Tecnologia e humanização em ambientes intensivos
INTRODUÇÃO
Refletir acerca do cuidado na perspectiva da tecnologia nos leva a repensar a
inerente capacidade do ser humano em buscar inovações capazes de transformar
seu cotidiano, visando uma melhor qualidade de vida e satisfação pessoal. Para
podermos entender o contexto atual que reflete a arte do cuidado inserida em um
mundo tecnológico, é necessário compreender o desenvolvimento histórico e
cultural da sociedade.
A primeira revolução técnico-científica pode ser situada entre o final do
século XVIII e o início do século XIX, cujas transformações tiveram mérito de
substituir na produção, a força física do homem pela energia das máquinas,
primeiramente pelo vapor e após, pela eletricidade. A tecnologia passa a ser
compreendida como o estudo ou a atividade da utilização de teorias, métodos e
processos científicos, para solução de problemas técnicos(1).
No campo da saúde a introdução de instrumentos para o ato cirúrgico e o
surgimento de equipamentos diagnósticos foram os movimentos mais evidentes da
inserção da tecnologia na terapêutica. A Revolução Industrial e a Segunda
Guerra Mundial proporcionaram a união da ciência à tecnologia, adequando-a aos
princípios científicos, passando a utilização dos equipamentos mais simples aos
sofisticados(1).
No Brasil, por volta dos anos 1990, a investigação sistematizada em busca de um
corpo de conhecimentos específicos de enfermagem e também a construção de
modelos conceituais para a sua prática começaram a tomar destaque. A construção
do conhecimento da enfermagem teve suas primeiras tentativas quando surgiu a
sistematização das técnicas e, mais tarde, com a preocupação em organizar
princípios científicos para nortear a sua prática. Com o advento da
fundamentação científica do cuidado de enfermagem houve o reconhecimento da
expressão tecnológica do cuidado, tanto como processo e como produto. Assim,
percebemos que na história da civilização a tecnologia e o cuidado estão
fortemente relacionados(2).
INTEGRAÇÃO DA TECNOLOGIA E HUMANIZAÇÃO
A enfermagem tem o compromisso de contribuir para o aprimoramento das condições
de viver e ser saudável, buscando uma melhor qualidade de vida para todos os
seres. Pode contribuir de maneira mais efetiva através do desenvolvimento de
uma consciência de cuidado presente na prática, no ensino, na teorização e na
pesquisa(3).
O desenvolvimento do conhecimento de enfermagem pode ser feito através de uma
reflexão das ações realizadas durante as atividades diárias e principalmente
pela vontade de avançar, somando ao fazer tecnicista um fazer/pensar mais
humanitário. Entretanto, durante este processo, faz-se necessário a realização
de estudos que explorem e cultivem esse fenômeno em nossa sociedade,
contribuindo para uma melhor qualidade dele(3).
Ao adquirir a formação, os profissionais que têm prioriorizado a
especialização, sendo cada vez mais capacitados e habilitados a oferecer o
melhor tratamento e consequentemente recuperação ou cura do doente. Mediante a
tal esforço alguns aspectos inerentes ao ser humano têm sido deixado em segundo
plano, tais como: seus valores, crenças, sentimentos e emoções(2).
Visando uma mudança neste panorama, o Ministério da Saúde criou, em 2001, o
Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar (PNHAH), com simples
objetivo de humanizar a assistência prestada aos pacientes atendidos em
hospitais públicos. Em 2003, torna-se uma Política Nacional de Humanização, ou
Humaniza-SUS, abrangendo a saúde como um todo(4).
Tecnologia
O atendimento de qualidade é um é direito de cada pessoa(5). Para tanto,
durante os últimos anos tem-se desenvolvido cada vez mais técnicas e
dispositivos que facilitem e melhorem as condições de atendimento ao cliente,
buscando diminuir sua internação e agilidade no tratamento.
Algumas das características peculiares de uma Unidade de Tratamento Intensivo
(UTI), são: ambiente permeado de tecnologia de última geração, situações
iminentes de emergência e necessidades de agilidade e habilidade no atendimento
ao cliente(4). Estas unidades são organizadas de maneira a prestar assistência
especializada aos clientes em estado crítico, com risco de vida, exigindo
controle e assistência médica e de enfermagem ininterruptas. Em virtude desses
fatos, justifica-se a introdução de tecnologias cada vez mais aprimoradas que
buscam, por meio de aparelhos, preservar e manter a vida do paciente em estado
crítico, através de terapêuticas e controles mais eficazes, o que exige
profissionais de saúde alta capacitação e habilidade(3).
