Sistema Único de Saúde e a graduação em enfermagem no Paraná
INTRODUÇÃO
A trajetória histórica dos cursos de graduação em enfermagem foi marcada por
várias alterações curriculares, que guardam relação com as necessidades de
cunho sócio-político-econômico e de qualificação da formação. Desse modo, a
Reforma Sanitária e o Sistema Único de Saúde (SUS), na década de 1980 e 1990,
indicaram mudanças para os cursos de saúde, dentre eles, a Enfermagem apontando
um novo perfil profissional. Nesta perspectiva, a prática profissional teria
que se adequar no ensino e na assistência a um novo sistema de saúde para dar
conta das inovações e implicações desta política social.
Neste contexto, as Diretrizes Curriculares dos cursos de Enfermagem,
implementadas pela resolução n°3/2001-CNE, descrevem a necessidade de mudança
na enfermagem, a partir de um novo perfil profissional, para se pensar e fazer
saúde em outro paradigma, com nova concepção do processo saúde-doença, uma
prática voltada à realidade da população, ações de cunho preventivo em
equilíbrio com o curativo, agentes dinâmicos, empenhados com a resolução de
problemas de saúde, críticos e reflexivos, que possam utilizar seus
conhecimentos e habilidades de modo coerente com os pressupostos do SUS.
Há necessidade de que os princípios e diretrizes do SUS sejam incorporados
pelos profissionais da saúde, tanto na teoria quanto na prática e a Enfermagem
como integrante do conjunto dos profissionais de saúde precisa atentar-se para
esta dimensão.
O caráter processual do SUS envolve mudanças paradigmáticas, como o direito à
cidadania e o controle social dos serviços mediante conselhos e ouvidorias. O
enfermeiro, como agente integrante dessa política deve possibilitar que os
pacientes/usuários possam usufruir de seus direitos, criando condições para a
autonomia e indicando os caminhos para participação social e a construção de
críticas, por exemplo. No entanto, para que isto se materialize, a passividade,
a acomodação e a acriticidade devem ser substituídas por um profissional
político, crítico, reflexivo, comprometido com as realidades sociais, que
problematize o cotidiano, que ouse, que participe da construção social, que
aponte falhas e indique possíveis soluções. Elementos que, nos parecem, podem
compor os projetos pedagógicos para a formação de "enfermeiros pensantes".
Com o entendimento de que as demandas da sociedade para com a área da saúde
aumentaram e se ganharam maior complexidade na contemporaneidade, se evidência
a necessidade de um processo formativo diferente, que abarque as necessidades
de saúde na perspectiva de superação do modelo hegemônico hospitalocêntrico e
individual para ações de integralidade, articulando a saúde coletiva e a
clínica.
Este modelo de atenção à saúde pressupõe uma formação generalista, com a
superação da formação orientada pelas ciências das doenças/curativas, que
compreenda a saúde dentro do perfil epidemiológico, que considere cada grupo
populacional singularmente, que possa atuar tanto na promoção, prevenção,
tratamento e reabilitação, em nível básico quanto em níveis mais complexos.
Há a necessidade da integralidade da atenção, do trabalho em equipe e a
apropriação do SUS para ampliar nossa capacidade de percepção e intervenção
sobre a saúde. Ressalta-se a pertinência dos cenários de aprendizagem, estes
"devem envolver a rede de serviços de saúde, como um todo, pois todos os
ambientes necessitam serem conhecidos ao longo da formação, de modo a garantir
maior familiaridade e destreza na atuação profissional"(1).
Vale a pena destacar o fato de que, apesar dos princípios teóricos do SUS
considerarem a existência de inúmeros fatores influenciadores do processo saúde
doença, este sistema de saúde não pode desconsiderar as causas biológicas e
individuas que podem perpassar o processo de adoecimento, pois a atenção à
saúde agrega clínica às práticas terapêuticas de prevenção, proteção, promoção
e reabilitação.
Estas mudanças processuais são lentas e exigem um tempo de transição, em que o
novo convive com o velho, produzindo uma superposição ampla, mas nunca
completa, entre problemas que podem ser resolvidos pelo antigo e os que devem
ser resolvidos com o novo. E quando a transição se completar, a profissão
mudará seus objetivos e métodos(2). Mas será que a Enfermagem ainda se encontra
nessa etapa? Como será que a Enfermagem tem enfrentado este movimento de
mudança? Em que etapa estamos? Desde a reforma sanitária e implantação do SUS
se passaram duas décadas e nos parece que alguns conceitos e práticas ainda
estão calcados apenas no modelo biomédico, desarticulados com o contexto social
e voltados somente ao mercado de trabalho.
