Cotidiano da mulher pós-histerectomia à luz do pensamento de Heidegger
INTRODUÇÃO
No hospital, o centro cirúrgico é uma unidade que atende aos usuários com
peculiaridade e particularidades: de faixa etária, gênero, cultura, raça,
valores, com agravos de saúde e necessidades terapêuticas, relacionadas às
diversas especialidades e onde identificamos pessoas em estados emocionais
distintos.
Para muitas mulheres, com as quais tivemos oportunidade de estar durante as
atividades de ensino e de extensão, em seus períodos de pré-trans-pós-
operatórios, percebemos que a hospitalização e a constatação diagnóstica de uma
situação de morbidade foram vivenciadas como uma experiência impactante sobre
seu cotidiano. Nesse contexto, apreendemos que algumas cirurgias específicas do
gênero feminino e que afetam a condição de ser mulher, ou seja, as cirurgias
ginecológicas acarretam limitações que exigem, quando se faz necessário,
afastamento laboral, distanciamento da família e necessidade de repouso.
Portanto, identificamos como sendo relevante, na compreensão do processo
vivencial de uma mulher com alterações ginecológicas que possua indicação para
tratamento cirúrgico, que a decisão desta intervenção seja estabelecida pelo
profissional que a está assistindo. A tal assertiva, alia-se a incapacidade
cognitiva atribuída culturalmente à mulher para compreender e opinar, com
respaldo, sobre as opções terapêuticas de que dispõe, uma vez que como usuárias
não são consultadas para opinar diretamente sobre a sua saúde/doença e a
definição terapêutica.
Percebamos que a pessoa, ao ter necessidade de submeter-se a um procedimento
cirúrgico, perde o controle sobre o seu estado de saúde, sente-se ameaçada real
ou imaginariamente em face de uma recomendação médica ou também devido ao fato
de buscar perpetuar suas possibilidades de vida pelo maior tempo possível.
Além destas reflexões, ainda observamos que as cirurgias são planejadas em
consonância com as rotinas do serviço e, na maioria das vezes, não é dada à
mulher a possibilidade de decidir o momento mais adequado e tempo necessário à
reorganização de seu cotidiano pessoal e profissional. Assim, ela não tem
opção. É necessário considerar os mitos e as idéias assimiladas pela mulher
sobre a cirurgia ginecológica, principalmente a histerectomia, pois que eles
estão atrelados a sentimentos e valores de cada mulher. Também que a incidência
de morbidade psicológica é mais alta antes da cirurgia, pois a perda do útero
significa para a mulher o fim de um potencial reprodutivo e diminuição da
sexualidade(1).
Tais situações se expressam pelo tempo de duração, pela exposição do seu corpo
ao trauma cirúrgico e pela presença de intervenções mutiladoras sobre órgãos
que, culturalmente, possuem significados vinculados à feminilidade como o útero
(2-3).
A assistência de enfermagem deve enfocar, por isso, atividades que contemplem a
mulher de maneira humanizada, sendo ela vista em sua totalidade, em todos os
aspectos biopsicossocioculturais(4). Assim, este cuidar envolverá ações,
atitudes e comportamentos respaldados em conhecimentos científicos. A mulher
estará sendo considerada como ser humano, uma vez que a mulher com
possibilidade cirúrgica terá no período perioperatório um plano de cuidados
elaborado(5). Destacamos que são de grande importância para o sucesso do
tratamento as orientações tanto no pré-operatório quanto no pós-operatório,
tanto mediato quanto imediato.
A aplicação de técnicas de comunicação interpessoal é imprescindível e as
questões a serem orientadas devem "ir progredindo do geral para o específico"
(6) e em todo o processo deve-se estar aberta e disponível para um franco
relacionamento terapêutico.
