A Ditadura Varguista no Brasil (1937-1945) e o Primer Franquismo na Espanha
(1939-1945): poder e contra-poder das enfermeiras
INTRODUÇÃO
No Brasil, a ditadura do Estado Novo (1937-1945), instaurada por um golpe de
Estado que garantiu a continuidade de Getúlio Vargas à frente do governo
central, e na Espanha, a do Nuevo Estado (1939-1975) por Francisco Franco, que
se deu em conseqüência da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) em que Franco fora
vitorioso, caracterizaram-se pela implantação de governos autoritários, com
significativas repercussões sobre as instituições, os costumes e as relações de
gênero(1).
No contexto político-social destes dois países, a diferença biológica entre os
sexos, fundamento da ordem social, baseada principalmente na natureza anti-
intelectual feminina, funcionava como um dos múltiplos argumentos que
sustentavam a exclusão das mulheres de espaços públicos tradicionalmente
consagrados aos homens, proclamando tanto a interdição de tarefas mais nobres
como sua reclusão no lar.
Na Espanha, com o término da Guerra Civil em 1º de abril de 1939, iniciou-se o
período conhecido como Primer Franquismo (1939-1945), que se caracterizou como
um período de intensa repressão aos focos de resistência armada contra
o Nuevo Estado. Neste período, duas instituições se apresentavam
significativamente reforçadas: as Forças Armadas, com um notável protagonismo
político, mediante importante presença em todas as esferas da vida pública
espanhola; e a Igreja Católica, suporte ideológico da nova sociedade em sua
conformação mais conservadora(2).
No Brasil, a aliança de Getúlio Vargas com a Igreja Católica começou antes
mesmo da implantação da ditadura. A Igreja Católica se consolidou como
importante ponto de apoio de Vargas, através da regeneração da moralidade
social, consolidando uma ética e uma estética que valorizava a família, a
obediência ao Estado e o trabalho (símbolo de dignidade). O governo, por sua
parte, adotava medidas importantes que interessavam à Igreja Católica, isto
porque, em um Estado laicizado, desde a proclamação da República (1889), tais
medidas permitiriam à Igreja aumentar sua base social. Na prática, esta aliança
projetava a hegemonia nacional e contribuía para a manutenção da ordem social.
No Brasil e na Espanha, no que se referia às mulheres, o ponto de aproximação
importante entre Igreja e Estado consistia na (re)orientação delas para o
espaço privado, o lar cristão - microespaço que refletia as construções
simbólicas, mais tradicionais, relativas às diferenças entre os sexos.
Não obstante, as qualidades femininas que simbolizam os fundamentos objetivos
da diferença entre os sexos, no sentido de gêneros construídos como duas
essências sociais hierarquizadas, foram capitalizadas pelas enfermeiras
brasileiras e espanholas para se fazerem ver, se darem a conhecer e se fazerem
reconhecer, ainda que para produzir no espaço público, consentido pelo Estado e
pela Igreja, serviços e ocupações adequadas à feminilidade.
Assim, o presente estudo se justifica porque representa uma contribuição ao
avanço do conhecimento científico no que concerne ao aprofundamento da
discussão sobre a divisão material e simbólica de espaços e práticas sociais
implícitas na divisão social do trabalho que legitima a visão androcêntrica,
mediante a evocação de atributos femininos no exercício da profissão de
enfermeira, os quais demarcam a persistência da repartição dos papéis sexuais
no seu cotidiano, através do cuidado discreto, carinhoso e abnegado(3).
Diante da problemática apresentada foram elaborados os seguintes objetivos:
descrever as principais características das ditaduras de Getúlio Vargas e de
Francisco Franco e analisar as implicações destas ditaduras para a
institucionalização da enfermagem nesses dois países.
MÉTODO
Trata-se de um estudo histórico-social, de abordagem qualitativa, cujas fontes
primárias foram constituídas de documentos escritos localizados em arquivos
brasileiros e espanhóis: Centro de Documentação da Escola de Enfermagem Anna
Nery / Universidade Federal do Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, Biblioteca
Pública de Valladolid, Archivo Municipal de Valladolid e Biblioteca Pública de
Madrid. Os dados foram coletados no período de 21de janeiro de 2009 a 30 de
outubro de 2010. O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em
Pesquisa da Escola de Enfermagem Anna Nery / Hospital São Francisco de Assis em
26 de março de 2009 sob o número de protocolo 04/2009.