Visando contribuir com as discussões acerca da formação do enfermeiro e
subsidiar análises e encaminhamentos deste processo procuramos identificar em
currículos de Enfermagem de escolas paranaenses se a formação tem se voltado ao
ao Sistema Único de Saúde.
METODOLOGIA
Trata-se de um estudo exploratório que teve como fontes documentais projetos
político-pedagógicos (PPP) constantes do banco de dados do projeto "Estudo da
formação na graduação em enfermagem no Estado do Paraná a partir das diretrizes
curriculares", que estava em desenvolvimento pela orientadora desta pesquisa.
No ano de 2005 havia quarenta escolas de graduação em enfermagem no Estado e
todas foram consultadas. Destas, nove enviaram seus projetos pedagógicos sendo
os documentos fonte desta pesquisa.
Para asseverar se processaram mudanças na formação partimos do princípio de que
um currículo orientado para o sistema nacional de saúde deve contemplar em sua
estrutura de forma eqüitativa a formação tanto para ações de promoção,
prevenção, tratamento e reabilitação. Assim, o eixo de análise foram elementos
que compõem a estrutura curricular.
Para tanto, na análise dos PPP das Escolas de Enfermagem destacamos alguns
itens na caracterização dos cursos que poderiam auxiliar na identificação de
uma formação orientada para o SUS: ementas das disciplinas, carga horária e
tempo de integralização do curso; regime de matrícula; objetivos do curso;
perfil profissional; disposição temporal do início das atividades de campo, o
entendimento que estão tendo em relação ao estágio curricular, sua
operacionalização e carga horária e a carga horária das atividades de campo
direcionadas à saúde coletiva.
Seqüencialmente, quantificamos e classificamos as disciplinas em quatro grupos:
disciplinas com conteúdos biológicos e individuais; disciplinas direcionadas às
ações coletivas e preventivas; disciplinas que abrangem a prevenção e atenção
individual/biológica e disciplinas transversais. Na leitura das ementas também
procuramos identificar se elas buscavam articular a formação em todos os
espaços da prática assistencial ou se estão focalizadas em ações pontuais, em
aspectos técnicos desvinculados do contexto sócio-político-econômico da escola/
curso de enfermagem, com um ensino alocado ao modelo biologicista.
Ressaltamos que a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética pelo parecer
número 001/2007, com base na resolução nº196/1996 do Conselho Nacional da
Saúde.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Elementos norteadores na análise dos projetos político-pedagógicos
Quanto ao processo desencadeado para a identificação de uma disciplina de cunho
curativo e/ou da atenção coletiva é necessário tecer algumas considerações de
caráter teórico-metodológico que nos asseguram rigorosidade e objetividade nas
análises. Para a caracterização das disciplinas com conteúdos biológicos e
individuais, consideramos ementas que enfocassem conteúdos voltados para
aspectos da formação alicerçados em conhecimentos das ciências biológicas, ou
seja, que abordam o homem como ser biológico sem relação explícita com outros
fatores que poderiam interferir no processo saúde/doença. Disciplinas nas quais
há a preocupação com os processos patológicos e não, necessariamente, com a
saúde de forma integral.
A partir da concepção que concentra a causalidade das doenças aos agentes
etiológicos, desconsiderando outros determinantes, os esforços técnico-
científicos concentram-se no combate e na cura das doenças orgânicas com
objetivo de restituir o equilíbrio perfeito-fisiológico do organismo. Isto
levou a uma preponderância a intervenções curativas, em relação às de níveis
coletivos(3).
A abordagem biológica/individual aparece quando se tem uma visão estreita do
processo saúde/doença, sem articulação com determinantes sociais de
responsabilidade unicamente do sujeito doente. Nela, os determinantes
emocionais, psicológicos, culturais, econômicos e sociais que interferem no
estado de saúde das pessoas são desconsiderados. As ações de saúde acabam por
concentrarse no campo hospitalar, no aspecto curativo, uma vez que fatores
determinantes do estado patológico são ocultados.
