Ocultamento e silenciamento familiares no cuidado à criança em terapia
antiretroviral
INTRODUÇÃO
A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS) e o seu agente etiológico, o
vírus da Imunodeficiência Humana (HIV), foram reconhecidos como um desafio à
ciência, ao mesmo tempo em que são compreendidos como um drama humano e social
pelas famílias que possuem uma criança infectada. As crianças adquiriram
importância epidemiológica a partir dos anos 1990, em decorrência das
transformações simultâneas que aconteceram com o perfil epidemiológico do HIV/
Aids em geral. Dentre essas, destacam-se o aumento da infantilização do HIV/
Aids como efeito da sua feminização, heterossexualização e pauperização da
síndrome(1).
O Ministério da Saúde(2) disponibilizou números comparativos de prevalência
referentes a dois períodos: 1983-1992 e 1992-2004. No primeiro, foram
notificados 1.760 casos e no segundo, 10.917. Ressalta-se que ao longo dos
últimos 11 anos, houve um crescimento de quase 500% dos casos de HIV/Aids
infantil, justificando os diferentes aspectos epidemiológicos da síndrome no
curso do tempo.
Com essa elevação, aumentaram também as demandas subjetivas e objetivas do
grupo infantil, englobando os familiares-cuidadores e os profissionais de
saúde. Nesse contexto, define-se familiares-cuidadores como sendo aquelas
pessoas que mantêm laços afetivos com a criança e são reconhecidos pela unidade
de saúde como responsáveis pelos cuidados(3).
As demandas subjetivas envolvem as vivências emocionais, sentimentais e
afetivas do familiar-cuidador frente à contaminação da criança pelo HIV, que
podem interferir diretamente no seu papel de prestar o cuidado. O conhecimento
do diagnóstico da criança pela família representa um momento de confirmação da
passagem de uma condição para outra: da saudável para a infectada, levando-a a
depender de medicamento para viver. Sentimentos de raiva, frustração e
desespero podem acometer esse núcleo social a partir da revelação diagnóstica e
das mudanças no estilo de vida. A relação imediata que se estabelece entre HIV/
AIDS e comportamentos moralmente inadequados, expondo-a a julgamentos alheios,
é outro fator complicador(4).
Associado a isso, a necessidade da terapia anti-retroviral (TARV) expõe a
soropositividade da criança em seu meio social e constitui uma vivência com os
estigmas e os preconceitos estabelecidos pela sociedade. Tanto ela, como suas
famílias e entes queridos passam a conviver com os desafios constantes
emergentes dessa realidade, com os quais precisa enfrentar no cotidiano das
instituições, como por exemplo, a escola. O estigma e o preconceito têm gerado
um muro de silêncio ao redor das famílias de crianças HIV positivas em
decorrência do medo de possíveis discriminações em seus cotidianos. Ademais,
propicia situações em que a soropositividade e/ou a TARV da criança ou seus
familiares necessitam ser mantidos ocultas frente aos desafios de viver com o
HIV, a possibilidade de adoecer e o conviver em sociedade(5).
No conjunto das demandas objetivas está o provimento, para o familiar-cuidador,
de suporte financeiro, pois o Programa da TARV(2) distribui os medicamentos
necessários à terapia específica da criança portadora do HIV sem custos para a
família. Apesar disso, ambos continuam requerendo recursos financeiros para
cobertura de custos relacionados à terapia complementar (anti-fungicos,
polivitamínicos, antibióticos, dentre outros). Por outro lado, ainda, há
demandas cognitivas e de enfrentamento na implementação de ambas as terapias,
nos espaços público e privado.
A partir desse contexto, apresentam-se as seguintes questões de pesquisa: como
se dá o cotidiano de familiares e/ou cuidadores de crianças que utilizam a
TARV? Que dimensões estão presentes nas situações existenciais da implementação
do cuidado medicamentoso? Para responder a essas questões, foram traçados os
seguintes objetivos: desvelar o cotidiano de familiares e/ou cuidadores de
criança em TARV e analisar as dimensões das situações existenciais do familiar-
cuidador na implementação do cuidado medicamentoso à criança em terapia
antiretroviral.
Destaca-se, ainda, a importância deste estudo em função das dificuldades
encontradas pelos profissionais e pelas unidades de saúde para entrarem e
compreenderem o universo simbólico que contextualiza esses familiares. Ao mesmo
tempo, torna-se relevante explicitar a subjetividade desses cuidadores para que
intervenções possam ser realizadas no sentido de aumentar a adesão à TARV.