O estudo comportou as etapas essenciais preconizadas pelo método histórico.
Assim, após a seleção e classificação das fontes primárias, procedeu-se: a
crítica externa, mediante o exame de sua autenticidade com base na autoria,
procedência e natureza dos documentos; e a crítica interna teve como finalidade
a apreensão do conteúdo, significado e veracidade dos documentos(4). Este
processo permitiu a validação das fontes históricas que foram selecionadas para
o estudo. Cabe ainda a menção de que as fontes secundárias, constituídas de
artigos e livros, consubstanciaram a análise dos dados derivados das fontes
primárias eleitas, as quais constituíram o corpus documental.
A análise dos dados foi respaldada por referências literárias selecionadas, com
destaque para as que tratam da Teoria do Mundo Social do sociólogo francês
Pierre Bourdieu, especialmente no que concerne aos conceitos de habitus e de
poder simbólico. O argumento central de Bourdieu é o de que as práticas sociais
são estruturadas, isto é, apresentam propriedades típicas da posição social de
quem as produz, expressadas através do habitus, o qual "traduz as
características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida
unívoco, ou seja, em um conjunto unívoco de escolhas, de bens e de práticas"
(5). Sendo assim, o habitus simboliza os indivíduos nos espaços sociais, porque
se expressa através de práticas distintas e distintivas. Já o conceito de poder
simbólico, também aplicado ao estudo, contribuiu para a análise da
profissionalização da mulher e da enfermeira, no contexto de ditaduras que
enunciavam e homologavam bases severas de inflexíveis divisões de gênero. Neste
aspecto, o estudo agregou valor ao conhecimento científico já publicado, quando
evidencia os estreitamentos entre os estudos sobre a história das mulheres e
das enfermeiras, e quando traz a lume as imbricações entre questões de gênero e
de relações de poder e de dominação.
MULHERES NAS DITADURAS: FORMAÇÃO PARA O "DOCE LAR" OU REPRODUÇÃO DO "DOCE LAR"
NO ESPAÇO PÚBLICO
O caso da Espanha
Pio XII (1876-1958), autoridade máxima da Igreja Católica, eleito Papa em 2 de
março de 1939, legitimou explicitamente o comando de Francisco Franco na
recristianização da Espanha ao afirmar que: en su política de pacificación
todos sigan los principios inculcados por la Iglesia y proclamados con tanta
nobleza por el generalísimo: de justicia para el crimen y de benévola
generosidad para los equivocados(6). Com efeito, a eficácia do discurso
performativo e consagrador de Pio XII, proporcional à autoridade de seu
enunciador, contribuía para a manutenção da nova ordem política comandada por
Franco, uma vez que seu discurso operou como signo de autoridade a ser
acreditado e obedecido.
A aliança entre a Igreja e o Estado também se expressa na assimilação da Guerra
Civil Espanhola como uma cruzada, o que foi enunciado no mesmo discurso de Pio
XII: reconocemos también nuestro deber de gratitud hacia todos aquellos que han
sabido sacrificarse hasta el heroísmo en defensa de los derechos invulnerables
de Dios y de la religión en los campos de batalla(6).
Ademais, Pio XII, ao consagrar a Espanha como baluarte inexpugnável da fé
católica, homologava simbolicamente o poder de Franco, o que tornava impossível
qualquer debate ideológico: los designios de la Providencia, amadísimos hijos,
se han vuelto a manifestar, una vez más sobre la heroica España, la nación
elegida por Dios como principal instrumento de evangelización del mundo(6).
Por sua vez, Franco reconheceu a importância do apoio da Igreja Católica ao seu
regime e impôs o catolicismo como norma de vida. Com isso, os espanhóis se
viram imersos, por gosto ou por força, na transcendente tarefa de avançar até
Deus. Nesse sentido, o cidadão deveria esforçar-se para parecer metade monge,
metade soldado, à imagem e semelhança de um regime que também se apoiava no
Exército(7).