Nesta direção, a ingestão de medicamentos e a espera de que atue no organismo
erradicando a dor ou o sofrimento aparece como método cômodo e rápido. Domina-
se até em certa medida, com pressupostos técnico-científicos um sinal de
doença, mas esquecese de erradicar o causador da patologia ou do sofrimento, ou
seja, a raiz do problema. Confirmando esta assertiva, "o medicamento representa
muito mais um recurso adicional disponibilizado para os médicos com o decorrer
do tempo e, sobretudo, quando os produtos farmacêuticos passaram a requerer uma
prescrição médica, a dimensão simbólica se intensifica mais ainda"(4).
Na medicina moderna, o individualismo se destaca como prática freqüente entre
os profissionais da saúde, em que o coletivo é secundarizado em virtude da
priorização do individual. O predomínio da visão biologicista é a alternativa
para se enfrentar os problemas de saúde. Quando se oculta fatores
influenciadores do processo saúde doença, o indivíduo torna-se o único
responsável pelo seu estado de saúde(3).
Apesar dos direcionamentos que as novas políticas de saúde apontam, parece-nos
que estes elementos ainda persistem nos sistemas de saúde e nos processos de
formação.
Procuramos, também, identificar e quantificar as disciplinas que abordassem a
atenção coletiva e prevenção/promoção dos agravos à saúde.
Assim, quando procedemos a esta classificação (disciplinas de cunho biológico/
individual e de caráter coletivo/preventivo/promoção dos agravos à saúde), uma
questão emergiu. Ou seja, se considerarmos que o SUS é composto tanto por ações
focalizadas na atenção individual curativa quanto nas preventivas/coletivas,
como afirmar que um PPP com enfoque no primeiro aspecto não está direcionando
sua formação para o SUS?
Diante dessa interrogativa recorremos à construção histórica dos processos de
formação do enfermeiro, em que predominaram as ações curativas/biológicas/
individual e, portanto, com pouco espaço para ações preventivas. Desse modo,
torna-se relevante analisar a presença da saúde coletiva nos projetos políticos
pedagógicos de enfermagem, com o entendimento de que esta ganha um espaço
expressivo no processo de reorientação da formação e inovação curricular,
oriundos da Reforma Sanitária e do SUS. Assim, em nossa análise, a
classificação de uma disciplina de saúde coletiva embasou-se na consideração
daquelas disciplinas que, obrigatoriamente voltar-se-iam para a saúde coletiva.
A saúde coletiva possui o papel de influenciar a transformação de saberes e
práticas de outros agentes, contribuindo para mudanças do modelo de atenção e
da lógica com que funcionam os serviços de saúde em geral(5).
Nesta perspectiva entendemos a saúde coletiva articulada com outros
conhecimentos, uma vez que não ignoramos a intervenção da clínica no processo
saúde/doença, mas em que medida aspectos da saúde coletiva se inserem neste. No
sentido de que não há como pensar a superação do paradigma biomédico sem a
contribuição da própria clínica só com os aportes da epidemiologia e das
ciências sociais. Nem somente com o biológico e o subjetivo se podem pensar
modelos e políticas de atenção integral à saúde. A clínica tem muito a ser
criticada, mas tem também muito a dizer. O mesmo poder-se-ia comentar da saúde
coletiva. Não há como repensar suas práticas desconhecendo o acervo da
biologia, da psicologia e da clínica(5).
Deste modo ressaltamos que a produção da saúde não é atributo exclusivo da
saúde coletiva, mas de todas as práticas que compõem o campo mais amplo da
saúde.
Reiteramos que o ideário reformista configura-se pela articulação ensino-
serviço; aprendizagem que extrapole o ambiente hospitalar; valorização na
Unidade Básica de Saúde, como campo de prática e a incorporação das ciências
sociais e humanas nas reformas curriculares(1).
Foi necessário considerar que um PPP que pretende orientar sua formação para o
SUS tem, necessariamente que contemplar conteúdos/disciplinas/módulos sobre
este sistema de saúde tais como: organização do SUS; história das Políticas de
Saúde e das práticas assistenciais em saúde coletiva; programas oficiais de
atenção à saúde coletiva, entre outros que contemplam tanto atividades teóricas
quanto práticas neste cenário.