A enfermagem deve orientar a mulher quanto aos cuidados que deverá observar
após a alta, os quais poderão alterar seu cotidiano como, por exemplo:
circulação periférica, infecção, micção e hemorragia. É importante que a
cliente seja informada sobre as limitações e/ou restrições a que será submetida
no pós-operatório no processo de restabelecimento(7). Cabe, pois, à enfermagem
parte das atividades de acompanhamento e orientações à mulher no período de
perioperatório, que vão desde os cuidados físicos aos psicossocioemocionais
numa interação efetiva com os demais membros da equipe multiprofissional que a
assiste.
Neste estudo pretendeu-se considerar as características, as questões, os
comportamentos e as atividades das mulheres, que foram submetidas à realização
de histerectomia, focando o seu cotidiano após o procedimento cirúrgico. Pois,
pensa-se que os procedimentos cirúrgicos relacionados aos órgãos genitais
femininos representam a densidade da exposição da mulher. Pode-se, por exemplo,
destacar o útero como um órgão incubador da vida e o que poderia representar
para uma mulher tê-lo mutilado e/ou removido. Isso, entre outras inquietações,
nos faz indagar, como pertencentes ao gênero feminino: quais seriam as nossas
expectativas? Em que elas se modificariam pelo fato de necessitar realizar
histerectomia? Como nos organizaríamos para esse momento cirúrgico e para o
pós-operatório? Que implicação e/ou impacto traria para nossa vida a realização
desta cirurgia? Como nós nos sentiríamos tendo sido retirado todo ou parte de
um órgão com o qual nascemos e principalmente em se tratando do útero com o
qual pudemos gerar nossos filhos? Como seria nossa reinserção no contexto sócio
familiar e laboral? Que alterações teriam o nosso cotidiano?
Se, diante da possibilidade de sermos submetidas a um procedimento cirúrgico
ginecológico tais inquietações anteriormente mencionadas nos mobilizam a
indagarmos como pesquisadoras: como mulheres que estão diante de situações
concretas de indicação terapêutica para a realização de uma histerectomia
enfrentam e/ou vivenciam tais questões anteriormente citadas? Como elas se
organizam para o pós-operatório em relação a seus filhos, marido, vida
doméstica, vida social e retorno ao trabalho/atividade profissional.
Cabe compreender, pois, que a cirurgia como procedimento terapêutico resolve um
problema de um órgão doente, mas traz implicações no pré-trans e pós-operatório
para a condição de mulher. Muito além de ser um procedimento objetivo, em seu
bojo existem relevantes considerações subjetivas para quem o vivencia. Trata-
se, então, de ir além do biológico e se dedicar a encontrar faces do fenômeno
que contribuam para o cuidado, compreendendo a saúde em seu sentido amplo,
integral e humano.
As recomendações pertinentes ao pós-operatório de histerectomia trarão
interferências as mais diversas em seu mundo-vida, e este remete ao ser-aí-com
(8), uma vez que este ser se apresentará como mediador de suas relações como
mulher, esposa, mãe, e com os profissionais.
Nesse sentido, o enfoque dado nesta investigação foi capaz de captar o sentido
do cotidiano da mulher que vivencia a situação de pós-histerectomia, percebendo
suas necessidades de modo a atender a sua singularidade. Tendo em vista as
perspectivas assinaladas e descritas anteriormente, acreditamos que nossas
reflexões para a realização deste estudo, concretizado durante o Curso de
Doutorado, constituíram-se em desafios a serem enfrentados devido a nossa
condição de enfermeira e mulher. E ainda, a de buscar compreender, justamente,
o mundo/cotidiano da mulher acometida por um agravo à saúde que a obriga a
submeter-se a uma histerectomia.
A partir do exposto, delimitou-se como objeto deste estudo o cotidiano da
mulher após a histerectomia, focando a dimensão existencial que envolve
sentimentos, percepções e comportamentos a partir do vivido. E como objetivo
analisar o cotidiano da mulher após a histerectomia à luz do pensamento de
Martin Heidegger.
REFERENCIAL FILOSÓFICO
Devido às inquietações já descritas que incitaram à realização deste estudo,
cujo propósito foi o de analisar o cotidiano da mulher após a histerectomia,
justificou-se, na proposta desta abordagem, a fenomenologia como quadro de
referência. Isso significa que se tratou de buscar a compreensão da mulher em
seu cotidiano vivencial, por meio da descrição do fenômeno, a partir de quem o
experiencia e de modo a alcançar a sua essência, não mais biológica, mas ir
além da dimensão factual.
