadas à nudez do ser
cuidado, porém, acredita-se que possa servir de subsídio para a práxis
profissional e para o desenvolvimento de outras pesquisas.