Além destes dois grupos sistematizamos um terceiro que contemplava disciplinas
que abrangem a prevenção e atenção individual/biológica e um quarto que foram
as disciplinas transversais. Sob esta denominação classificamos aquelas
disciplinas/ módulos que entrecortam o processo de formação e que devem
sustentar tanto as disciplinas de cunho biológico/individual quanto aquelas de
enfoque coletivo/preventivo.
Formação em enfermagem no Paraná e o Sistema Único de Saúde: intencionalidades
manifestas em nove projetos político-pedagógicos
Um dos aspectos analisados nos PPP foi o perfil profissional que o curso
pretendia garantir. Averiguamos, predominantemente, a indicação de um
profissional orientado às demandas das novas políticas de saúde, seja pela
presença de conteúdos e práticas concernentes aos princípios do SUS,
participação social, aproximação profissional/usuário, abordagem integral e
superação da hegemonia hospitalar.
Os cursos possuem o entendimento de que as atuais políticas de saúde implicam
em nova concepção do processo saúde-doença e em novo paradigma sanitário, com
mudanças que incidirão nos planos político, ideológico, cognitivo, cultural na
formação de profissionais atuantes neste sistema de saúde. Para tanto, se faz
oportuno apresentar alguns perfis dos PPP analisados:
[...] formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, com
competência técnica, científica e política, para atuar numa sociedade
democrática, multicultural, sem excluídos e em permanente
transformação. [...] capaz de conhecer e intervir sobre os problemas
e situações de saúde e doença mais prevalentes no perfil
epidemiológico nacional, com ênfase na sua região de atuação,
identificando as dimensões bio-psicosociais dos seus determinantes
(PPP-1).
[...] agentes do processo de trabalho em saúde com formação
generalista e humanista atuando de forma crítica e reflexiva, com
competência técnica, científica e política, fundamentada em
princípios éticos e capaz de conhecer e intervir sobre os problemas/
situações de saúde/doença prevalentes no perfil epidemiológico
nacional e regional, identificando as dimensões biológicas,
psicológicas e sociais e seus determinantes. A atuação do Enfermeiro
deve pautar-se na responsabilidade social e no compromisso com a
promoção da saúde integral do ser humano e com a Educação Básica e a
Educação Profissional em Enfermagem (PPP-2).
[...] frente ao processo de construção do Sistema Único de Saúde
(SUS) e da instituição das Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Curso de Graduação em Enfermagem (2001), a formação do enfermeiro
deve atender as necessidades sociais de saúde do indivíduo, família e
comunidade nos diferentes níveis de atenção, visando a promoção,
proteção e recuperação da saúde com qualidade e resolutividade de
forma integral e equânime . Assim como, uma formação generalista,
ética, humanista, crítica e reflexiva, voltada para o desenvolvimento
de competências e habilidades gerais abrangendo a atenção à saúde,
tomada de decisão, comunicação, trabalho em equipe, liderança,
administração/gerenciamento e a educação permanente(PPP-4).
[...] um dos agentes do processo de trabalho em saúde com formação
generalista e humanista atuando de forma crítica e reflexiva, com
competência técnica, científica e política, fundamentada em
princípios éticos e capaz de conhecer e intervir sobre os problemas/
situações de saúde/doença prevalentes no perfil epidemiológico
nacional e regional, identificando as dimensões biológicas,
psicológicas e sociais e seus determinantes. A atuação do Enfermeiro
deve pautar-se na responsabilidade social e no compromisso com a
promoção da saúde integral do ser humano e com a Educação Básica e a
Educação Profissional em Enfermagem (PPP-5).
[...] enfermeiro (a) generalista, humanista, crítico, reflexivo,
criativo para o exercício de Enfermagem, com base no rigor científico
e intelectual, dentro de princípios éticos. Capaz de conhecer e
intervir em problemas/ situações de saúde/doença, mais prevalentes
nos perfis epidemiológico, sanitário e demográfico nacional, com
ênfase na sua região de atuação, identificando as dimensões bio-
psicosociais dos seus determinantes [...] (PPP-7).
[...] generalistas, com competência para cuidar dos seres humanos,
capazes de reconhecer, refletir e intervir sobre determinantes e
condicionantes do processo saúde-doença, mediante ações de cuidar,
onde se articulam o ensino, a pesquisa e a extensão, e respeitando os
princípios éticos e legais da profissão (PPP-9).
