A Enfermagem brasileira e a democratização da saúde: notas sobre a Política
Nacional de Educação Popular em Saúde
INTRODUÇÃO
Acompanhando a emergência dos modelos explicativos e de intervenção sobre os
processos de saúde-doença-cuidado, a enfermagem produz e reproduz, no seio de
sua prática profissional, os modos de produção e reprodução sociais mais
gerais. O ato de cuidar não possui uma essência abstrata: apóia-se em valores
humanos e historicamente construídos, e produz-se no âmbito da divisão social
do trabalho(1).
A dimensão e a ação política da profissão, portanto, se dá sempre num contexto
historicamente determinado. No caso do Brasil, há que se considerar que as
lutas políticas da enfermagem se conformam e consolidam dentro de uma ordem
social marcada pela injustiça, pela exploração e pela subordinação de grupos
populacionais a elites econômicas, políticas e técnicas.
Em análise da produção científica sobre a relação entre trabalho, cuidado e
política, avalia-se que há a priorização dos aspectos da dimensão micropolítica
do trabalho da enfermagem quando se discute seus processos de trabalho,
mediados pelo conceito de cuidado. Neste caso, a conquista de espaços e a
consolidação de saberes oriundos da prática profissional ficam na dependência
da porosidade dos espaços institucionais "aos modos de andar a vida dos
sujeitos neles implicados de forma que se possa constituir como cenários de
emancipação e de construção de movimentos contra-hegemônicos"(2). Uma prática
pedagógica crítica, articulada ao mundo do trabalho cotidiano, estabelece uma
relação de mediação entre os sujeitos e o mundo capaz de ampliar a percepção
coletiva a respeito das questões e situações-limite, aquelas para as quais as
respostas não estão dadas, e precisam ser coletivamente construídas(3).
Na Enfermagem brasileira, o Movimento Participação foi precursor, ao apontar a
necessidade de consolidarmos uma perspectiva política à enfermagem brasileira
no processo de construção de uma prática de enfermagem e saúde mais
democrática. Entre as expoentes deste se destaca a enfermeira Maria Cecília
Puntel de Almeida, que dedicou seus esforços para a defesa da Enfermagem
enquanto prática social responsabilizada com uma postura mais pró-ativa na
construção das políticas públicas.
Contudo, persistem desafios no que se refere ao fortalecimento político da
categoria profissional. A reconfiguração dos movimentos sindicais, no longo
processo de reestruturação produtiva determinados pelos impactos dos modos de
acumulação das últimas décadas tem representado importante perda política da
classe trabalhadora brasileira(4). Em um contexto de consolidação das
instituições democráticas no país, verifica-se também certo apagamento nos
debates sobre a participação política das categorias profissionais em torno de
projetos de sociedade.
Também na área da saúde tem-se apontado para o esgotamento do modelo de
participação exclusivamente centrado no conceito de representatividade e
institucionalidade, por meio dos conselhos de saúde. Neste cenário se observa
um distanciamento entre a gestão, os trabalhadores e os usuários, realidade que
aponta a necessidade de reconstruirmos a participação local em saúde, que
perpassa pela transformação das práticas educativas e de cuidado, valorizando a
criação de espaços de troca cultural, diálogo e negociação em cada serviço de
saúde. Este distanciamento tem sido evidente na relação entre serviços de saúde
e a população, poucas são as iniciativas dos serviços que agregam as
comunidades na construção de projetos coletivos de saúde.
A participação popular em saúde é, portanto, uma temática não superada. Para
além da participação representativa nos espaços institucionais dos conselhos de
saúde, e como forma de torná-los instrumentos vivos de expressão das
contradições e lutas por uma ordem social mais justa, coloca-se como urgente a
re-politização do debate em defesa do Sistema Único de Saúde.