Os referenciais teóricos de ocultamento(6), silêncio(7), silencia-mento(8) e
educação dialógica(7) foram adotados para conduzir o processo de desvelamento e
análise do cotidiano dos familiares-cuidadores diante da TARV.
O ocultamento se deve ao social infiltrado no organismo do enunciador e
compreende estratégias de enunciação normalmente impregnadas de ironia ou
resistência, como conseqüência do entrecruzamento de duas dimensões
discursivas, a exterior e a interior. Dessa maneira, este fenômeno está na
origem da particularidade das construções das frases, das rupturas de sintaxe e
das especificidades do estilo que permitem ocultar, esconder ou não explicitar
algo que se apresenta ideologicamente rechaçado, mas presente na vivência e no
discurso interno dos sujeitos(6). O silêncio pode ser compreendido com o
sentido de tragédia, pois não constitui novas formas de enunciação, eliminando
as possibilidades de sustentação do diálogo(7).
Ao mesmo tempo, apresenta-se como constituidor e mantenedor do diálogo entre os
sujeitos comunicantes, na perspectiva da análise do discurso. A respeito do
último, distingue-se dois tipos: o silêncio fundador e a política do
silenciamento(8). O primeiro é tido como o princípio de toda significação, ou
seja, a própria condição de produção do sentido. Dessa maneira, ele aparece
como o espaço diferencial da significação, lugar que permite a linguagem
significar. Na política do silenciamento, ao contrário, encontra-se a cisão
entre o que pode ser e o que não pode ser dito, aspecto que o diferencia do
fundador, pois neste caso o silêncio significa por si mesmo. A política do
silenciamento desdobra-se em duas formas de existência: o silêncio constitutivo
e o local; o primeiro age como um efeito de sentido denominado de anti-
implícito, se dizendo "x" para não dizer "y"(8). O silêncio local apresenta-se
como interdição do dizer, coibindo e proibindo o que se diz. No interior desse
contexto, cabe resgatar a noção de política do silenciamento, especialmente
através da censura, pois parece que é esta forma que perpassa, com maior peso,
o dito e o não-dito do enunciador.
A educação dialógica tem como característica a crítica reflexiva da realidade,
visando a realização de uma intervenção na mesma para a sua transformação(7). A
essência problematizadora, democrática e crítica dessa modalidade de educação
faz com que o educando seja um co-responsável pela sua educação e o educador um
facilitador no encontro das respostas para os problemas.
MÉTODO
Quanto ao desenho da pesquisa, a abordagem qualitativa foi adotada para
conduzir a produção e análise de dados. Entre os métodos qualitativos, optamos
pelo criativo e sensível(9) porque se privilegiou a crítica reflexiva e a
estratégia da dinâmica grupal entre os participantes da pesquisa, levando-os a
interagir e a dialogar sobre suas vivências e experiências. Destaca-se a
utilização das Dinâmicas de Criatividade e Sensibilidade (DCS) como a linha
axial do método, combinado às produções artísticas delas decorrentes(9). No
interior das DCS acontecem a entrevista coletiva, a discussão de grupo e a
observação participante, mediada pela crítica reflexiva freiriana típica do
círculo de cultura(7), visando produzir dados para pesquisa.
O cenário de estudo foi uma unidade de saúde ambulatorial, pública,
universitária, do Município do Rio de Janeiro, de referência para o atendimento
à criança portadora do HIV/AIDS e sua família. O grupo de pesquisa foi
constituído por sete familiares-cuidadores de crianças com necessidades
especiais de saúde, HIV positivas, e foram respeitados os seguintes critérios
de inclusão: ser familiar-cuidador de crianças em uso contínuo de TARV no
domicílio e atendido na unidade supracitada. Para garantir o anonimato dos
sujeitos, adotaram-se pseudônimos indicados por eles mesmos (Denise, Patrícia,
Soraia, Marina, Joel, Zilda e Sônia) e a enunciação das crianças no discurso
dos participantes foi marcada no texto em ordem alfabética de aparecimento (A,
B, C, D, e E). Destaca-se que o número de crianças não é igual ao de cuidadores
porque tanto o Joel quanto a Zilda cuidam da mesma (Quadro_1).