Outro elemento que se destaca é o entendimento da necessidade de reformulação
no processo de formação profissional devido às demandas impostas pela
realidade, que implicam na formação de sujeitos críticos e reflexivos.
Profissionais que possam responder as necessidades de saúde da população, em
consonância com os princípios de universalidade, equidade, hierarquização,
integralidade e resolutividade das ações de saúde em todos os níveis de
assistência. Características que acompanham as mudanças científicas e
tecnológicas, respondendo as demandas do cenário socioeconômico em que se
insere o profissional.
Na análise dos objetivos dos cursos percebemos a eleição do SUS como foco da
formação. Como apresentados a seguir:
[...] superar a dicotomia existente entre a clínica e a
epidemiologia, a partir da incorporação das duas dimensões no
processo formativo por entender que ambas são fundamentais para o
enfrentamento das diferentes formas e padrões de adoecimento da
população (PPP-2).
[...] o aluno será capaz de compreender a política de saúde no
contexto das políticas sociais, reconhecendo os perfis
epidemiológicos das populações (PPP-3).
[...] aos princípios do sistema de saúde vigente em nosso país,
voltado a uma atenção integral e humanizada no campo da assistência
nos diferentes níveis de atenção à saúde. [...] focalizar na atenção
básica contribuindo para a mudança do modelo centrado no hospital, e
aderência aos princípios do sistema de saúde vigente, visto que, um
dos seus desafios é formar um profissional comprometido "com as
políticas públicas de saúde" (PPP-6).
[...] formar enfermeiros generalistas, que compreendam o homem como
um ser em constante transformação e em permanente interação com o
meio em que vive, preocupados com a implementação de ações que
atendam as necessidades de saúde/ doença em toda sua complexidade
considerando o perfil epidemiológico da população (PPP-8).
[...] formação de enfermeiros generalistas, com competência para
cuidar dos seres humanos, capazes de reconhecer, refletir e intervir
sobre determinantes e condicionantes do processo saúde-doença,
mediante ações de cuidar, onde se articulam o ensino, a pesquisa e a
extensão, e respeitando os princípios éticos e legais da profissão
(PPP-9).
É inequívoca a proposta de integralidade da assistência, a superação
do biologicismo, preocupação com a saúde coletiva. Enfim, uma
formação profissional generalista, que tende a extrapolar o ambiente
hospitalar e que articule a clínica com a atenção básica. Além de
objetivar a articulação teoria-prática, que os futuros profissionais
sejam capazes de refletir sobre as demandas de saúde da população e
compreendam as políticas públicas de saúde, bem como, sejam sujeitos
efetivadores de tais políticas. Devendo as disciplinas continuar
visando "a superação da polaridade entre prevenção e cura, tendo como
horizonte a compreensão de que as ações de saúde acontecem em todos
os níveis de assistência, e a população tem direito ao acesso aos
diferentes níveis de atenção à saúde, seja ele curativo ou
preventivo" (PPP-2).
Também em alguns pressupostos curriculares há indicação que se pretende formar
profissionais competentes para o exercício da enfermagem na sociedade, dentro
dos princípios do SUS. O PPP-2 pauta-se nos preceitos constitucionais para
afirmar que o curso deve formar profissionais para atender ao Sistema Público
de Saúde. Há a afirmação que o currículo deve "contemplar as finalidades da
instituição formadora, assegurando a mais estreita relação com os problemas e
as necessidades de saúde da região, de acordo com os parâmetros estabelecidos
na Constituição Federal, na Lei Orgânica da Saúde e em outros espaços
democráticos de definição de políticas para o Sistema Único de Saúde".
Em análise quantitativa das disciplinas que abrangem conteúdos de cunho
biológico/individual, esta denominação contempla as disciplinas do grupo um,
percebemos supremacia deste grupo de disciplinas sobre a saúde coletiva ou
aquelas que incorporam também a clínica. No PPP1os conteúdos biológicos/
individuais correspondem a 1170 horas ou 30,8% da carga horária do curso; PPP2
1876 horas, ou 39,95% da carga horária; PPP3correspondem a 1476 horas, ou a
39,50% da carga horária do curso; PPP4 um total de 762 horas, ou seja, 16,61%
da carga horária; PPP5correspondem a 2106 horas, ou seja, 40,6% da carga
horária total. No PPP6 estas disciplinas perfazem um total de 1600 horas ou
42,55%; No PPP7 totalizam 1116 horas, isto é, 25,94%; e PPP8 encontramos um
total de 16 com carga horária de 1560 horas, ou seja, 38,61% da formação geral.