A Enfermagem, por sua importância histórica e social, e por sua inserção
generalizada nos espaços da produção de cuidado individual e coletivo se
constitui em uma prática social que pode avançar para compor forças capazes de
mobilizar mudanças sociais mais amplas. Há que avançar em formas de análise
sobre as atuais conjunturas políticas onde se dá a prática profissional, lendo-
as à luz dos determinantes históricos e dos valores e possibilidades que
sustentam mudanças sociais mais profundas. Observa-se na atualidade, uma
necessidade de entender que aspectos estão incorporados na mobilização de
sujeitos capazes de intervir, como isso tem se apresentado e se ressignificado
nos contextos de práticas onde estão inseridos, a partir do entendimento de que
é na subjetividade existente nas relações sociais que vão sendo reconstruídas,
alimentadas, potencializadas, essa mesma prática social. Neste sentido, o campo
de práticas e saberes da Educação Popular em Saúde apresenta-se como uma
possibilidade de enfrentamento dos determinantes relacionados às formas
injustas e desiguais de produzir saúde e vida.
Vale lembrar que, no âmbito das práticas educativas para a população, o
fortalecimento do papel de protagonismo dos sujeitos populares e da
participação popular segue sendo um dos pressupostos das políticas de gestão e
de saúde propostas como eixo de mediação entre os níveis federativos. Propõe-
se, entre outras ações, que a educação popular na saúde possa "apoiar e
promover a aproximação dos movimentos de educação popular na saúde na formação
dos profissionais de saúde, em consonância com as necessidades sociais em
saúde"(5).
Este ensaio discute o papel da Enfermagem como profissão e prática socialmente
comprometida com a justiça social, com destaque para a importância de sua
participação na construção de uma Política Nacional de Educação Popular em
Saúde como dispositivo de ampliação da participação social, e no desenho e
implementação de políticas publicas de saúde capazes de incorporar, em suas
ações, os saberes e práticas dos diversos povos e grupos que integram a
população brasileira.
BREVE RECONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DA PARTICIPAÇÃO SOCIAL EM SAÚDE
Embora se saiba que a participação social da Enfermagem é anterior à década de
1960, é imediatamente antes e durante período político marcado pela ditadura
militar que se aprofundam as raízes de uma sociabilidade democrática e
participativa, pelo pensamento e produções teóricas e artísticas diversas, cuja
força até hoje reverbera entre nós. Apenas para lembrar, a ideia de
participação democrática e deliberativa na saúde nasceu neste contexto de
autoritarismo, na década de 1960, a partir das rupturas provocadas pelos
movimentos invisíveis liderados por donas de casa e outros grupos da Zona Leste
de São Paulo.
É a partir destas novas formas de produção de relações que se explicita a
existência de um distanciamento entre serviços de saúde e população, um
truncamento na comunicação, que posteriormente veio a ser conceituado como
fosso cultural, ou ainda como crise de interpretação por parte dos
profissionais e técnicos(6-7).
A problematização desta relação entre serviços e profissionais de saúde e
população é um eixo importante para a agregação de atores sociais diversos -
profissionais, pesquisadores, militantes de movimentos sociais ' em torno da
busca da superação deste distanciamento, e pelo estabelecimento de um pacto
para a construção de um sistema público de saúde pautado em novas bases. A
década de 70 é fértil de experiências locais diversas, desde as propostas de
reorganização dos serviços em novas bases de territorialização, passando pelas
organizações de projetos de saúde comunitária com a inclusão de Agentes
Comunitários de Saúde, com a participação de setores progressistas da Igreja
Católica, que articulou movimentos sociais de resistência por meio das
Pastorais Operárias e da Terra(8).
Considera-se que é pela politicidade do cuidar que esta ação vai configurando-
se como emancipatória podendo esta ganhar expressão a partir da tríade
emancipatória do cuidar: conhecer para cuidar melhor, cuidar para confrontar,
cuidar para emancipar. Desse modo os aprisionamentos dos enfermeiros no
desenvolvimento de ações de cuidado podem ser identificados e, a partir daí,
age-se na perspectiva da integralidade da atenção, fortalecendo a tríade
processo saúde-doença-cuidado e referendando a contribuição que este ao
articular qualidade formal apreendida em todo processo formativo institucional,
a qualidade política que vem sendo tecida ao longo de ações que via de regra se
instituem pelo cotidiano e da articulação dos saberes diversos(3). Aqui
destacamos os saberes populares como aqueles que vão conformando o sujeito ao
longo da vida enquanto seres inacabados que são(4,7).