No caso específico das mulheres, exerceu-se um poder repressivo contra as
mesmas através de legislações e práticas simbólicas que consagravam a submissão
das espanholas aos seus familiares homens: pais, irmãos e maridos. Não
obstante, o reconhecimento da importância da mulher na reprodução biológica e
social, em face de suas qualidades como ternura, doçura, amor, compreensão,
virtude moral, entre outras, tornavam-nas necessárias como educadoras ou
cuidadoras de sua própria família ou como enfermeiras no espaço público,
portanto, indispensáveis ao bem estar coletivo que era atribuído às mulheres em
situação de guerra e de paz por meio de feitos considerados como uma extensão
das naturais funções maternas e domésticas, contribuindo para ratificar a
importância das qualidades intrínsecas à natureza feminina.(8,9).
Por ocasião da Guerra Civil Espanhola, muitas mulheres, motivadas pelo
sentimento patriótico e humanitário, apresentaram-se como voluntárias, embora
com formação educacional bastante incompleta. Para paliar a sentida falta de
capacitação profissional foram realizados cursos de curta duração como:
Enfermeras de la Cruz Roja, Cuerpo Auxiliar de Damas Enfermeras Militares,
Enfermeras de Guerra, Enfermeras del Socorro Rojo, Damas Enfermeras Españolas
etc(10).
Vale ressaltar que a Sección Femenina de la Falange Española Tradicionalista y
de las JONS, que fora fundada em 1934, desenvolveu-se significativamente
durante a Guerra Civil. O estatuto de 1937 já estabelecia que sua tarefa era a
de desenvolver um modelo de mulher como complemento ao do homem, porém, sem
nenhuma reciprocidade(10).
Após a Guerra Civil, a primeira aparição pública da Sección Femenina de la
Falange Española Tradicionalista y de las JONS dirigida por Pilar Primo de
Rivera, irmã do José Antonio de Rivera - fundador da Falange - ocorreu em maio
de 1939, no âmbito das comemorações da vitória. Na ocasião, Franco, ao tempo em
que relembrou com frases impregnadas de retórica patriótica e religiosa o papel
desenvolvido pela organização durante a guerra, também indicou a reconquista do
lar como tarefa nacional das falangistas. Para dar conta, a Sección Femenina
atuou em todo território nacional através das Hermandades para la Ciudad y el
Campo, do Servicio Social, das Escuelas del Hogar nos bairros e prisões,
promovendo atividades assistenciais e de formação e modelação do comportamento
da mulher, mediante o controle de seu corpo e de suas atitudes(2).
Pilar Primo de Rivera, autoridade máxima e vitalícia da Sección Femenina
internalizou perfeitamente essa submissão, encarnada como uma submissão a
Franco, uma vez que, ao longo da ditadura de Franco, Pilar manteve um discurso
que reafirmava a inferioridade da mulher em relação ao homem. Tanto assim que a
revista Medina dirigida às mulheres e editada pela Sección Femenina chegou a
publicar em 13 de agosto de 1944: La vida de toda mujer, a pesar de cuanto ella
quiera simular -o disimular -no es más que un eterno deseo de encontrar a quien
someterse...(11)
Este discurso permaneceu inalterado durante as décadas seguintes, buscando
inculcar na mulher espanhola seu caráter de inferioridade, porém, destacando a
dignidade e a importância do trabalho no âmbito do lar: una mujer que tenga a
las faenas domésticas com toda regularidad, tiene ocasión de hacer tanta
gimnasia como no hará nunca, verdaderamente, si trabajase fuera de casa. si se
piensa en los movimientos que son necesarios para quitar el polvo de los sitios
altos, limpiar los cristales, sacudir los trajes, se darán cuenta que se
realizan tantos movimientos de cultura física que, aun cuando no tienen como
finalidad la estética del cuerpo, son igual (10) mente eficacísimos
precisamente para este fin(10).
Tal publicação é exemplar no sentido de evidenciar que a vocação doméstica
imposta às mulheres espanholas era sublimada pela valorização das qualidades e
funções femininas no processo de reconstrução de um Nuevo Estado
necessariamente católico, nacional e fascista.
O caso do Brasil
No comando do Estado Novo, o poder pessoal de Getúlio Dornelles Vargas
representava a instância decisiva nas resoluções políticas. Nesse contexto, as
Forças Armadas, base de sustentação do Estado Novo, atingiram a culminância de
sua influência, derrotando os adversários do governo e eliminando sua
capacidade de reação pelo fechamento dos mecanismos de participação. Com
efeito, os militares foram enquadrados como atores sociais importantes no
projeto de desenvolvimento nacional liderado por Vargas(12).