Acrescentamos, ainda, que o referencial temático sobre a histerectomia está
exclusivamente centrado na doença e nos procedimentos técnicos, sendo estes
insuficientes para esclarecer questões referentes à existência do ser-mulher,
que sendo um ser existente não é contemplada na dimensão do seu cotidiano, pois
"o que interessa é diagnosticar e curar... os valores desejados são a vida, uma
longa vida, a capacidade de reprodução, a capacidade de trabalho físico, a
força, a ausência de dor... além da agradável sensação de existir"(9).
Também, após pesquisas entrevistando médicos, enfermeiras, parteiras e também
mães, descreveu-se os paradigmas de modelos tecnocráticos, humanísticos e
holísticos de cuidados que influenciam o parto contemporâneo em doze doutrinas
de cada um deles e como eles se aplicam na obstetrícia e suas implicações para
o futuro(10). Ela considera que tais modelos diferem em suas definições sobre o
corpo e sua relação com a mente e, assim, na abordagem do cuidado.
Nessa acepção, emergem já desvelados que, dentre as atividades e competências
da enfermagem encontram-se, o confortar, o ser com o outro, o dar segurança aos
clientes, quer seja pelo conhecimento técnico científico, quer seja pela
presença significativa, respeitando sua pluralidade e singularidade(11).
Consideramos, então, que a pesquisa qualitativa, tendo a fenomenologia como
referencial metodológico, abriria perspectivas para a busca da compreensão dos
diferentes significados atribuídas ao cotidiano pela mulher ao ser submetida à
histerectomia, pois que a compreensão se dá quando se volta para quem vivencia
essa circunstância, aproximando-nos da mulher, em suas diferentes
potencialidades e possibilidades.
Nessa perspectiva, encontramos uma significativa produção nacional, através de
dissertações, teses e artigos publicados em periódicos, desenvolvidos com o
suporte da Fenomenologia para a compreensão de muitas situações de saúde/doença
experienciadas em sua condição existencial, evidenciadas nos pensamentos
filosóficos de Martin Heidegger, Maurice Merleau-Ponty e Alfred Schutz.
Na leitura filosófica, a partir de um mergulho profundo, elegemos o filósofo
existencialista Heidegger, que se dedicando a fenomenologia, procurou a
compreensão do Ser. Desenvolveu um método próprio de interpretação e análise,
na busca de compreender os entes dotados do ser da presença, seu sentido de ser
em sua existência. Considera, a fenomenologia como "deixar e fazer ver por si
mesmo aquilo que se mostra, tal como se mostra a partir de si mesmo". Portanto,
a fenomenologia é uma investigação que está, na realidade, no nosso campo de
atuação, que busca o que não está à mostra, ou seja, o que está velado, mas que
pode ser revelado, o sentido ou a direção do ser.
No pensar de Heidegger, encontramos as expressões ôntico e o ontológico. A
instância dos fatos que envolvem entes envolventes - o objeto e coisas e entes
dotados do ser da pré-sença, considera ôntico todos os seres humanos, todos
nós. Ontológico como o ser do humano. Partindo desse pensar, podemos interrogar
o ser e o sentido do ser, para então compreender o velado para nós.
Considerando que o cotidiano é objeto deste estudo, procuramos um
aprofundamento conceitual dessa dimensão(8). Assim, é na dimensão existencial
do cotidiano que estamos no nosso factual, onde nos localizamos e estamos
expostos ao falatório, a tagarelice e a ambigüidade. Vivemos e existimos o dia-
a-dia. Nós somos "antes de tudo e na maioria das vezes", aquilo que determinam
que a gente seja. É no cotidiano que o ser-aí pode se mostrar de maneira
inautêntica e envolvido com as ocupações, sendo à maneira de todos(8).