Neste período, os processos de formação também buscam incorporar novos
pressupostos, expressos, sobretudo, nas experiências da especialização em
Medicina Geral e Comunitária, e na enfermagem, pela expansão, já na década de
80, de processos de capacitação pedagógica e formação de auxiliares de
enfermagem com base em propostas pedagógicas problematizadoras e críticas(10).
A década de 1990 o enfermeiro tem apresentado ganhos sociais, pois, com o
fortalecimento da Atenção Primária à Saúde na perspectiva brasileira, este
profissional tem contribuído efetivamente para construção da estratégia saúde
da família, quer pensando processos de trabalho que articulem o trabalho em
equipe, quer pela cobrança política que a população faz no campo da atenção ou
ainda pela inversão de alguns indicadores, sobretudo no Nordeste brasileiro.
Mas isso não tem sido o suficiente para fazer deste trabalhador um sujeito
diferente. Nesse aspecto visualiza-se que é tempo de dialogar sobre que
situações limites estão presentes a esse momento e precisam de superação. Como
produzir o inédito viável como nos aponta Freire como forma de garantia de
gerar autonomia de atos? E, mais que isso, algo que de fato pudesse contribuir
com todos os outros trabalhadores que se implicam nesse processo de cuidar. A
enfermagem, que ontológica e epistemologicamente vem desenvolvendo reflexões
críticas sobre a categoria cuidado, pode contribuir com a reflexão de tantas
outras categorias que assumem no seu fazer o ato de cuidar.
PARTICIPAÇÃO POPULAR: UM CONCEITO A SER (RE)CONSTRUÍDO
Vale uma breve intersecção para reflexão acerca da idéia de participação
popular, entendida como da participação política, que se construiu no bojo das
lutas da Reforma Sanitária. A explicitação da participação como pressuposto que
consta das bases legais do Sistema Único de Saúde não significa que esta seja
uma questão resolvida. Pelo contrário. Mesmo no que se refere ao período de
conformação da luta pelo SUS, em que pese a mobilização de movimentos sociais,
com destaque para a VIII Conferência Nacional de Saúde de 1986, não se pode
afirmar que este processo teve uma ampla base popular ou proletária (ao
contrário do que ocorreu na Reforma Sanitária Italiana, por exemplo).
Na visão do filósofo e historiador Norberto Bobbio, o conceito de participação
política é bastante flexível, e "se acomoda a diversas interpretações"(11). O
autor destaca três níveis distintos e crescentes de participação. O primeiro é
dado pela presença, que consistiria na forma mais simples e marginal de
participação, um estado passivo e não colaborativo de estar no mundo. O segundo
é denominado de ativação, e significa, em parte, que os indivíduos são
mobilizados por forças externas a eles à participação, tal como nas campanhas
políticas. A terceira forma, que é chamada de participação propriamente dita,
incluiria a presença e a ativação intencional, proativa e propositiva.
Nas sociedades ocidentais modernas, os espaços para a participação são
restritos e geralmente configurados pelo conceito de democracia representativa.
Em contraposição a um certo esgotamento do modelo representativo de democracia,
recoloca-se em questão o conceito de democracia participativa, pela via da
emancipação de grupos marginalizados(12). É importante examinar de modo crítico
a (re)configuração dos processos de participação, via representação
democrática, que, analisados desde uma perspectiva crítica, evidenciam as
contradições inerentes a um processo de legitimação da ordem social burguesa,
que reproduz as condições de produção e exploração da classe trabalhadora, mas,
ao mesmo tempo, desdobra-se em políticas compensatórias a fim de manter a
coesão social.