![](/img/revistas/reben/v63n5/05q01.jpg)
Para a produção de dados, realizou-se a dinâmica do concreto com sete
participantes, distribuídos em dois encontros no mês de novembro de 2004, nas
dependências do Laboratório de Pesquisa e Tecnologia Educacional em Saúde da
Criança (LAPTESC), do Núcleo de Pesquisa em Saúde da Criança da Escola de
Enfermagem Anna Nery, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os participantes
da pesquisa responderam a duas questões geradoras de debate: (a) o que eu tenho
feito para que meu filho tome o remédio? (b) o que ele ou ela sente depois que
toma o remédio?
A dinâmica do concreto inspira-se nos princípios do role play(9), tendo como
característica central a explicitação do cotidiano do familiar e/ou cuidador na
implementação de alguma prática de cuidar como um evento do cotidiano(8). No
estudo em tela, eles demonstraram e falaram sobre suas práticas no cuidado à
criança em uso de TARV. Cada dinâmica desenvolve-se em cinco momentos
distintos: (a) o acolhimento e apresentação do ambiente da pesquisa; (b) a
apresentação dos participantes do grupo e a explicação sobre o encontro; (c) a
enunciação e a discussão das questões geradoras de debate; (d) a dramatização e
análise individual; e (e) análise e validação coletiva das produções
individuais e do role play.
As dinâmicas foram gravadas em audiotape e videotape, gerando um relatório que
se constituiu na fonte primária dos dados, após a transcrição das fitas.
Posteriormente, conferiram-se materialidades lingüísticas ao texto, aproximando
a produção verbal das circunstâncias em que foram enunciadas. Aplicou-se, em
seguida, os dispositivos analíticos da análise de discurso(8,10), com destaque
para o silenciamento, a paráfrase, a polissemia e a metáfora, objetivando
extrair a produção de sentido constituída pelos sujeitos a partir do material
transcrito.
Nesse sentido, ressalta-se que o funcionamento da linguagem e a produção de
sentido se assentam e se fundamentam na tensão entre os processos parafrásticos
e polissêmicos(8,10). Os parafrásticos são entendidos como aqueles pelos quais
em todo dizer há sempre algo que se mantém, o dizível, a memória, enquanto a
polissemia é definida como o deslocamento, a ruptura na continuidade perpetrada
pela paráfrase, jogando permanentemente com o equívoco.
Para esses autores, o efeito metafórico é imprescindível neste tipo de análise,
pois é constitutiva do processo de produção de sentido e da constituição dos
sujeitos. A metáfora pode ser entendida como figura de linguagem, ou ainda,
pela tomada de uma palavra por outra através de um mecanismo de transferência,
estabelecendo o modo como as palavras significam. Nos sujeitos, a metáfora se
tornou fundamental, pois ela organizou o seu processo discursivo. Isso se
refletiu no fato de que palavras como problema, doença, isso ou a expressão
isso aí poderiam ser substituídas por HIV ou AIDS, fornecendo o verdadeiro
sentido para as palavras citadas.
Do corpus dos textos foram demarcadas as situações existenciais em uma série de
quadros analíticos procurando explicitar os mecanismos de produção de sentido
utilizados pelos sujeitos em sua discursividade, abrangendo o seu dito e o não-
dito. Os quadros analíticos permitiram a codificação das dimensões e das
temáticas, bem como a sua descodificação (formação de subtemas) e a
recodificação (síntese da temática ou da dimensão)(9).
Ressalta-se que o projeto foi aprovado pelo comitê de ética (aprovação CEP
EEAN/UFRJ Nº 013/04 de 31/08/2004) e que todas as recomendações éticas
constantes da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da
Saúde foram obedecidas. Neste sentido, sem prejuízo das demais ações, a entrada
em campo se deu somente após a autorização institucional dos seus responsáveis
e os dados eram coletados após a exposição dos objetivos e do percurso
metodológico da pesquisa aos sujeitos e à assinatura do Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
As dimensões do ocultamento(6), do silenciamento(8) e do silêncio(7)
apresentaram-se transversais aos processos discursivos dos diferentes sujeitos
do estudo. Essas dimensões foram codificadas pelos familiares-cuidadoras
através das diversas situações existenciais no decorrer das dinâmicas
realizadas. Denise foi uma das participantes a codificar o ocultamento:
Pesquisador (trago a Denise para o cerne da discussão e pergunto):
Denise, como é que foi no início (do tratamento) pra você?