A título de exemplo, apresentamos algumas das disciplinas que compuseram este
bloco: Anatomia, Biologia Celular, Patologia Geral, Farmacologia, Enfermagem no
cuidado ao cliente cirúrgico, Enfermagem no cuidado ao Cliente Crítico,
Fisiologia e Biofísica Humana I, Fisiologia e Biofísica Humana II, Histologia e
Embriologia, Bioquímica, Genética e Estágio Supervisionado Curricular em
Unidades Hospitalares.
Quanto à análise das disciplinas que enfocam ações coletivas em nível primário
de atenção, as quais denominamos segundo grupo, evidenciamos que na maioria dos
PPP aparecem com carga horária menor em comparação com as disciplinas do
primeiro grupo. No PPP-1 observamos que correspondem a 810 horas ou 21% da
carga horária total do curso; no PPP-2 correspondem a 805 horas ou 17,14%; no
PPP-3 apresentam 376 horas, ou seja, 10,06%; no PPP-4 encontramos um total de
136 horas ou 2,96%; no PPP5 865 horas correspondem a 16,66%; no PPP-6 totalizam
320 horas, ou 8,52%; no PPP-7 perfazem um total de 558 horas, isto é, 12,97%;
no PPP-8 são de 240 horas, ou seja, 5,94%.
No que se refere às disciplinas do terceiro grupo, em que está presente a
atenção individual de cunho biológico e curativo e a saúde coletiva
conjuntamente, apresentamos os PPP e suas respectivas cargas horárias. No PPP-
1 equivalem a 1332 horas, ou 34,6% da carga horária; no PPP-2 constituem um
total de 1250 horas ou 26,61%; no PPP-3 correspondem a 1452 horas ou 38,84%; no
PPP-4 são de 3481 horas, ou seja, 75,82%; no PPP-5 equivalem a 1505 horas ou
29%; no PPP-6 totalizaram 1400 horas, ou seja, 37,23 % da carga horária total;
no PPP-7 compõem 2178 horas, isto é, 50,63%; no PPP-8 totalizam 1720 horas ou
42,57% da formação geral do curso.
Nota-se pela distribuição das cargas horárias a tentativa, ainda que discreta,
de equilibrar a saúde coletiva com o hospital. Uma vez que há disciplinas que
destinam parte de sua carga horária para o desenvolvimento de práticas em
ambiente hospitalar e outra parte à saúde coletiva, como é o caso das
disciplinas de Enfermagem em Ginecologia e Obstetrícia, Enfermagem em
Puericultura, Criança e Adolescente Sadios e Hospitalizados e Administração de
Enfermagem em Instituições de Saúde.
Tal dado nos faz inferir que há uma sinalização da superação de um modelo de
formação pautado apenas no modelo hospitalocêntrico e curativo, que subsidiou a
prática da enfermagem por longo período, de fato há a perspectiva de formar
baseando-se no modelo de saúde vigente, nas políticas de saúde pública e nos
princípios e diretrizes do SUS, afirmação que pode ser atestada pela seguinte
ementa:
História da saúde pública. Políticas de saúde no Brasil. O movimento da reforma
sanitária e o Sistema Único de Saúde. As conferências nacionais de saúde.
Processo Saúde-Doença. Atuação do enfermeiro nos diferentes níveis de
assistência. Educação em saúde. Visita domiciliar (PPP-2, ementa da disciplina
Políticas de Saúde e Prática Assistencial em Saúde Coletiva).
Observamos também que algumas disciplinas são transversais, as quais não
puderam ser incluídas em nenhum dos grupos anteriores, o que nos impulsionou a
criar um novo grupo que, por falta de outra definição mais adequada, nomeamos
de disciplinas transversais. Nesta denominação agrupamos aquelas disciplinas
que abordam conteúdos que perpassam ou devem perpassar todo o processo de
formação do acadêmico. Neste quarto grupo no PPP-1 computamos um total 540
horas ou 14 % da carga horária do curso; no PPP-2 observamos que totalizaram
765 horas ou 16,3% da carga horária; no PPP-3 somam 432 horas, ou 11,6%; no
PPP-4 encontramos 260 horas, ou 5,67 % da carga horária; no PPP-5 correspondem
a 714 horas, que corresponde a 18,42%; no PPP6 totalizaram 440 horas, ou
11,70%; no PPP-7 somam 450 horas ou 10,56%; no PPP-8correspondem a 520 horas,
ou seja 12,87% da formação geral.
