Integralidade do cuidado à saúde como competência educativa do enfermeiro
INTRODUÇÃO
O componente educativo da assistência de enfermagem
A Enfermagem, como profissão historicamente dedicada ao cuidado humano, sempre
teve sua prática profissional permeada por um forte componente educativo. São
várias as autoras que discutem essa dimensão educativa, considerando-a como
elemento fundamental no trabalho da enfermeira(1-4).
De maneira sintética, pode-se dizer que a dimensão educativa expressa-se em
diferentes atividades: no ensino de enfermagem praticado em instituições de
ensino profissionalizante e universitário; na educação permanente da equipe de
enfermagem e nas ações educativas desenvolvidas na assistência de enfermagem a
usuários dos serviços de saúde, em atividades individuais ou grupais, no
interior dos serviços e na comunidade.
Apesar da importância dada ao papel da enfermeira no desenvolvimento de ações
educativas e do fato dessas ações estarem fortemente presentes em sua prática
assistencial, observa-se que ainda há um grande distanciamento entre os
projetos educativos desenvolvidos pelas enfermeiras nos serviços de saúde e as
necessidades da população(4).
Historicamente, a prática educativa realizada por enfermeiras no cotidiano da
assistência tem enfatizado a transmissão de informações e a mudança dos
comportamentos individuais. Vincula-se a um modelo de atenção à saúde voltado
para a doença, com ênfase no conhecimento técnico-científico especializado, e
promove a fragmentação das ações de saúde, daí seu caráter autoritário e
coercitivo(5-6).
Tais práticas têm se mostrado pouco efetivas para atender as necessidades de
cuidado à saúde de indivíduos, famílias e grupos sociais, pois não levam em
conta a determinação social dos fenômenos de saúde e doença e não estão
orientadas para promover a participação dos sujeitos sociais no enfrentamento
de suas necessidades e seus problemas de saúde(7).
Como consequência, observa-se um grande distanciamento entre os projetos
educativos desenvolvidos pelas enfermeiras nos serviços de saúde e as
necessidades de cuidado da população. As enfermeiras, por sua vez, queixam-se
de dificuldades e de falta de competência para desenvolver práticas educativas
mais dialógicas e participativas, como as defendidas pela educação popular em
saúde(5-6).
Essa perspectiva de educação considera a ação educativa como uma prática
dialogada e participativa que tem como objetivo a transformação da realidade de
saúde dos sujeitos e grupos sociais assistidos. Neste sentido, observa-se uma
estreita relação com o princípio de integralidade preconizado pelo Sistema
Único de Saúde (SUS).
A integralidade do cuidado é uma das diretrizes do SUS. O artigo 198 da
Constituição Federal faz referência ao atendimento integral, "com
prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços
assistenciais"(8).
A Lei Orgânica de Saúde também faz referência à integralidade como "como
um conjunto articulado e contínuo de ações e serviços preventivos e curativos,
individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de
complexidade do sistema"(9). Alguns autores também defendem a
integralidade como o eixo norteador das ações educativas desenvolvidas nos
serviços de saúde(10-11).
Nesta perspectiva, a formação inicial em enfermagem tem um papel essencial no
desenvolvimento de competências para ação educativa. As Diretrizes Curriculares
Nacionais (DCNs), em vigor desde 2001, reafirmam a necessidade e o dever das
Instituições de Ensino Superior de formar profissionais de saúde voltados para
as necessidades do SUS, com a finalidade de adequar a formação em saúde às
necessidades de saúde da população brasileira(12).
Este estudo tem como finalidade analisar a integralidade do cuidado à saúde
como uma competência para a ação educativa da enfermeira. Seu objetivo é
identificar os sentidos de integralidade presentes nos discursos dos diferentes
sujeitos envolvidos na formação inicial em Enfermagem, no que se refere ao
desenvolvimento de atividades educativas da enfermeira em seu processo de
trabalho assistencial.