Denise: A A (referindo-se à criança), no inicio, quem acompanhava ela
no médico era a minha mãe, porque eu ainda era nova. Mas eu vinha com
ela. Então, assim... quem mais cuidava assim, era a minha mãe, que
quando ela veio a saber, ela já tinha..., foi quando ela (A) teve um
tombo... quando ela tinha sete meses, ela não tem um pedaço de osso
na cabeça. Foi aí que eles... que descobriu que ela tinha isso,
porque isso aqui dela (Denise aponta para o seu maxilar inferior e a
região das parótidas), essas glândulas inchavam, aí a minha mãe levou
ela no médico e o médico falou que achava que era por causa das
glândulas dela.
O discurso dessa familiar é marcado por regularidades (ou pistas) linguísticas
(8,10) que mantém o HIV/AIDS em estado de ocultamento. Observa-se, portanto,
que os termos HIV ou Aids não estão presentes em seu dizer, apesar de o
fenômeno central ser a descoberta da soropositividade da sua mãe e da sua irmã
(A).
Portanto, ao empregar as expressões isso, a doença e o problema, sem
exteriorizar o seu diálogo interior relacionado ao HIV/AIDS, a familiar mantém
as expressões encobertas, ocultas, através do processo metafórico. Tal fato
advém da representação social do HIV/AIDS na sociedade, ainda marcado pela
imagem da morte e pelo estigma, dificultando a sua enunciação(11), inclusive
entre pessoas que estão convivendo com a mesma problemática, como é o caso dos
participantes do grupo de pesquisa. Assim, observa-se a incompletude
linguística à medida que ocorre uma não explicitação do que foi diagnosticado a
partir do evento da queda.
A situação existencial revela que o ocultamento possui três faces: a não
exteriorização do discurso interior do HIV/Aids, a soropositividade da mãe e a
soropositividade da criança. A familiar continua:
Denise: Aí fez o exame (do HIV) que deu positivo. Aííí a minha mãe
que começou a fazer o tratamento, porque eu era nova... Aí, agora tem
cinco anos que a minha mãe morreu...
Novamente, em sua enunciação, oculta em seu dizer a qual tipo de exame a
criança foi submetida, pois ela sabe que ao dizê-lo estará revelando uma face
oculta da síndrome em sua vida - a soropositividade. Ao mesmo tempo em que se
destacou que o exame realizado em A. deu positivo, não foi especificado a que
tipo de teste foi submetida. Percebe-se, portanto, o ocultamento como uma
questão recorrente na discursividade da familiar, à medida que a expressão
exame do HIV se revela pelo não-dito e pelas condições de produção do discurso
de todos os envolvidos na dinâmica do concreto.
A situação existencial também revela o drama familiar em decorrência da morte
da mãe. Em nenhum momento é exteriorizada a expressão HIV/Aids associado à
morte da mãe, mas as condições de produção do discurso e a observação informam
de que foi em conseqüência do agravamento da Aids.
A Patrícia também codifica o ocultamento como uma dimensão da sua
discursividade:
Pesquisador: E alguma vez ela (A) não quis tomar o medicamento?
Denise: Não. Sempre quis, sempre tomou. [...] Pouco tempo, que ele
(B) começou a falar: Por que eu tomo medicamento? Por que... que eu
tenho que tomar... todo mundo... ninguém toma, só eu que tenho que
tomar medicamento? Ele fica só reclamando, né? Tem um outro também
que ele toma, é...Cadê? É o de 21 ml...(o AZT)
A enunciação da familiar com relação à dificuldade com o cuidado medicamentoso
apresenta-se tensionada entre o passado e o presente. No passado, ela nunca
enfrentou nenhum problema. Na atualidade, a criança, com nove anos, tem
questionado a razão do uso continuado do medicamento e a obrigação de fazê-lo,
haja vista que outras pessoas da casa e as demais crianças com quem convive não
o utilizavam. Além disso, parece que o B se aborrece com essa situação, pois
fica reclamando.
Ainda assim, a participante não esclarece o que ela responde à indagação e à
indignação do filho, assim como muda de assunto rapidamente retornando à
enunciação relativa aos medicamentos. No que tange à relação da mãe com o filho
há um silenciamento ao não responder com clareza sobre o questionamento da
criança acerca da necessidade do uso contínuo do medicamento e à constatação de
que as demais pessoas não fazem uso do mesmo.