Tais equipamentos favorecem o atendimento imediato, possibilitando segurança
para toda a equipe da UTI. Porém, em contrapartida, podem contribuir para
tornar as relações humanas mais distantes, fazendo com que o cliente se sinta
abandonado, levantando a premissa de que talvez saibamos mais sobre a máquina e
pouco sobre o cliente que estamos cuidando, tratando-o às vezes como objeto das
determinações ou do cuidado(3).
Os avanços tecnológicos são reflexo da reestrutuação produtiva que está
ocorrendo, mais intensamente na produção industrial, desde o final dos anos
1970 e, no Brasil, nos anos 1990, gerando então, necessidade de trabalhadores
qualificados para manipulação dos artefatos tecnológicos tais como
ventiladores, monitores cardíacos, bombas de infusão, dentre outros(2,6-7).
Além disso, a tecnologia pode ser compreendida de forma ampliada: a tecnologia
representada por máquinas e aparelhos (tecnologia dura), a tecnologia que
engloba o saber profissional que pode ser estrutura e protocolizado (tecnologia
leve-dura) e a tecnologia leve que se refere à cumplicidade, à
responsabilização e ao vínculo manifestados na relação entre usuário e
trabalhador de saúde(8).
Produzir tecnologia é buscar a produção de "coisas" que podem ser materiais
como produtos simbólicos que satisfaçam necessidades. Salientando assim
conhecimento para o desenvolvimento de tais facilidades(2,6).
A tecnologia pode ser classificada em três tipos:
- Tecnologia dura: equipamentos do tipo máquina, instrumental, normas rotinas e
estruturas organizacionais;
- Tecnologia leve-dura: são saberes estruturados, como fisiologia, anatomia,
psicologia, clínica médica, cirúrgica, dentre outro;
- Tecnologia leve: são implicadas com o conhecimento da produção das relações
entre sujeitos. Presente no espaço trabalhador-usuário, e só se materializam em
atos, tais como acolhimento, produção de vínculo, encontros de subjetividade e
autonomização.
A dimensão desumanizante da ciência e tecnologia se dá, portanto, na medida em
que se fica reduzido a objetos da própria técnica e objetos despersonalizados
de uma investigação que se propõe fria e objetiva. O saber técnico supõe saber
qual é o bem de seu paciente, independentemente de sua opinião(9).
Humanização
A humanização da assistência tornou-se um desafio, já que a tecnologia cada vez
mais se supera e, muitas vezes, verifica-se o envolvimento com as máquinas, o
que facilita o esquecimento de que está se cuidando de pessoas. Existem outras
pessoas dividindo conosco esse espaço, como pacientes, familiares, outros
profissionais, tornando o ambiente frio e muitas vezes sem afeto(10).
Humanizar é tornar humano, dar condição humana, agir com bondade natural,
humanar. Tornar benévolo, afável, fazer adquirir hábitos sociais polidos,
civilizar(11).
A partir deste conceito é importante abordar a humanização em UTI, pois são
locais destinados à prestação de assistência especializada a pacientes em
estado crítico, exigindo controle rígido de parâmetros vitais e assistência de
enfermagem contínua e intensiva(4).
O conceito de humanização pode ser traduzido como uma busca incessante do
conforto físico, psíquico e espiritual do paciente, família e equipe,
elucidando assim a importância da mesma durante o período da internação(6).
Sendo assim, a humanização representa um conjunto de iniciativas que visam a
produção de cuidados em saúde, capazes de conciliar a melhor tecnologia
disponível com promoção de acolhimento, respeito ético e cultural do paciente,
espaços de trabalho favoráveis ao bom exercício técnico e a satisfação dos
profissionais de saúde e usuários.
A humanização do cliente pode ser percebida na Constituição Federal, que
garante a todos o acesso à assistência à saúde. A Carta dos Direitos do
Paciente, a Comissão Conjunta para Acreditação de Hospitais para a América
Latina e o Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar - PNHAH -
propostos pelo Ministério da Saúde, em 2001, são documentos que determinam o
modo e o campo de atuação das instituições e dos profissionais de saúde rumo à
humanização dos seus usuários, garantindo um melhor atendimento para o cliente
(12).
Tecnologia e Humanização
O cuidado de enfermagem e a tecnologia estão interligados, uma vez que a
profissão está comprometida com princípios, leis e teorias, e a tecnologia
consiste na expressão desse conhecimento científico, e em sua própria
transformação.