Partimos da premissa de que a inserção das aulas práticas de saúde na matriz
curricular desde o primeiro semestre é um dado significativo diante da
intencionalidade do PPP em integrar os conteúdos teóricos/práticos "desde o
inicio da graduação, com complexidade crescente e que promova a autonomia
intelectual e profissional" (PPP-7). Entendemos que a inserção desta estratégia
de ensino indica a necessidade que a formação apresenta em considerar as
realidades sociais, pensando o processo saúde/doença influenciado por
determinantes sociais, pelas condições de vida e trabalho da população, o que é
marco significativo na concepção do SUS.
Segundo o PPP-1 "configura-se na inserção do aluno na elaboração, organização e
aplicação e propostas alternativas de trabalho a partir de problemas detectados
na comunidade direcionados à organização dos serviços de saúde".
Observamos também, que em alguns PPP as atividades de campo referentes à Saúde
Coletiva são desenvolvidas obrigatoriamente desde o primeiro período do curso,
concomitantes as aulas teóricas, antecedendo o estágio curricular, citam-se
PPP-1; PPP-2; PPP-3; PPP-4; PPP-5 e PPP-7.
Ressaltamos que no PPP-6 as disciplinas da saúde coletiva iniciam-se no do 4°
semestre, não tendo o aluno contato com conteúdos da saúde coletiva desde o
início do curso indicando que pode haver inserção tardia dos alunos na dinâmica
dos serviços de saúde, no envolvimento com a população e a aproximação com o
contexto social o que poderia interferir na construção e consolidação de
saberes e conceitos da prática de enfermagem que ampliassem o campo de visão
assistencial para as necessidades da população, evitando o predomínio de
conhecimentos curativos em detrimento da prevenção e do coletivo.
Ainda destacamos que as disciplinas da saúde coletiva aparecem na matriz
curricular no PPP-8 na terceira série do curso.
A partir desta análise averigua-se a proposição no processo de ensino em
aproximar o educando com a demanda dos serviços de saúde e conseqüentemente as
necessidade populacionais. Torna-se uma estratégia de "levar os alunos ao
contato com a realidade, de onde emergem os problemas socialmente relevantes,
evitandose a dicotomia teoria/prática e a idéia de organização do mais simples
para o mais complexo" (PPP-1)
Outra atividade que se destaca nos PPP é a presença dos estágios curriculares
nos últimos períodos dos cursos. Estes são desenvolvidos em Unidades
Hospitalares e Unidades Básicas de Saúde, correspondendo a 20% da carga horária
total do curso, conforme as Diretrizes Curriculares para os cursos de graduação
em enfermagem. Compreendidos como uma atividade que deve visar a realização da
síntese integradora das diferentes áreas e conteúdos de formação profissional e
dar oportunidade de estreitar a relação teoria e prática.
Caracterizado como um conjunto de experiências de aprendizagem em situações
reais da vida profissional proporcionadas ao aluno, sob a responsabilidade dos
departamentos de Enfermagem e Saúde Coletiva, do Centro de Ciências da Saúde
[...] é uma Atividade Acadêmica Obrigatória, planejado conforme as
diretrizes curriculares estabelecidas pelo Conselho Nacional de
Educação e de acordo com as diretrizes do curso, aprovado pelo
Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade(PPP-4).
[...] um dos momentos que permite estreitar as relações do processo
de formação com o processo do trabalho em saúde, cuja prática deve
responder as necessidades de saúde da população, em consonância com
os princípios de universalidade, equanimidade, hierarquização,
integralidade e resolutividade das ações de saúde em todos os níveis
de assistência (PPP-2).