REFERENCIAL TEÓRICO E METODOLÓGICO
Trata-se de um desdobramento de uma pesquisa(13) qualitativa norteada pelo
referencial teórico metodológico do materialismo histórico e dialético, que
teve como objetivo principal construir um perfil de competências para a ação
educativa da enfermeira em seu processo de trabalho assistencial.
Tomou-se como premissa a ação educativa em saúde na perspectiva da educação
popular(14-15) e educação popular em saúde(5-6). Utilizou-se como categoria
conceitual a noção de competência(16), ancorada nas concepções de trabalho em
saúde e saber operante(17).
Compuseram os locais de estudo: a Escola de Enfermagem da Universidade de São
Paulo (EEUSP) e dois serviços de saúde vinculados à USP: o Hospital
Universitário (HU) e o Centro de Saúde Escola Butantã (CSE-Butantã).
A pesquisa foi aprovada nos Comitês de Ética e Pesquisa dos respectivos locais
estudados. Os sujeitos foram abordados, respeitando-se o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido, fundamentado na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de
Saúde.
Participaram do estudo cinco grupos de sujeitos: o grupo 1, constituído por
cinco docentes da EEUSP; o grupo 2, com cinco estudantes concluintes do
Bacharelado em Enfermagem da EEUSP; o grupo 3; com dez enfermeiras
assistenciais, cinco de cada serviço mencionado; o grupo 4; com dois gestores,
um de cada serviço, e o grupo 5, com oito usuários, cinco do HU e três do CSE-
Butantã, totalizando 30 participantes.
Utilizou-se a técnica de grupo focal com os docentes e alunos (grupos 1 e 2) e
a entrevista semi-estruturada com os participantes dos grupos 3, 4 e 5.
Para análise do material empírico utilizou-se a técnica de Análise de Discurso
(18) adaptada para enfermagem(19). O material das entrevistas e dos grupos
focais, gravado e transcrito, resultou em textos discursivos para cada grupo
abordado. Realizou-se a leitura desses textos e a seleção de trechos relevantes
para a pesquisa. Os discursos selecionados foram recompostos em frases
temáticas que, por sua vez, foram organizadas segundo os quatro pilares da
educação(20), para cada grupo abordado.
Por último, conhecimentos, habilidades e atitudes de todos os grupos foram
articulados e recompostos, à luz do referencial teórico, em um quadro síntese
de competências para a ação educativa da enfermeira.
RESULTADOS
A articulação de conhecimentos, habilidades e atitudes provenientes dos
discursos dos sujeitos permitiu construir um quadro-síntese de dez competências
para a ação educativa da enfermeira e seu processo de trabalho assistencial
(Quadro_1).
Das dez competências apresentadas, este trabalho enfoca a primeira, descrita
como "Promover a integralidade do cuidado à saúde", que se fez
presente nos discursos de todos os sujeitos abordados.
4. Discussão
Apesar da integralidade do cuidado à saúde ser apresentada oficialmente no
artigo 198 da Constituição Federal como uma diretriz do Sistema Único de Saúde
(SUS), o conceito emana do Movimento de Reforma Sanitária, que defendia uma
visão ampliada da atenção à saúde, criticando a fragmentação excessiva que
tornava reducionista o modelo de vigente, cuja ênfase recaía nas ações
curativas, em detrimento das ações de promoção e prevenção(10).
Defendida no setor da saúde há algumas décadas e concretizada na Constituição
Federal de 1988 e na Lei Orgânica da Saúde, a integralidade acabou por assumir
uma certa polissemia de sentidos. Matos(21) identifica três sentidos
predominantes: a integralidade como traço da boa medicina; como modo de
organizar as práticas de saúde e como resposta governamental a problemas de
saúde de populações específicas.