A cotidianidade é a possibilidade de ser e a possibilidade de toda
impossibilidade. Então, a angústia é se reconhecer como possibilidades e a
morte é reconhecer a finitude como possibilidade mais próxima, passando a ser a
possibilidade de toda impossibilidade(8).
Refletindo sobre o pensamento de Heidegger, acerca do "ente", entendemos que
ente é o que somos e que quando procuramos desvelar um fenômeno temos que dar
voz a quem é ente, ao ser que é pre-sença, que pensa, fala e vive, pois este é
sendo-no-mundo. Dessa forma, o ser é existencial mostra-se, faz-se acontecer, é
ser de possibilidades e isso pode acontecer no cotidiano(8).
Quando dizemos cotidiano, queremos expressar o modo como as coisas se dão
"antes de tudo e na maioria das vezes". Nessa oportunidade, devemos estar
apreendendo as estruturas essenciais "que se mantêm ontologicamente
determinantes em todo modo de ser de fato da pre-sença"(8).
Então, na cotidianidade entenderemos aquilo que é. Estaremos envolvidos com as
preocupações do dia-a-dia, ex-sistindo na facticidade lançados no mundo sem
possibilidades de escolhas, na decadência sendo impessoais (na inautenticidade)
vivenciando o falatório, a tagarelice e ambigüidade velando o sentido do ser.
Ao desvelar o seu modo próprio de viver e relacionar-se com-os-outros na
abertura para o mundo ocorre a expressão significativa. Então, é no cotidiano
que o ser-aí se mostra(8).
METODOLOGIA
Acreditando que para estudar esta inquietação acerca do cotidiano da mulher
após a histerectomia, como um sentido, uma maneira de ser, um modo de ser do
próprio Ser, aproximamo-nos dessa experiência para apreender a sua dimensão
existencial no seu cotidiano de vida. Então, a abordagem qualitativa, tendo a
fenomenologia de Heidegger, como referencial teórico-metodológico, justificou
na proposta de estudo que buscou a compreensão da mulher em seu cotidiano após
a histerectomia, por meio da descrição do fenômeno que a experiência nos
oferece para chegar a sua essência(8). Acrescentamos, ainda, que os estudos
pautados no referencial técnico-científico, exclusivamente centrado na dimensão
da doença, não foram suficientes para esclarecer questões referentes à
existência da mulher-ser encontradas no meu cotidiano profissional.
Heidegger expõe que o pesquisador deve ter com o sujeito interrogado um olhar
atentivo e estar aberto para o diálogo, acolhimento das idéias, opiniões e
sentimentos, colocando-se em seu lugar para ver, sentir e pensar como o
pesquisado e, desse modo, estará mais próximo da sua compreensão. Também, nesta
aproximação com o discurso dito (escrito ou falado) há de se considerar o não
dito, através do silêncio e dos gestos, que são formas de expressão e de
compartilhamento(8).
Esta pesquisa foi desenvolvida com mulheres que se submeteram à histerectomia
no Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora - MG (HU-
UFJF) e por ser este tema emergente da nossa prática profissional e onde
surgiram as nossas inquietações. O projeto de pesquisa foi deferido conforme
Parecer nº 055/2006 do Comitê de Ética da UFJF(12). As depoentes foram 25
mulheres submetidas à histerectomia nos meses de janeiro a julho de 2006, que
responderam às seguintes questões norteadoras: Como tem sido para você este
período após a realização da histerectomia? Como está sendo o seu dia-a-dia?
Como você está se sentindo?
A entrevista aberta foi pautada na metodologia da pesquisa, por ser uma maneira
de o pesquisador adentrar na verdade mesma, seja ela qual for, sem falseamento
ou deslize, sem preconceito ou impostura. Além disso, tentamos estabelecer uma
relação empática, com o intuito de estar num clima descontraído e
possibilitador de um diálogo(13).