É com esta leitura que Stotz explica porque a luta social do processo de
Reforma Sanitária não contou, por exemplo, com uma ampliada participação dos
setores populares mais organizados ' o chamado operariado do setor moderno(5):
A partir de 1984, com a recuperação da economia, o movimento sindical
retomou impulso. Porém, o mecanismo inflacionário em que se baseou o
crescimento econômico e o estabelecimento de pisos salariais por
categoria enfraqueceram o movimento sindical. Teve início uma lenta,
mas progressiva, divisão interna no movimento sindical, processo que
levou as lideranças a um horizonte de negociações cada vez mais
limitado às categorias profissionais. Sua posição passou a ser a de
negociar a saúde nos acordos coletivos de trabalho, voltando as
costas ao sistema público então (em parte ainda hoje) marcado por
graves deficiências em termos de acesso e qualidade. O movimento
sindical refluiu politicamente, abandonou a arena política, saiu das
ruas e deslocou-se para o interior das instituições do Estado.
São questões como essa que nos ajudam a compreender como, após duas décadas de
implantação do SUS, não se configurou uma hegemonia dos setores populares no
desenho e implantação das políticas públicas.
O desafio que se impõe à Enfermagem é o de fazer a "leitura do mundo" não
apenas por dentro do sistema de saúde, mas olhando-o como parte de um processo
de lutas e disputas pela legitimação de interesses diversos. No bojo de mais
uma crise do capitalismo, da qual o Brasil parece emergir sem muitas seqüelas,
é preciso lembrar que o que caracteriza este modo de produção é sua tendência à
expansão desmedida, para além da capacidade de consumir da sociedade. Quais as
escolhas e caminhos que nós, enfermeiros, queremos definir, coletivamente, para
enfrentar a manutenção da profunda desigualdade social que ainda se nos
apresenta, cotidianamente, diante dos olhos?
Na experiência acumulada, de quase vinte anos de conselhos e conferências de
saúde, sabemos que aquilo que é chamado de participação é, com frequência,
apenas a presença de representantes da sociedade civil em espaços
institucionais deliberativos. Preocupa mais ainda verificar que há a ausência
até mesmo da presença, que notamos quando a população simplesmente não vai aos
encontros, reuniões, debates. Será apenas uma não-presença, ou trata-se de algo
que sinaliza uma vontade de não-estar, uma ausência intencional de fazer parte
de um processo decisório que pode não vê como legítimas as demandas populares?
Estas são questões sobre as quais precisamos nos debruçar a fim de examinar
mais de perto o que está acontecendo, para romper com a tendência à reificação
do conceito de participação popular. É a partir destas considerações que
defendemos que uma Política Nacional de Educação Popular poderá colaborar para
ampliar os espaços de efetiva participação da população e dos profissionais de
enfermagem.
A EDUCAÇÃO POPULAR: CAMPO DE REFLEXÕES E PRÁTICAS
Se pensarmos esta forma de participação tendo como perspectiva a pedagogia
crítica de Paulo Freire, é inegável a atualidade de uma abordagem que dê
centralidade aos problemas e situações-limite diante dos quais os grupos
populacionais mais penalizados precisam tecer estratégias diversas. Porque é
isso o que as pessoas fazem: embora numa primeira visão nossa constatação seja
a de que elas não participam dos espaços oficiais que a elas foi destinado por
outros, isto nem de longe significa que estão sem nada fazer. Buscam, a partir
dos elementos de sua cultura e visão de mundo, construir as possibilidades para
caminhar no estreito corredor que está à sua frente, no qual as opções que lhes
são oferecidas partem de outra lógica, muito distante dos seus modos de viver e
ver a vida.