O primeiro sentido relaciona-se à atitude do profissional de saúde frente aos
sujeitos, criticando e opondo-se a uma visão reducionista que visualiza o
sujeito como objeto, ou seja, como uma doença, um aparelho fisiológico ou uma
queixa pontual. Defende uma visão ampliada e, portanto, integral do cuidado à
saúde, partindo das necessidades de saúde dos sujeitos assistidos e
considerando seus modos de viver e de enfrentar os problemas de saúde. Esse
sentido da integralidade pode ser observado nos seguintes discursos dos
docentes:
"Nós estamos falando de um outro olhar do enfermeiro diante do
cuidar. É essa competência que nós precisamos desenvolver no nosso
aluno de olhar o indivíduo, a família, a comunidade. Não olhar ele
[paciente]
enquanto um curativo, o diabético, enquanto a doença, que foi assim
que a gente aprendeu a olhar".
"É um olhar amplo, onde você possa vê-lo e identificar as
relações: quem é esse indivíduo desse meio? Como eu posso demandar
ações? Por isso é que a gente está falando que é inerente à
assistência. Agora, a gente está falando que não vai querer mais essa
assistência que é só ir lá fazer o curativo e ir embora".
"acho que é uma visão mais ampliada da ação educativa, que a
ação de uma pessoa vai além daquela doença; depende do projeto de
vida que ela tem, do quão satisfeita ela está com a vida e o quanto a
gente pode ajudá-la a recompor isso. E aí é um ajudar".
"Acho que quando a gente coloca para dentro do nosso núcleo de
ações essa integralidade, acho que, embora a gente separe na escola
como momento acadêmico, na verdade, espera que o aluno integre na
prática os três processos de trabalho. Porque a gente não ensina o
gerenciamento para ele ser um secretário de saúde, eu ensino
gerenciamento para ele gerenciar a assistência, o projeto terapêutico
do paciente. Eu ensino a ação educativa não para ele ser um grande
educador, mas para ele recompor a assistência dele".
No grupo de estudantes, esse sentido da integralidade também pode ser observado
no seguinte discurso:
"Quando eu falo essa coisa da gente ter essa coisa de patologia
e tratamentos e tudo mais, é o conhecimento técnico, que é um fator
importante. No entanto, o que a pessoa tem, como ela está lidando com
essa doença, é de uma importância extrema e muitas vezes na graduação
a gente acaba anulando isso".
As enfermeiras também fazem referência à necessidade de um olhar ampliado, para
além da queixa pontual, partindo da necessidade do usuário. Essa também foi
relatada como sendo uma competência importante para a enfermeira no
desenvolvimento da assistência de enfermagem, bem como das atividades
educativas:
"o cuidar da maneira mais ampla, não é o cuidar fazer uma
técnica, não é fazer uma assistência em si, passar uma sonda. Seria o
cuidar naquele sentido de envolver o indivíduo no seu cuidado, de
discutir com ele as possibilidades de cuidado, de fazer uma
associação daquela situação com todo o meio em que ele vive, o que
veio historicamente antes dele..."
"Então, na hora de planejar uma visita ou de implementar alguma
intervenção, alguma ação no domicílio, ela precisa saber qual a
necessidade que emerge ali na casa do indivíduo e o que o serviço tem
para oferecer também e precisa ter um encontro da necessidade que o
serviço oferece e explorar essa necessidade. Então, acho que não
basta só o que o paciente refere, mas acho que tem necessidades que
podem ser levantadas a partir da perspectiva do profissional".
"Acho que o que é necessário para desenvolver a ação educativa é
primeiro perceber que existe espaço para isso, que existe uma
necessidade de incorporar algum conhecimento ou uma habilidade nova
ou um jeito de fazer diferente e que o usuário pode aprender".
Os usuários, em geral ausentes das pesquisas referentes ao desenvolvimento de
competências para a assistência de enfermagem, deixam clara sua perspectiva em
relação ao cuidado a eles prestado nas unidades de saúde:
"Não é chegar na mesa, você perguntar e a pessoa falar `toma
aquele remedinho e pronto'. Eu não acho isso. Porque quando a gente
fica na sala de espera esperando um atendimento é porque a gente
precisa de ajuda. Então, no meu ver, a enfermeira precisa saber
tratar bem as pessoas".