O poder pessoal de Vargas também se consolidou mediante estratégias que visavam
à personificação do mito. Eram organizados desfiles, manifestações e programas
de rádio com vistas a enaltecer suas qualidades pessoais e garantir a
disseminação social de uma imagem favorável do ditador através de dispositivos
simbólicos de manipulação e coação, que contribuíam para que o povo
reconhecesse o presidente como um porta-voz autorizado para falar e agir em
nome deste povo(13).
O controle dos meios de informação através do Departamento de Imprensa e
Propaganda, criado em 1939, fruto da ampliação da capacidade de intervenção do
Estado no âmbito dos meios de comunicação e cultura, estimulava o culto ao
Estado e disseminava rituais coletivos que exaltavam sempre a figura de Vargas.
Portanto, graças a esse monopólio dos meios de comunicação, o Estado pôde
manipular e exercer um controle rigoroso servível para a legitimação do novo
poder, oriundo de um golpe(14).
No que tange à condição da mulher, a Lei Orgânica do Ensino Secundário, também
conhecida como Reforma Capanema, que permaneceria em vigor até a aprovação da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961, é exemplar por ter
reproduzido e legitimado a divisão hierarquizante dos papéis sociais do homem e
da mulher, pois os artigos destinados à educação feminina pontuavam as virtudes
próprias da mulher, consagrando sua missão de esposa e de mãe e, sobretudo, seu
papel de colaboradora do outro sexo na construção da Pátria. Em oposição, a
educação masculina considerava atributos como a coragem, a força de vontade, a
compreensão do dever - qualidades dos grandes homens da Nação, heróis da vida
civil e militar(15).
Esta mesma lei determinou que o ensino secundário das mulheres se efetivasse em
classes exclusivamente femininas (Artigo 25, Item 1', o que dificultava a
relação entre os sexos. A prescrição da disciplina "Economia Doméstica",
indicada somente para as mulheres (Artigo 24, Item 3', ratificava a repartição
dos papéis sexuais que reproduzia a dominação masculina, mediante "as condutas
de marginalização impostas a elas através de sua exclusão de lugares públicos
e, por conseguinte, de sua exclusão de tarefas mais nobres"(15).
Outrossim, as associações femininas católicas, tradicionalmente ligadas à
educação e à assistência feminina, contribuíram de forma significativa para o
ensino desse tipo de disciplina. Nesse sentido, logo após a promulgação da Lei
Orgânica do Ensino Secundário, tem-se como manifestação emblemática a
organização de um curso de emergência pela Liga de Senhoras Católica de São
Paulo, para a preparação de professores de Economia Doméstica, sob os auspícios
do Ministério da Educação e Saúde. Neste curso, as aulas de higiene tratavam do
corpo, do vestuário, da escola e do lar. No tocante às aulas de enfermagem,
elas comportavam conteúdos inerentes aos cuidados com os doentes relativos ao
ambiente e visitas, além do aprendizado de alguns procedimentos tais como
verificação de temperatura, pulso e aplicação de injeções. Eram ensinadas ainda
receitas culinárias e noções de economia doméstica relativas à utilização
consciente do salário do chefe da família. Também, os conteúdos inerentes à
sociologia educacional demarcavam o papel da família, da Igreja e do Estado
(15).
Tais conteúdos refletem que a repartição de tarefas deveria ser iniciada no
âmbito da vida familiar, onde o papel da mulher a ser perpetuado deveria ser de
cuidadora e criadora(3). Como constatado, algumas noções de enfermagem fizeram-
se constar em programas secundários da disciplina Economia Doméstica, aonde era
evocada a natureza da enfermagem como extensão de atividades tipicamente
femininas, o que contribuía para reforçar os papéis sexuais no exercício da
profissão, mediante a natureza de seu trabalho como extensão das atividades
domésticas, e que, de um modo ou de outro, acabava por neutralizar
possibilidades de se concorrer com os homens nos espaços públicos.