A enunciação da criança, na narrativa da familiar, apresenta-se com duas
incompletudes, ambas relacionadas ao uso continuado dos medicamentos e à tensão
entre locuções adverbiais todo mundo e ninguém no uso do medicamento. Cabe
destacar, ainda, que essa enunciação se insere no discurso da familiar através
da polifonia(6), onde a mesma traz à cena a voz da criança.
As duas familiares dão continuidade às suas discursividades
Pesquisador: Vocês acham que o medicamento atrapalha a vida das
crianças (A e B).
Denise (dessa vez, começa a falar): Acho que... assim... às vezes,
sim, porque na hora de sair, pra certos tipos de lugar que gente vai,
aí deu a hora de dar remédio, a gente não pode passar da hora, tem
que dar naquela hora... e as pessoas ficam olhando, e fica
perguntando: _o que é isso? (Curiosos com relação ao medicamento)
Mediada por processos parafrásticos, a familiar revela que o medicamento
atrapalha o cotidiano social da criança e de seus familiares e/ou cuidadores à
medida que expõe a condição de soropositividade, assim como a situação
existencial vivenciada pela família diante da sociedade(12-13). Contudo, não
são todos os lugares em que isso ocorre, embora essa diferenciação não tenha
sido apresentada por ela.
O atrapalhar do medicamento na vida das crianças e suas famílias tem correlação
com o fato de as pessoas presenciarem a ingestão do mesmo, tornando público o
que é realizado de forma privada pela família. Os medicamentos antiretrovirais
adquirem uma necessidade de serem ingeridos de forma escondida, não explícita,
especialmente em função de possíveis perguntas oriundas de eventuais
observadores. Neste contexto e para esse grupo, os antiretrovirais passam a ser
um signo social identificador do HIV/AIDS(6).
A Denise prossegue explicando o que diz quando lhes questionam sobre o uso do
medicamento:
Denise: Da A eu falo, porque ela teve esse problema, que ela caiu. Aí
falam: Ah, ela toma remédio, por que ela tem problema na cabeça? Aí,
eu mostro onde tem a fratura. Porque o médico falou que quando ela
tiver 23 anos se não tiver fechado, ela vai ter que operar novamente.
Aí eu dou essa desculpa, porque todo mundo fica perguntando (acerca
do medicamento que A. toma). Até em casa mesmo! Às vezes tá na hora
de dar o remédio, chega alguém aí pergunta: Ai, o que é isso que ela
(A) tá tomando? (...) Aí minha vó fala também, aí fala. (...) Então,
às vezes, a gente quer sair, vai pra uma praia, o remédio que ela (A)
toma (d4T), um só pode tomar gelado, é direto na geladeira (d4T). Se
vai pra uma praia tem que enfiar tudo dentro do gelo. Se vai sair pra
casa de alguém, chega lá tem que pôr na geladeira. Eles ficam
perguntando: o que é isso? O ruim é esse../ essa parte...
Quando a familiar é questionada por aqueles que observam o cuidado medicamento,
ela antecipa qual é a reação dessas pessoas em determinadas situações, ou seja,
sustenta o seu ocultamento mediado pelo processo de antecipação(6). Ao mesmo
tempo, amplia a resposta, comentando acerca da patologia que a criança possui e
não respondendo à pergunta relativa à substância ingerida. O discurso de Denise
apresenta-se polifônico e interdiscursivo, incluindo a enunciação do
profissional de saúde para dialogar com os observadores/curiosos acerca do
cuidado medicamentoso. Ao proceder dessa forma, utiliza a desculpa como uma
estratégia para manter o diagnóstico de soropositividade da criança oculto da
vida social e assim protege a si mesmo e a criança do estigma e do preconceito.
Esse atrapalhar que aparentemente acontecia somente nos ambientes públicos,
também se dá no âmbito privado da família, dentro da própria residência, quando
algumas pessoas perguntam acerca do medicamento utilizado. O ocultamento
aparece, então, não somente como um comportamento individual de uma familiar,
mas uma maneira específica desse grupo se mover com o objetivo de evitar a
revelação do diagnóstico sorológico.