O segundo sentido da integralidade refere-se à (re)organização dos serviços de
saúde para atender a necessidades dos sujeitos, articulando a demanda
espontânea à demanda programada pelos serviços, defendendo o trabalho em equipe
multiprofissional. Esse sentido pôde ser observado nos seguintes discursos de
docentes :
"Então, nós precisamos criar uma tradição de diálogo entre
nossos pares, aprender com nossos colegas de trabalho, os
enfermeiros, mas, infelizmente, esse é um valor muito distante da
nossa realidade profissional".
Entre as enfermeiras, esse sentido da integralidade é ilustrado pelo trecho a
seguir:
"Acredito que a partir do momento que você trabalha com equipe,
consiga desenvolver teu trabalho, fazendo ligações, solicitando
ajuda, pedindo supervisão... isso te ajuda enquanto profissional e
dilui um pouco mais".
Observa-se que embora as enfermeiras valorizem o trabalho em equipe como uma
forma de promover o cuidado ampliado, o grupo de docentes chama a atenção para
o fato de que, na formação inicial das futuras enfermeiras, não há uma
"tradição de diálogo" entre os profissionais de saúde.
O último sentido refere-se às respostas oferecidas pelo Ministério da Saúde
para solucionar problemas e atender necessidades de saúde de grupos sociais
específicos. Gomes e Pinheiro(22) citam a Política Nacional de AIDS como a que
mais se aproxima desse sentido, pois, entre suas possibilidades e limites,
procura articular ações de promoção, prevenção e recuperação desse grupo
populacional específico. Não foi possível identificar aproximações com esse
sentido da integralidade nos discursos dos entrevistados.
Em que pesem os diferentes sentidos da integralidade, há pontos de
convergência, uma vez que a integralidade "implica uma recusa ao
reducionismo, uma recusa à objetivação dos sujeitos e, talvez, uma afirmação da
abertura ao diálogo"(21),o que pode ser evidenciado em todos os discursos
analisados.
Neste sentido, a integralidade deixa de ser um conceito para se converter em
"um modo democrático de atuar", um "saber fazer integrado"
no qual o cuidado é pautado por uma relação comprometida, responsável, sincera
e de confiança entre profissionais e usuários(22).
Nos seus discursos, os usuários deixam claro esse aspecto ao estabelecer
limites para a ação profissional da enfermeira:
"Ela tem que explicar que ela acha correto, mas ela também tem
de entender que eu posso querer ou não fazer aquilo, é por minha
conta".
A integralidade é um princípio pelo qual as ações relativas à saúde devem ser
efetivadas, no nível do indivíduo e da coletividade, buscando atuar nos fatores
determinantes e condicionantes da saúde, garantindo que as atividades de
promoção, prevenção e recuperação da saúde sejam integradas, numa visão
interdisciplinar que incorpore na prática o conceito ampliado de saúde(10).
Esse princípio também pôde ser observado no discurso dos gestores:
"Uma atenção para além do conhecimento técnico mais específico
precisa integrar habilidades de relação, capacidade de interação com
o usuário, de compreensão do seu contexto mais amplo. Então, uma
visão epidemiológica, uma visão sociológica, uma visão
antropológica".
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em que pesem os diferentes sentidos que a integralidade assume no campo da
saúde, neste estudo constatou-se sua vinculação a um "saber-fazer
integrado", voltado para a realização do cuidado de enfermagem, permeado
por confiança, comprometimento e respeito entre usuário e profissional de
saúde, compatível, portanto, com a perspectiva freireana da educação popular.
Considerando a estreita relação existente entre o cuidado à saúde e a
integralidade, defende-se a adoção da integralidade como eixo norteador das
ações educativas desenvolvidas nos serviços de saúde.
Na matriz de competências para a ação educativa da enfermeira na atenção
básica, promover a integralidade do cuidado à saúde aparece como uma
competência fundamental a ser desenvolvida na formação inicial(13). A
integralidade pode ser também um eixo norteador da formação inicial em
enfermagem, assim como das ações educativas desenvolvidas na Atenção Básica,
favorecendo a aproximação entre o processo formativo e as necessidades dos
usuários dos serviços de saúde, evidenciadas na prática profissional de
enfermagem.