A análise dos dados ocorreu concomitante à coleta dos depoimentos. Após a
descrição do fenômeno vivido pelas depoentes, foram destacadas as significações
constituindo-se então a compreensão vaga e mediana sendo este o primeiro
momento metódico em Heidegger. Surgiu, assim, a compreensão do ser - fio
condutor da compreensão interpretativa que é o segundo momento metódico
desenvolvido sustentado no referencial metodológico. Estudos reportam a esses
dois momentos como sendo o primeiro para explicitação do fato, onde o ente se
mostra na maioria das vezes para todos, e, o segundo momento como o desvelar do
ser ou fenômeno, no qual precisamos construir o fato para trazê-lo à luz(14-
15).
RESULTADOS
A partir do ente e pensando acerca do ser, percebemos como a mulher se mostrou
em si mesma e por si, pois, "é o ente que temos a tarefa de analisar",
considerando que este ente se comporta como seu ser(8).
Portanto é o modo em que nós as encontramos, a modalidade de acesso, que mostra
a presença em sua cotidianidade mediana. Da cotidianidade expressa nas falas,
nos depoimentos, procuramos as estruturas essenciais e não as ocasionais.
Portanto, só depois de atentamente ouvi-las, acompanhar uma mudança em seu
corpo (postura), uma fala mais baixa, um gesto é que captamos sua expressão.
Esta expressão, que nem sempre é oral, mas que é gestual, e, portanto
existencial, só é captada a cada vez que se lê os depoimentos, de cada uma das
entrevistadas, por várias vezes. Pudemos perceber, então, que as mulheres
depoentes fizeram esse movimento quando a fala tinha uma ligação, um vivido
forte ligado exatamente à histerectomia.
Foi nesse movimento que conseguimos captar, na singularidade de cada uma
daquelas mulheres, as estruturas existenciais que podem ser determinantes e que
emergem da distinção do ôntico e ontológico. Sendo assim, "O privilégio da
questão do ser, porém, só se esclarecerá completamente se o questionamento
definir, de modo suficiente, sua função, seu propósito e seus motivos". E a
respeito do ontológico que: "a essência da pré-sença está em sua existência"
(8). Pode-se, então, seguindo este pensamento entender que a pre-sença
determina como o ente é e compreender o seu ser, pois "este é o sentido formal
da constituição existencial da pre-sença"(8). E, então, para compreender a
problemática do seu ser tem que se partir de sua existencialidade.
Tornou-se necessário reler várias vezes os depoimentos para captar as
estruturas essenciais, sublinhando os significados relativos à histerectomia.
Então, nesse ir e vir conseguimos apreender o ser do ente porque fomos às
estruturas essenciais, que são aquelas que se mantêm ontologicamente
determinantes. Dessa forma, através dos depoimentos, pudemos destacar as
estruturas significativas e agrupá-las em Unidades de Significação, emergindo:
Os problemas que determinaram a cirurgia são relembrados; A decisão do
tratamento é/foi do médico; A rotina do acompanhamento de saúde é obedecida;
Houve necessidade de ajuda no domicílio; Houve melhora mas ainda há queixas; O
retorno às atividades do lar e de trabalho foi gradativo; houve melhoras mas
ainda há queixas; a atividade sexual foi considerada.
Na compreensão vaga e mediana, as mulheres, após histerectomia, ao falarem de
seu cotidiano, fazem um retorno às situações vividas antes da cirurgia.
Descrevem os problemas que vivenciaram, usando particularmente terminologia da
área de saúde, falando: cesariana, útero atrofiado, cisto de ovário, vagina,
aderência, endometriose, DIU, escamação, mioma, miomatoses, trombose,
histerectomia, laparoscopia, ginecologista. Percebe-se, por conseguinte, que
elas estão repetindo a fala dos profissionais de saúde. Mas, na expressão do
significado delas, revelam que tinham muito sangramento, dores, o útero exposto
ou muito desconforto. Os fatos aconteceram num período de tempo variado, que se
caracteriza como um problema crônico, porque já há algum tempo estavam nestas
situações.
As situações e queixas do período anterior à histerectomia trouxeram para as
mulheres a aceitação da indicação e da decisão médica do procedimento cirúrgico
como solução de seus problemas de saúde. Aceitaram o procedimento proposto pelo
médico porque já haviam feito tratamento medicamentoso e não houve solução de
sua situação. Compreenderam que esse era o recurso possível para a melhoria de
sua saúde, e a decisão do médico sobre o tratamento foi o que prevaleceu.