Reconhecer que já está presentes o potencial para uma leitura mais ampla do
contexto, de mudança, e a força para o confronto naqueles que parecem tão
frágeis e pouco conscientes é outro princípio da Educação Popular e Saúde
(EP&S). Especificamente no campo da Saúde Coletiva, as reflexões que
ancoram na perspectiva da EP&S vêm provocando os profissionais de saúde e
das instituições acadêmicas a repensar suas relações com os movimentos
populares e a população usuária dos serviços. Uma das reflexões mais
importantes é a que parte de uma situação usual nos serviços: os profissionais
de saúde que fazem educação em saúde qualificam o discurso popular como
confuso, ou afirmam que as pessoas da população não conseguem entender as
informações ou saberes corretos sobre a saúde. Entende-se, nesta abordagem, que
se há alguma dificuldade de compreensão, esta não é apenas da parte da
população, e envolve necessariamente os profissionais de saúde. Com a afirmação
de que "a crise de compreensão é nossa", busca-se alertar os profissionais para
a sua ' a nossa ' dificuldade de alargar nossa compreensão para incluir a forma
de pensar e construir saberes das classes populares (8,13-14).
Eymard Mourão Vasconcelos (7) pontua que as ações desenvolvidas sob a
perspectiva da Educação Popular na área da saúde "(...) estão voltadas para a
superação do fosso cultural existente entre os serviços de saúde, as
organizações não governamentais, o saber médico e mesmo as entidades
representativas dos movimentos sociais, de um lado e, de outro lado, a dinâmica
de adoecimento e de cura do mundo popular".
A idéia deste fosso cultural apóia-se nas concepções críticas de saúde,
sociedade e educação. Há um desafio também epistemológico a ser enfrentado, já
que a forma como as ciências e suas áreas disciplinares se constituíam não
ajuda em nada à superação deste fosso. Nesta perspectiva vale examinarmos
alguns debates sobre o esgotamento de um modelo de fazer ciência que nos
interessa, já que estamos falando da intersecção entre um que-fazer e um que-
pensar educativo.
EDUCAÇÃO EM SAÚDE, EDUCAÇÃO POPULAR E ENFERMAGEM
Na sua evolução histórica, a prática educativa em saúde passa a ser vista como
uma ferramenta importante para a construção de uma consciência política crítica
e efetiva cidadania. A expressão "consciência sanitária" tem hoje um sentido
mais ampliado que apenas consciência quanto aos cuidados pessoais, e inclui
também o olhar crítico sobre as diversas formas de relações entre população e
Estado para a resolução dos problemas de saúde, desde a relação profissional-
usuário até a participação em instâncias de gestão dos serviços. As concepções
teóricas e metodológicas que melhor incorporaram este sentido de mudança são
representadas pela pedagogia libertadora de Paulo Freire e pela problematização
da realidade proposta por Juan Bordenave, entre outros.
Ainda que estas concepções pedagógicas que embasam as ações de EP&S não
sejam recentes, percebe-se que as práticas de saúde, as quais são permeadas
pelas práticas educativas, não as incorporam e não apresentam mudanças
significativas no que se refere ao papel de cada profissional das equipes, à
integração dos processos de trabalho, mantendo ainda uma visão ingênua da
educação como potencialmente redentora, e reafirmando a dificuldade de relação
entre profissionais e população, representada pela metáfora do "fosso
cultural"15
Na análise dos possíveis determinantes deste distanciamento entre profissionais
e população, há que se considerar a questão da dificuldade de vocalização
discursiva por parte daqueles que pouco tiveram, historicamente, espaço para
tal. Aponta-se para a importância da ideologia como forma específica do
imaginário social moderno, o que determina a produção de espaços que excluem os
discursos que não são considerados "competentes". Aqui, o termo "competência"
se refere à posição, ocupada por quem emite o discurso, hierarquicamente
superior a outros emissores, não reconhecidos ou legitimados como tendo o mesmo
status do anterior. Sobretudo o discurso da racionalidade técnico-científica,
do especialista, é uma das formas sob a qual estão escamoteadas as relações de
poder na sociedade, uma vez que é proferido a partir de um ponto determinado na
hierarquia organizacional e social.