Por entendermos o cuidado de enfermagem como um complexo construto, acreditamos
que ele possa ter diferentes dimensões, o que não significa dizer que isso
possa inviabilizar o entendimento de que ele é humano, ainda que tenhamos que
nos apropriar de tecnologias e máquinas para cuidar. A apropriação de
tecnologias, em particular aquelas entendidas como duras, é considerada como
fundamental para cuidar e assistir, pois elas contribuem sobremaneira na
ampliação da capacidade natural de sentir, embora exija da enfermagem um alto
grau de qualificação profissional(13-14).
Desta forma, as UTIs são consideradas locais especiais que demandam um alto
grau de especialização do trabalho da equipe de enfermagem e exigem do
trabalhador um treinamento adequado, uma afinidade para atuar em unidades
fechadas e uma resistência diferenciada dos demais que atuam em outras áreas
hospitalares(15-16).
No contexto atual, o cuidado em UTI hoje, mais do que no passado, tem sido
distinguido pela incorporação/utilização de novas tecnologias, abrindo novos
horizontes e novas perspectivas para a melhoria da qualidade do trabalho/
assistência e de vida dos sujeitos que cuidam e daqueles que são cuidados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se que as reflexões acerca do cuidado de enfermagem em terapia
intensiva deverão passar por uma revisão mais aprofundada acerca dos conceitos
de cuidado e da utilização de tecnologias nesta unidade.
Crê-se oportuno que consideremos também os sentidos atribuídos à terapia
intensiva, não só por parte dos profissionais de enfermagem, mas também por
parte do usuário do mesmo.
Dar a devida atenção às máquinas não é necessariamente uma ação mecanicista.
Entretanto, cuidar de um cliente dependente da máquina é uma ação humana, ainda
que tenhamos que pensar também nessa máquina e no sentido que ela tem para nós.
A grande diversidade tecnológica utilizada pela enfermagem nessas unidades para
auxiliar na manutenção da vida é uma realidade que ao mesmo tempo encanta e
assusta. Não obstante, apresenta aos profissionais que lidam com ela constantes
desafios e questões, exigindo-lhes profundas e constantes reflexões acerca da
sua aplicabilidade no cuidado.
Vale destacar que cuidar de máquinas não é um discurso teórico-prático tão
absurdo, pois se ela em muitos casos mantém o cliente vivo, isso só é possível
porque direta ou indiretamente cuidamos delas também.
Programar as máquinas bem como ajustar seus parâmetros e alarmes e
supervisionar seu funcionamento são exemplos de cuidados para com elas e com os
clientes que delas se beneficiam. No entanto, ao fazermos isso, lançamos mão de
conhecimentos técnicos e racionais que fundamentam nossas ações no trato com as
máquinas, contribuindo para que essas ações sejam interpretadas como práticas
desumanas, principalmente quando estes cuidados provocam no corpo do cliente
sinais de dor, sofrimento e desconforto.
Assim, vale destacar que precisamos entender que os conceitos de cuidado de
enfermagem e as definições que interessam para a profissão são dinâmicos e
deverão variar de acordo com o contexto, com o movimento do mundo e,
consequentemente, com as reconfigurações do humano. Portanto, o que se opõe ao
cuidado é o descuidado, e isso de fato poderá estar ocorrendo e equivocadamente
sendo denominada desumanização.
Compreende-se que a humanização dos serviços de saúde implica em transformação
do próprio modo como se concebe o usuário do serviço - de objeto passivo ao
sujeito, de necessitado de atos de caridade àquele que exerce o direito de ser
usuário de um serviço que garanta ações técnica, política e eticamente seguras,
prestadas por trabalhadores responsáveis. Enfim, essa transformação refere-se a
um posicionamento político que enfoca a saúde em uma dimensão ampliada,
relacionada às condições de vida inseridas em um contexto sociopolítico e
econômico.
No processo de humanização do atendimento em saúde/enfermagem, intui-se que,
diferentemente da perspectiva caritativa que aponta o trabalhador como
possuidor de determinadas características previamente definidas e até
idealizadas, é fundamental a sua participação como sujeito que, sendo também
humano, pode ser capaz de atitudes humanas e "desumanas" construídas nas
relações com o outro no cotidiano.
Nesse contexto, é fundamental não perder de vista a reflexão e o senso crítico
que nos auxiliem no questionamento de nossas ações, no sentido de desenvolver a
solidariedade e o compromisso.