O interesse pelo controle e acompanhamento de saúde emerge nos depoimentos como
que para atender às recomendações das rotinas de pós histerectomia, bem como no
retorno para avaliação e para fazer o controle. No cotidiano, valoriza o cuidar
de si mesmo expresso também na rotina do exame preventivo ginecológico.
Os depoimentos expressam que as mulheres se ocupam em pensar e em procurar
assistência médica com esta finalidade, fazendo consultas e seguindo as
prescrições e recomendações para se manterem em melhor estado de saúde. Então,
elas se cuidam da maneira que lhes é determinada. Algumas mulheres não
expressaram que estejam se cuidando nem após a histerectomia.
As mulheres relembram que, ao saírem do hospital, foram para os seus lares. A
maioria foi para sua própria casa e lá fizeram repouso, não apenas por que
tinham a recomendação de repouso, nas primeiras semanas, mas por que precisaram
ser ajudadas. Sentiram a necessidade de pessoas se encarregando dos afazeres
domésticos, pois tais tarefas estão sob a sua própria responsabilidade como
mulher. Tinham que fazer repouso, ficando quietinha, nem comida fazendo e sem
ter nenhuma obrigação.
Para o desempenho das atividades, as mulheres submetidas à histerectomia
tiveram que aceitar ou pedir ajuda de outras pessoas, tais como familiares,
vizinhos, amigos e outros, pois elas não podiam fazer certas tarefas. No
período imediatamente posterior à alta, correspondendo à chegada em sua casa ou
a casa de parentes, não se sentiram, em condições de realizar os afazeres que
sempre vinham desempenhando e que são considerados necessários à rotina de sua
casa. Expressam que dependiam de alguém para ajudá-las, até mesmo para a
alimentação.
O retorno às atividades do lar e do trabalho foi gradativo e as mulheres
expressaram o quê fizeram como fizeram e o comportamento que tiveram ao
retornarem aos domicílios. Seguiram as ordens e as recomendações do médico.
Obedeceram fazendo repouso e não fazendo esforço físico como: pegar peso ou
subir escadas. Algumas foram rigorosas nessa obediência, visto que não
cozinharam e nem varreram a casa ou lavaram roupas. Assim, por algum tempo, as
tarefas domésticas foram executadas por outras pessoas.
Depois, aos poucos assumiram suas atividades com a responsabilidade de ocupar
seus lugares no lar e no trabalho profissional fora de casa, desenvolvendo
todas as tarefas e dando conta dos afazeres diários. Reassumiram sua casa e seu
trabalho conforme sua condição anterior à cirurgia, por considerarem seu papel
e estarem bem. Compreendem que hoje levam uma vida normal por que fizeram tudo
direitinho: o resguardo e o repouso. Daí foi possível o retorno às atividades
do dia-a-dia após a histerectomia.
Nos primeiros dias após a alta, já no domicílio, algumas mulheres tiveram
problemas após a histerectomia, evidenciado nos significados por elas
atribuídos: infecção urinária, sangramento, dor na barriga, muita dor,
problemas nos pontos (pontos que abriram), febre, barriga inchada, barriga
parece que congelou e pressão que às vezes sobe (pressão alterada). Desses
problemas, a dor se destaca. Entretanto não referem a essa dor como sendo a
mesma anterior à cirurgia.
A procura pelo médico é inevitável com esses sintomas. Procuram-no mostrando a
possibilidade de que a cirurgia que era para solucionar um grande problema,
ainda assim, está apresentando probleminhas. Então, aqueles que determinaram
idas e vindas ao hospital, são aceitos, pois têm implicação com a cirurgia e
não com a retirada do útero. Portanto, eles são reconhecidos como algo que
possibilitou a redução do problema anterior que era ligado ao útero.