Esta contradição é percebida pelos próprios profissionais de enfermagem, que,
no entanto, não conseguem romper, apenas com a "boa vontade", esta assimetria
na relação com o usuário. Com freqüência, o "fosso cultural" que se interpõe na
relação de profissionais com a população é visto como algo naturalizado e
impossível de romper, como uma dificuldade que não é historicamente construída.
Um segundo olhar sobre esta questão nos faz olhar de forma reflexiva e crítica
para o nosso próprio olhar ' de enfermeiros, comprometidos com a educação
popular. Como nós olhamos e percebemos nossa população, na sua diversidade e
intensa mobilidade estratégica diante das dificuldades da vida? Como construir
um diálogo entre formas de viver e explicar o mundo tão diferentes? Estamos
dispostos a nos despir de nossas certezas para construir certezas provisórias,
coletivas, em aliança com os as pessoas que vivenciam processos de exploração e
os movimentos de luta social?
Há uma tendência a simplificar o debate, e muitas respostas giram em torno de
proposições ingênuas como "fazemos uma capacitação pedagógica a partir de Paulo
Freire, e aprendemos a trabalhar com o povo", como se a transformação
necessária pudesse ocorrer no nível da superficialidade das relações, e não num
sentido mais ampliado, de visão de mundo e de conquista de uma ordem social
diferente.
A enfermagem brasileira tem procurado desenvolver uma prática profissional e
acadêmica no sentido de colaborar para a construção de novas relações entre
profissionais e população, e na perspectiva de estabelecer uma relação
compreensiva com os diversos grupos populacionais e sua inserção cultural. A
perspectiva política desta ação, no entanto, não tem sido percebida e
coletivamente pautada. Talvez porque essa ação política não tem sido assumida
na perspectiva do cuidado emancipatório, mas pela via da corporação, o que por
si desqualifica esse debate. É preciso lembrar, a partir de Freire que as
pessoas aprendem em comunhão. Como resgatar esses atos de compartilhamento numa
sociedade que, a cada dia que passa, individualiza processos e nega qualquer
possibilidade de singularizar casos e contextos?
Para o campo da Educação Popular em Saúde, não se desvinculam as condições
concretas da produção e reprodução da vida das condições de saúde. E os que
vivenciam estas condições concretas possuem a capacidade de tecer explicações,
de vocalizar suas necessidades e de desenvolver estratégias diversas de
enfrentamento e produção de cuidado, independente da capacidade do profissional
de enfermagem de compreende-las, aceitá-las ou incorporá-las na agenda das
ações de saúde.
Um dos pressupostos da EP&S é o de que qualquer conhecimento a ser
construído sobre a saúde dos diversos grupos populacionais deve levar em conta
sua dinâmica e incorporar também o conhecimento que estes mesmos grupos
produzem, a partir de sua vida concreta.
É preciso retornar ao pensamento de Paulo Freire como forma de pensar o aqui e
o agora, e de modo coletivo. As contribuições de seu pensamento para a
constituição do campo de saberes e práticas da Educação Popular e Saúde são
várias. Podemos destacar, entre elas, a intransigente defesa do diálogo como
pressuposto da relação pedagógica e o reconhecimento das diversas formas de
construir saberes como questão relevante na relação educativa como processo que
contribui para o protagonismo dos sujeitos 4.
POR UMA POLÍTICA NACIONAL DE EDUCAÇÃO POPULAR EM SAÚDE
Defender uma Política de Educação Popular em Saúde para o SUS nada mais é do
que nos reaproximarmos da luta pela democratização do Sistema de Saúde,
radicalizando na implementação dos valores e princípios até aqui gestados. Como
já exposto, muitos foram os avanços no sentido da democratização do setor saúde
conquistados nestes mais de 20 anos de implementação do SUS. Contudo, grandes
desafios ainda persistem em nos confrontar. Neste sentido é papel desta
Política resgatar os princípios inaugurados pelo Movimento da Reforma
Sanitária, como a integralidade, a humanização, a concepção ampliada do
processo saúde-doença, a participação popular em saúde, ressignificando as
estratégias para alcançá-los, tendo como referencial a Educação Popular em
Saúde.