Patrícia, também, expõe a sua situação existencial:
Patrícia: Ah, eu sempre saio depois do medicamento (administra a
medicação antes de sair). Sempre volto antes do outro (refere-se à
dose do medicamento). Só quando, lugar que tem que dormir, aí eu
adianto um pouquinho (a dose do medicamento). Quando eu tenho que
sair às 11 horas, dou às 10 horas o remédio, né? Porque é melhor dar
adiantado, do que não dar, né? Então, eu já dou logo adiantado a ele
( B), e vou tranqUila.
As atividades externas ao lar são organizadas em função do horário do
medicamento, sai depois deles e retorna antes da próxima dose, apesar de não
existir recomendações especiais para a sua ingestão. Essa atitude revela-se
como uma estratégia de ocultamento do medicamento e da síndrome, permeando o
cotidiano do núcleo familiar. Em algumas situações é necessário adiantar o
horário, revelando um discurso tensionado entre oferecer o medicamento
adiantado ou não oferecê-lo publicamente, evitando a exposição da
soropositividade ao público.
Nessas situações existenciais, o ocultamento esteve presente nas relações
internas da família dos cuidadores (soropositividade da mãe da A.), na relação
com a criança (não explicação do motivo pelo qual se toma o medicamento) e na
interação com o meio social. Há sempre uma preocupação em evitar pessoas
estranhas na hora do cuidado medicamentoso, organizar as atividades de acordo
com o horário das medicações ou vice-versa e de justificar a ingestão dos
medicamentos, como se olhos vigilantes super-visionassem suas ações. Observa-
se, então, que este ocultamento perpassa as várias facetas do cotidiano e da
vida dos familiares.
Ao lado do ocultamento, o silêncio apresenta-se como uma dimensão que também
perpassa o cotidiano desses familiares, especialmente em sua relação com as
crianças assistidas. Soraia, em seu processo discursivo, codifica essa
dimensão:
Pesquisador: Quando às vezes ele pergunta (o motivo de tomar o medicamento)...
Soraia: Bom, eu falo... eu respondo/... eu nem respondo nada! Fico
quieta e digo: você (C) tem que tomar o remédio! Ele diz: Ah! É vó,
então tá! Mas tem um gosto tão ruim esse remédio. Mas tem que tomar,
meu filho! Aí ele bebe. Mas eu também não falo, não converso nada com
ele o que ele tem, nada disso! Ele ainda é muito pequeno, não vai
entender, né? Com quatro aninhos ele não vai entender nada.
Observa-se a presença do silêncio da familiar frente ao questiona-mento da
criança, bem como a explicitação de que se mantém silenciosa. Organiza
mentalmente sua resposta à pergunta, racionalizando movimentos discursivos de
repetição até explicitar o efeito de sentido de seu dizer. Nesse sentido,
mediada por processos parafrásticos, revela sua crença na impossibilidade de
que a criança compreenda sobre a necessidade de tomar o medicamento em virtude
de sua imaturidade. Observa-se, também, que à semelhança de Soraia, os demais
participantes possuem um discurso marcado por uma coesão linguística
relacionada à abrangência de causas e consequências e não a orações
explicativas. Pode-se considerar que essa particularidade linguística seja
consequência da presença do silêncio como organizador da formação discursiva
dos sujeitos.
No decorrer desta dinâmica, outro sujeito (Joel) expõe a sua experiência:
Joel: Já falei o seguinte: D, você tem um... um problema/, você ta
tomando esse remédio aqui (apesar de falar "aqui" ele não aponta
nenhum medicamento), não é que é normal porque eu não estou tomando
esse remédio, sua vó não está tomando, você que está tomando! Por que
você está tomando esse remédio? Porque você precisa tomar esse
remédio. Uma vez ele falou assim: Pôxa, mas eu tomo esse remédio já
há um tempão. Então... o que acontece? Eu falei com ele o seguinte:
Mas, veja bem, tem gente que ta cuidando de você, a gente chega lá
(referindo-se à unidade de saúde)... Pra sua tia lá (referindo-se à
médica), ela não cuida de você direitinho? Eu queria ter uma pessoa
para cuidar de mim assim direto... você ta cheio de cuidado de
pessoal... [...] Ele vai... Vai ficando... Vai analisando... Porque
que... Chega na casa de uma criança, aparentemente ninguém toma
remédio, só ele que toma... Ele fica... Tem hora que eu vejo que ele
fica assim... meeeio... Triste, entendeu? Aí chegou o D., vem cá,
porque ela (apontando para Zilda) segura mais um pouco ele... às
vezes eu chamo, eu saio, vai para uma praia, uma viagem, chamar ele,
mas ela segura mais ele... Não vai à praia não... Ele tem que crescer
normal.