Há relatos de idas e vindas ao ambulatório do hospital ou outro serviço de
saúde, para serem examinadas com a finalidade de saber se o que estão sentindo
é normal. Algumas mulheres, mesmo após meses da operação, queixam-se de
problemas que ainda não foram sanados.
Explicitam terem sido orientadas quanto ao espaço de tempo determinado para o
controle pós-cirurgia, mas em alguns casos tornou-se necessário o retorno,
antes do tempo previsto, para atendimento a necessidades imediatas. Entendeu-se
que a cirurgia resolveu o problema, mas persistem probleminhas.
Detalham alguns cuidados ligados à incisão cirúrgica que tiveram que tomar.
Consideram que a cirurgia não atrapalhou em nada, foi tudo bem, não sentem
diferença nenhuma e concluem que estão melhor quando comparam com o período que
antecedeu à cirurgia. Expressam que, após a intervenção, é possível dizer que
as coisas melhoraram, que estão confortáveis, tranqüilas e bem, mas ainda têm
algumas queixas. Para outras, a condição de se sentirem normais após a cirurgia
é enfatizada, sentem que estão bem e algumas reforçam que estão melhores que
antes da operação.
As mulheres consideraram a atividade sexual, expressando-se acerca do sexo, da
relação sexual: sexo tranqüilo, com conforto, antes era só dor; para outras
mulheres de modo normal: não tive problema nenhum; nada diferente; tranqüilo;
algumas outras expressam que não foi possível esta retomada em decorrência de
problemas após a cirurgia.
Após a histerectomia, a atividade sexual se mostrou como inerente ao dia-a-dia
dessas mulheres sendo praticada ou não, portanto, foi considerada. Existe,
então, a possibilidade de acontecer ou não acontecer. Neste cotidiano ela vai
desde não retornar por: não ter apetite, não praticá-la antes, não conseguir
ter relações, medo da Aids, estar viúva ou dor. A retomada também ocorre porque
é normal ter sexo. Assim, a relação sexual após a histerectomia, pode ser
melhor do que antes, pode ser como antes e ser uma obrigação da mulher.
Assim sendo, após essa compreensão vaga e mediana, foi possível elaborar o
conceito de ser, sendo esse conceito o fio condutor para a hermenêutica por que
"é a partir da claridade do conceito e dos modos de compreensão explícita nela
inerentes que se deverá decidir o que significa essa compreensão do ser obscura
e ainda não esclarecida"(8). Acreditamos que as Unidades de Significação, a
compreensão Vaga e Mediana das mulheres e o conceito de ser, possibilitaram
compreender o sentido do ser-mulher após a histerectomia em seu cotidiano.
Em sua cotidianidade, a mulher não assume para si o cuidar da própria saúde,
como uma decisão. Ela só procura o socorro porque tem problemas, tem dor, tem
sangramento, o colo uterino e até mesmo o útero está saindo pela vagina e o
sangramento pode ocorrer.
Essa mulher, "de início e na maioria das vezes", após a histerectomia, ela não
se abre para o modo de ser do ente dotado do ser da pre-sença, ela se mantém no
modo do ente fechando-se para as suas possibilidades, pois ela está na
facticidade, na impessoalidade, na inautenticidade, no falatório, na
ambigüidade e na curiosidade. Isso tudo acontece um pouco antes e no cotidiano
após a histerectomia. Ela se acomoda sob a dependência de outros, não sendo ela
própria, porque na realidade o cotidiano não se inicia após a histerectomia,
ele já se expressa num movimento existencial do antes, durante e após a
cirurgia.
Elas falam das coisas de sua casa, da volta à instituição hospitalar ou de
saúde para a revisão. Então, elas estão sendo-com-os-outros no modo em que a
pré-sença se mostra inautêntica, impessoal, num mundo ôntico, em que estamos na
maioria das vezes e quase sempre, e, que mostra o caráter ôntico, não expressa
o mundo próprio - mostrando então, o mundo público e doméstico(8).