Para que o SUS dê certo, necessitamos de uma reforma político-cultural em
nossas concepções de sociedade e desenvolvimento, pois atualmente somos
marcados por valores individualistas e mercantilistas, o que aponta a
necessidade de retomarmos a construção do sistema de saúde como projeto
coletivo, que compõe um dos pilares para a conquista de uma sociedade
democrática.
Para ampliarmos o protagonismo popular na política publica de saúde, mesmo com
a conquista das instâncias institucionais do controle social, é explicita a
necessidade de ampliarmos os espaços de encontro entre população e serviços de
saúde, a qual exige uma maior desconcentração de poder decisório, ampliando e
legitimando o potencial do território dos serviços como locus do planejamento
das ações, no qual as estratégias mais eficazes de enfrentamento dos
determinantes sociais da saúde podem ser tecidas.
Evidencia-se a importância da integração entre saberes diversos, valorizando os
saberes populares, considerando a ancestralidade e acultura na produção de
formas coletivas de enfrentamento, além do incentivo à produção de
conhecimentos e o fortalecimento da inserção destes saberes no SUS, tendo como
compromisso o protagonismo e a participação popular.
Além da participação política propriamente dita, a aproximação entre os
serviços e práticas hegemônicas de saúde e as práticas populares de cuidado,
desenvolvidas por parteiras, benzedeiras, raizeiros, nos terreiros e
comunidades, para citar alguns exemplos, podem contribuir em muito com a
implementação dos princípios do SUS, como a equidade, a integralidade e a
humanização.
Reafirma-se que a Educação Popular é um campo de saberes e metodologias
importante para a construção da participação popular, servindo não apenas para
a criação de uma nova consciência sanitária, como também para uma
democratização mais radical das políticas públicas. Não é apenas um estilo de
comunicação e ensino, mas também um instrumento de gestão participativa de ação
social(7,13). É também o jeito brasileiro de fazer promoção da saúde.
A educação popular em saúde tem construído sua singularidade a partir da
contraposição aos saberes e práticas autoritárias, distantes da realidade e
orientados por uma cultura medicalizante impostos à população. O jeito de fazer
saúde das práticas populares de cuidado tem demonstrado que as mesmas atuam ou
constroem projetos terapêuticos dialogados, participativos e humanizados,
acolhedores da cultura e do saber popular, reconhecendo o outro em sua essência
e amplitude.
Identifica-se a relevância dos princípios éticos, políticos e metodológicos da
EP&S para a prática de enfermagem comprometida com o fortalecimento da
integralidade e da humanização das ações e serviços de saúde, bem como a
importância da construção da participação popular e da democracia participativa
nas políticas públicas, tendo como compromisso maior a emancipação e a
cidadania da população brasileira.
É este o desafio que se coloca agora para a Enfermagem como profissão e prática
que, em seu próprio processo de legitimação e lutas, é capaz de se abrir ao
outro ' singular e coletivo ' para se fortalecendo, fortalecer as demais lutas
pela inclusão e pela justiça social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entender que já somos fortes o bastante para propor e fazer as mudanças na
direção de uma sociedade mais igualitária só é possível quando acompanhamos e
entendemos como chegamos até o aqui e o agora. Por isso, a perspectiva da
historicidade dos processos sociais, entre os quais os educativos, deve ser o
pano de fundo da ação política e pedagógica que se pretende inovadora e
emancipatória.
Explicitar desafios é, então, retornar ao ponto de partida da Educação Popular
e Saúde: identificar e denunciar as situações-limite em torno dos processos de
subalternização e reconhecer as classes populares como autores e protagonistas
de sua própria história. E cada vez que voltamos a este ponto de partida,
podemos ver os passos que fomos traçando ao longo do tempo, os caminhos que se
abriram e os que permanecem fechados, mas é olhar o passado com o espanto e a
alegria do primeiro encontro.