[...] condição que oportuniza o contato do aluno e professor com o
contexto real de trabalho, quer seja aplicando as teorias trabalhadas
na Universidade, vivenciando uma prática sob supervisão, no caso do
aluno, e até mesmo confrontando e questionando aquelas teorias, e
assim aperfeiçoar e sedimentar conhecimentos (PPP-4)
As transformações ocorridas nas últimas décadas no campo da saúde, implicam em
mudanças nas instituições envolvidas com a formação de recursos humanos e com a
assistência à saúde, principalmente no que se refere a articulação teoria e
prática. Assim, os Estágios Curriculares Supervisionados em Instituições de
Saúde podem trazer importante contribuição, uma vez que podem se constituir em
momento que o estudante entra em contato direto com a realidade de saúde da
população e do mundo do trabalho, possibilitando o desenvolvimento pessoal e
profissional e a consolidação de conhecimentos adquiridos no transcorrer do
curso, por meio da relação teoria prática(6). Oportunizam a criação de elo
entre a formação teórica-científica e a realidade, isto é, um momento de
vincular a teoria às situações do cotidiano profissional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Enfermagem passa por um período de discussão e reformulação, baseado nas
dinâmicas das políticas de saúde, nos modelos assistenciais, demandas do
mercado de trabalho, diretrizes curriculares carecendo, portanto, de avanços na
preparação profissional.
Evidencia-se, inequivocamente, a preocupação em formar um agente de mudança,
ativo, crítico, reflexivo, engajado com os problemas sociais, com postura
política e questionadora diante problemas da população. Enfim, um protagonista
que detenha conhecimento técnico-científico para a elaboração e coordenação de
sistemas e serviços dentro do cenário da saúde.
Outra questão que é necessário salientar se refere a incorporação da
integralidade na assistência, entendida como uma prática que além atender as
necessidades biológicas e de cura, atinja, também, a promoção, prevenção e a
reabilitação.
Na análise observamos que, no perfil profissional dos cursos, ressalta-se a
formação generalista, humanista, crítica, reflexiva, um agente de mudança com
competência técnica, científica e política, visando à promoção, proteção e
recuperação da saúde.
Os PPP parecem sincronizados com este movimento de mudança e reorientação da
formação. Tencionam adequar o processo de formação com as necessidades oriundas
do contexto social pautando-se na Reforma Sanitária, nos princípios e
diretrizes do SUS e nas Diretrizes Curriculares.
A responsabilidade social e o conhecer do desenvolvimento dos processos de
trabalho em saúde são elementos que alguns PPP buscam incorporar na formação, a
partir da aproximação aluno e realidade social e articulação da teoria e
prática. De fato, predomina o discurso de articular teoria e prática, no
intuito do aluno transpor os conhecimentos adquiridos em sala de aula para a
prática em campo, e o Estágio Curricular é pontuado como um dos momentos que
possibilita este estreitamente e a vivência nos campos da saúde coletiva e
hospitais.
Ainda, foi possível identificar que apesar de alguns cursos sustentarem este
discurso, quando se analisa a estrutura curricular, percebe-se que tal objetivo
se distancia da efetivação. Isto fica evidente, por exemplo, na quantidade
reduzida de aulas práticas de saúde coletiva e no entendimento de Estagio
Curricular. Alguns PPP desconsideram a importância das aulas práticas durante a
graduação e vêem o estagio curricular como o principal espaço para o
desenvolvimento da vivência prática do estudante.
Apesar da presença hegemônica na formação de conteúdos biológicos e curativos,
evidenciou-se um equilíbrio na distribuição da carga horária destes conteúdos
quando comparada com a carga horária destinada aos conteúdos que envolvem a
saúde coletiva, biológico e hospitalar conjuntamente.
Neste sentido, entendemos que todo este movimento dentro da enfermagem urge por
um ensino mais próximo das necessidades de saúde e uma assistência integral, em
que a hegemonia da atenção hospitalar seja redimensionada, pela incorporação
das práticas de saúde coletiva no processo de formação.
Portanto, os dados mostram que há intencionalidade dos cursos em adequar seu
processo formativo, os com as demandas das novas políticas de saúde e que a
enfermagem está em sintonia com as proposições do SUS.
Analisar os PPP na tentativa de identificar sua reorientação ou não, é uma
questão desafiadora, pois envolve elementos do processo ensino aprendizagem que
não puderam ser averiguados nesta análise. Buscamos uma possível aproximação
desta realidade, pois não sabemos se isto se efetiva no cotidiano da sala de
aula e nos espaços de aprendizagem. Assim, temos a convicção que as informações
aqui delineadas incitam a discussão desta temática, tão imprescindível para a
qualidade da formação e que não é dado o devido valor.