A discursividade do Joel reforça o dito de Soraia, em que o silêncio apresenta-
se como uma estratégia adotada pelos familiares-cuidadores na mediação das
informações prestadas às crianças. Esse silêncio toma lugar na negociação, pois
o cuidado pessoal relacionado ao medicamento se apresenta como uma recompensa,
um zelo da família que deve ser reconhecido e gratificado pela criança em troca
de sua adesão ao medicamento.
A discursividade do Joel explicita a tensão entre a paráfrase e a polissemia.
Ou seja, ao mesmo tempo em que mantém a matriz do seu dizer através do
silenciamento, paráfrase do próprio comportamento social com relação ao HIV/
AIDS, apresenta uma ruptura nesse processo discursivo ao considerar a
necessidade que o D tem de crescer de forma normal, utilizando a polissemia
para concretizar a construção frástica.
A Sônia expõe a sua situação de silêncio e ocultamento ao falar sobre o cuidado
cotidiano na relação com a neta E e outros familiares.
Sônia: Cuidado eu tenho. Eu não deixo ficar (a E) muito tempo na
piscina, né? Por causa da pneumonia... Ela ficou muito ruim internada
por tantos dias. Então, muitas coisas eu tenho cuidado: água muito
gelada: não deixo beber, tempero a água. [...] Ela toma o
medicamento. E eu converso com ela, que ela tem problema no coração e
se ela não tomar, ela morre. Então! Você tem que tomar, se não tomar,
vovó vai ficar triste com você. Então ela toma. E todo mundo da minha
família... Muitas pessoas que sabem realmente são muito chegadas a
mim. Tem irmãos meus que não sabem o que ela (E) tem... sabem que ela
tem um problema no coração.
O ocultamento se manifesta quando parte dos familiares tem conhecimento sobre o
diagnóstico da neta. Já o silenciamento se apresenta na relação com a criança
quando questionada sobre o uso contínuo do medicamento. Apesar de o diálogo ser
sustentado, ele se funda no silêncio ao não se explicitar o nome do medicamento
e a que ele realmente se destina. No que tange à síndrome, substitui o seu
dizer denominando-a por uma doença não-transmissível, com o abrandamento ou até
mesmo a eliminação de questões como culpabilização, responsabilização,
identificação da origem de transmissão e possibilidade de contágio, entre
outras coisas(13).
A discursividade revela que o silêncio, o silenciamento e o ocultamento se
expressam de três formas: na relação com a criança; com outro familiar e com
outras pessoas da comunidade .
No primeiro, o silêncio se trava na relação do familiar-cuidador com a criança
manifestando-se como um tema trágico(7), pois ele não permite a constituição de
sentido, e nem a compreensão da criança sobre a sua condição HIV positiva. As
interrogativas da criança, nesse sentido, mantêm-se na trajetória de vida do
núcleo familiar.
O silêncio, nesse caso, possui correlação com a discursividade da familiar
acerca da síndrome, ao substituir a AIDS por uma doença cardíaca. Esse silêncio
acerca do HIV caracteriza-se como um tema trágico na medida em que faz parte do
seu crescimento sem que tenha idéia da condição que traz consigo. Ela cresce
acreditando que tem uma doença crônica, porém de caráter não-transmissível.
Isso está carregado de implicações e responsabilidades éticas e sociais, em que
participa dessa trama, tanto o profissional de saúde como seus familiares,
trazendo todos os riscos associados à sexualidade na adolescência(12-13).
Ao mesmo tempo, o silêncio se perpetua na formação imaginária dessas crianças
acerca das contradições presentes nos discursos dos familiares-cuidadores, no
uso constante das medicações, nas visitas contínuas à unidade de saúde e na
existência de siglas como HIV e AIDS no interior desta em cartazes e quadros.
Esses fatos podem configurar-se de forma ambígua, incerta e angustiante,
associados a punições (e, conseqUentemente, a erros cometidos) ou a injustiças
(já que não fez nada para merecer tais coisas).