Nada está dado, tudo está a se construir, e as contradições que resultam na
manutenção de um padrão de profunda desigualdade social também se constroem e
reconfiguram a cada instante. Sem recair no relativismo cultural, trata-se de
uma opção, uma "entrega moral, afetiva e emocional ancorada na
incondicionalidade do inconformismo e da exigência da ação"(12).
Na área da saúde é preciso reconhecer que ainda não conseguimos garantir a
efetiva participação dos grupos que integram as classes populares e os demais
grupos historicamente excluídos. Não se trata de negar a relevância dos espaços
constituídos do controle social, tal como propostos nas bases que dão
sustentação legal ao SUS, mas precisamos reconhecer que este tipo de
participação apresenta-se problemática, e mesmo que funcione, talvez não seja
suficiente para que a vocalização de necessidades e saberes aconteça.
A democracia representativa, sobre a qual se apóia o conceito do controle
social no SUS, funda-se no pressuposto da democratização dos processos de
mediação dos diversos interesses, função delegada pelos cidadãos ao Estado, com
vistas à redistribuição de poderes, recursos e governabilidade. Uma vez que
avançamos nesta direção no processo de redemocratização do país, verificamos,
no entanto que o poder de mediação do Estado vem se acanhando cada vez mais
diante da esfera do capital privado, e não consegue fazer frente aos novos
processos de exploração e opressão daqueles já historicamente espoliados.
Basta pensarmos nas atuais formas de gestão e mediação das relações de
trabalho, as condições progressivamente mais danosas a que os trabalhadores
estão expostos, incluindo os da enfermagem, e as dificuldades que o Estado e os
movimentos sindicais têm encontrado na busca de soluções que não penalizem o
trabalhador ' que é o que está ocorrendo. Uma pergunta que podemos fazer é
sobre qual seria o papel da educação em saúde do trabalhador, neste contexto.
Defender uma outra lógica de educar implica não apenas em mudança de jeitos ou
formas, tal como ingenuamente pensam muitos profissionais de saúde, que
desenvolver propostas como teatros educativos ou grupos de pacientes como se
por si estas estratégias proporcionassem a tão almejada transformação.
O conceito de democracia participativa, quando referido à esfera das relações
cotidianas, recupera o papel de cada sujeito como partícipe das decisões, dando
sentido também ao conceito de corresponsabilização. No âmbito das relações da
macroestrutura social, trata-se de construir um processo no qual possa chegar
às arenas decisórias a voz do maior numero possível de pessoas, em especial
daquelas cuja voz é silenciada. Trata-se de uma visão dialética, que não isola
a esfera do particular em relação ao plano geral das determinações históricas.
É acreditando que a história se faz no cotidiano que muitos enfermeiros têm
ingressado e atuado nas redes que integram a Educação Popular e Saúde, assim
como das instâncias que estão, agora, propondo a PNEPS. E neste sentido, é
preciso reconhecer a dimensão constitutiva da educação no trabalho de saúde,
como dimensão que dele não está separada, e ampliar o debate, no limite, a cada
trabalhador de enfermagem, em todos os espaços onde atuam..
Pensar que há um momento certo ou adequado para fazer educação popular voltada
para a saúde é outro equívoco que aprendemos, e que precisamos desconstruir,
assim como o de achar que somente alguns poucos escolhidos são capazes de
liderar processos de mudança. A mudança desejada implica em caminhar coletivo,
e em processo de tensionamento e enfrentamento: entre a lógica do modelo
biomédico hegemônico e a transformação das práticas de saúde, entre a lógica do
avanço das relações injustas e desiguais, e uma sociabilidade com base em
pressupostos de solidariedade e compartilhamento. Caminhar articulados em rede
com certeza é uma das maneiras de fazer o caminho menos árduo, e mais bonito.