CONSIDERAÇÔES FINAIS
Partindo das inquietações, surgidas no nosso cotidiano de docente em atividade
em centro cirúrgico, ao receber mulheres para serem submetidas à cirurgia
ginecológica, especialmente a histerectomia, desenvolvemos esta pesquisa para
desvelar o cotidiano da mulher após este procedimento cirúrgico.
De início tivemos que reduzir nossos preconceitos e nossos julgamentos prévios
sobre o assunto, pois muitos deles estavam embasados nas nossas percepções de
mulher, bem como em nossa formação técnica e científica. Tais conceitos prévios
foram sendo adquiridos ao longo da trajetória acadêmica e profissional, na
experiência do dia-a-dia de sala de cirurgia e nos contatos com as mulheres
internadas em pré e pós-operatório imediato.
Considerando que, em nossas preocupações e ocupações profissionais em relação à
assistência à mulher, o foco da subjetividade foi sendo fortalecido buscamos o
suporte teórico metodológico da abordagem fenomenológica de pesquisa. Esta
posição investigativa valoriza a mulher como um ser único e singular, portanto
é um dos caminhos possíveis para contemplá-la em suas necessidades individuais.
E, nesse olhar à luz do pensamento heideggeriano, pudemos penetrar na
singularidade de cada mulher e perceber que cada uma e todas, no movimento
desvelado neste estudo, vivem um dia-a-dia determinado pela inautenticidade,
que é o modo próprio de ser dos entes no cotidiano, sendo ser-aí com
possibilidades para a autenticidade.
Assim, fomos movidas não apenas pelo desejo de prestar uma assistência de saúde
de qualidade mas de contribuir no cenário dos serviços de saúde com uma atenção
efetiva de enfermagem, deixando claro, contudo, que a metodologia do estudo e o
Filósofo que fundamentaram a etapa de interpretação não são prescritivos.
Assim, nesta etapa final, à guisa de conclusão, procura-se considerar as
implicações da compreensão interpretativa não apenas para o cotidiano da mulher
após a histerectomia, mas para as questões de saúde da mulher de modo
abrangente e geral. Entendemos que esta descrição feita pela mulher parece
necessária para que se compreenda que para ela, existencialmente, é um
processo. Há uma interligação mediante a qual seu movimento e seus modos de
ser, no cotidiano, puderam ser captados porque ela os significou. A partir
destes significados, foi possível desvelar sentidos por eles, (os
significados), encobertos no dia-a-dia assistencial pela rotina dos serviços e
pela atitude dos profissionais de saúde.
Acreditamos que as mulheres precisam ser vistas como ser de possibilidades e
não só como problemas no útero; com características singulares e não de modo
geral. Portanto, este estudo traz uma contribuição especial e primeiramente
para a enfermagem ginecológica, que é dominada pela ginecologia e pelas
ginecopatias mais prevalentes. Neste estudo, as mulheres evidenciaram o quanto
o cuidar da saúde é pontual e não integral, sendo um cuidar a partir dos
sintomas e das complicações e para exigirem uma assistência integral, elas
precisam de ajuda para decidirem e não apenas que se trate ou se extirpe a
parte do seu corpo que está com problemas.
Evidenciou-se que a equipe assistencial se pre-ocupa com as orientações para a
alta, mas não se ocupa em considerar o ser existencial da mulher. O estudo nos
instiga à reflexão do quanto necessitamos rever nossa forma de cuidar,
ampliando as reflexões e fomentando discussões interdisciplinares, despertando
nos profissionais de saúde a sensibilidade para valorizar a fala e a escuta da
mulher. E, que o relacionamento com a mulher seja de forma empática a partir do
momento que ela procura o serviço de saúde. Por fim, são as universidades, que
alicerçadas no tripé ensino/pesquisa/extensão, as instituições com capacidade
para formarem os futuros profissionais, possam oportunizar intervenções capazes
de mobilizar, desde a graduação, que estes o ser-com-os-outros, a
intersubjetividade, a autenticidade, a solicitude e o desvelo, para que estes
se reflitam nas decisões e nos cuidados planejados e desenvolvidos com vista à
assistência integral e humanizada na área de saúde da mulher.