Já o silenciamento(8) se faz presente quando ao acompanhar a criança na
consulta com o médico, estabelece com esse profissional uma relação dialógica
que não permite à criança participar do jogo discursivo(14).
O silenciamento se concretiza na não explicitação do HIV/AIDS como
justificativa para o uso constante e prolongado dos fármacos, impedindo a
construção de uma relação dialógica entre a cuidadora e a criança cuidada. Como
consequência, construiu-se uma discursividade imperativa quanto à
obrigatoriedade do uso do medicamento, excluindo-se enunciações explicativas na
formação discursiva da familiar. Ela, objetivando a manutenção desse fenômeno,
empreende enunciações com a criança pautando-se na tragédia da morte (coação) e
no amedrontamento (através da possibilidade de entristecer a quem se ama). Esse
fato gera sentimentos de culpa na criança, interrompendo o seu dizer e
constituindo, consequentemente, o processo de silenciamento para as duas
personagens envolvidas (a familiar e a criança).
O ocultamento, por sua vez, apresenta-se nas suas relações com as demais
pessoas da comunidade, incluindo alguns familiares, amigos, vizinhos e pessoas
de outras instituições, na tentativa de manter a soropositividade oculta. Ele
se materializa na relação do cuidador com a sociedade, ressaltando que o HIV/
Aids só é revelado para pessoas "muito chegadas", excluindo desse rol laços
próximos de consanguinidade, como os seus irmãos. Para a sociedade, o HIV/Aids
permanece oculto através da doença cardíaca, escondendo a origem da infecção e
as situações moralmente indesejáveis, bem como justificando o uso prolongado
dos medicamentos.
Nesse sentido, alguns autores(5,15) trazem uma outra contribuição à discussão
sobre o silêncio, ao entendê-lo como tema trágico. À medida que os familiares
e/ou cuidadores apresentam o silêncio como transversal em seus movimentos
discursivos, abrem espaços para situações complexas e literalmente trágicas,
como pré-adolescentes que pensam possuir uma disfunção cardíaca e tendem a
iniciar a vida sexual com essa percepção.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: PONTUANDO ALGUMAS QUESTÕES IMPORTANTES
As dimensões do ocultamento e do silenciamento se apresen-taram como parte do
cotidiano desses familiares em suas relações com a sociedade e com a própria
criança cuidada. Compreende-se que esses mecanismos ou fenômenos estão na base
de uma forma específica de enunciação. Essa formação discursiva particular se
conformou na não utilização das expressões relacionadas ao HIV/AIDS,
antiretroviral e síndrome, dentre outras, na não adjetivação dos exames e dos
medicamentos ou na ausência de referentes nas enunciações em que essas
expressões ou siglas se configurariam como sujeitos oracionais, através dos
processos parafrásticos, polissêmicos e metafóricos.
O silêncio e o ocultamento, no entanto, se apresentam como resultado de uma
construção social, representacional e imaginária do HIV/AIDS que se mantém
presente entre essas famílias e a sociedade. Ao mesmo tempo, parece ser
interiorizado pelos familiares, motivo pelo qual aconteceram no âmbito
dialógico das dinâmicas de criatividade e sensibilidade e em suas relações com
as próprias crianças. Nesse contexto, destaca-se a educação dialógica em saúde
(7,9) como uma ferramenta indispensável para a superação dessa situação
vivenciada pelos sujeitos. O enfermeiro se insere, então, como um educador
contribuindo para o aperfeiçoamento do processo educativo implementado com os
familiares e as suas crianças, mediando esse processo através do diálogo(16-
17). Ao negociar o seu conhecimento científico, realizando uma aliança de
saberes(9) , esse profissional ensina e aprende através de uma dialogicidade
que constrói o outro (os familiares) como sujeito de sua história, bem como do
cuidado à criança sob sua responsabilidade.
Ressalta-se, ainda, que os dados demonstram a influência dos fenômenos expostos
no cotidiano de cada família e na adesão à terapêutica instituída pela unidade
de saúde. Esses fenômenos não se configuram como um elemento ao lado dos
demais, mas caracteriza-se por organizar este mesmo cotidiano, conferindo-lhe
uma dinâmica específica. Torna-se importante que os profissionais os considerem
como variáveis que influencia na qualidade de vida e no nível de saúde das
crianças cuidadas.