DITADURAS: PODER DAS ENFERMEIRAS OU O PODER SOBRE AS ENFERMEIRAS
Na ditadura de Vargas foi reproduzido um discurso que fragilizava os princípios
democráticos tendentes a uma maior igualdade de gênero através de dispositivos
materiais e simbólicos, que legitimavam uma relação de dominação baseada nas
diferenças biológicas entre os sexos. Tanto assim que, Gustavo Capanema,
Ministro da Educação de 1937 a 1945, em uma conferência realizada por ocasião
do Centenário do Colégio Pedro II em dois de dezembro de 1937, pontuou a
diferença entre os sexos como determinante das práticas sociais, ao afirmar
que: (...) a educação a ser dada aos dois há, porém, de diferir na medida em
que diferem os destinos que a Providência lhes deu. Assim, se o homem deve ser
preparado com têmpera de teor militar para os negócios e as lutas, a educa ção
feminina terá outra finalidade que é a vida para o lar...(15). Desse modo, o
efeito simbólico das palavras de Capanema reside na possibilidade de
institucionalizar propriedades de natureza social como se fossem de natureza
natural, em face do reconhecimento de sua autoridade.
No que se refere à mulher espanhola, a conferência de Don Santos Begueristáin ,
promovida pela Asociación Católica de Padres de Família, em 1943, é emblemática
no sentido de consagrar simbolicamente a assimetria de gênero ao destacar, no
homem e na mulher, os signos exteriores mais imediatamente conformes à
definição social de sua diferenciação sexual, mediante o estímulo de práticas
convenientes a cada sexo: (...) afortunadamente en España está arraigada la
idea del matrimonio no sentido cristiano. El hombre tiene sus hijos, su esposa,
considera esencial la fidelidad, defiende como un tesoro inapreciable la virtud
de sus hijos y el honor de sus hijas(16).
Estas consagrações de ordem física e social colocavam o homem na condição de
"senhor do privado e da família que eles governavam e representavam, delegando
às mulheres a gestão do cotidiano"(8), constituindo-as como subordinadas e
submetidas, contribuindo para reforçar a hierarquia entre os sexos, proclamada
como necessária à reordenação dos espaços sociais tanto na sociedade brasileira
quanto na espanhola, no contexto das ditaduras de Vargas e de Franco,
respectivamente.
Não obstante, as demandas de saúde do país, juntamente com o interesse do
governo de Franco em modelar o comportamento das jovens, contribuíram para que
a formação de enfermeiras adquirisse grande importância para a Sección
Femenina, já que o modelo de mulher que o novo regime propagava se coadunava
com o modelo de enfermeira caridosa / abnegada / submissa difundido pela
Sección Femenina. Aliás, a preocupação do regime em assegurar o ensino
católico, assim como a estrita dependência da mulher, em geral, em relação ao
homem e das enfermeiras, em particular, aos médicos evidencia-se nos programas
de estudo das enfermeiras e nos livros destinados à sua formação(11).
O excerto extraído do Manual de Enfermería, escrito por Usandizaga, médico e
diretor da Escuela de Enfermeras de la Casa de Salud Valdecilla, publicado em
1934 (1ª edição) e vigente como livro obrigatório para a maioria das escolas de
enfermagem da Espanha até a década de 1960, quando estava em sua 8a edição,
ainda evidenciava os limites de atuação da enfermeira e a estrita necessidade
de obediência ao médico: (...) el cumplimiento exacto de las órdenes médicas,
es lo que caracteriza a una buena enfermera. (... ) la enfermera tiene unas
funciones auxiliares bien determinadas; el intentarse salirse de ellas
constituye una falta de moralidad y en muchas ocasiones un delito(17).
Assim, a postura submissa que era imposta às mulheres se refletia na
determinação dos deveres das enfermeiras, evidenciando a divisão sexual do
trabalho pela primazia concedida universalmente aos homens, "senhor das
mulheres", e em particular pelos médicos, "senhor das enfermeiras".
Vale ressaltar que as enfermeiras espanholas tiveram muita dificuldade para
obterem reconhecimento profissional. A institucionalização do "título de
enfermeira" registra-se em 1915, quando a profissão passou a ser classificada
em: praticantes, matronas e enfermeiras; portanto, havia na Espanha uma
razoável diversificação da enfermagem em categorias.
No âmbito da ditadura franquista, a primeira normatização que afeta às
profissões sanitárias é a de 1º de março de 1940, a qual dispõe sobre a
equiparação entre o curso de matronas e de praticantes, no que concerne ao
número de anos e aos exames do curso. Não obstante, como requisitos para o
acesso ao curso de matronas, as candidatas deveriam apresentar comprovante de
maior idade e autorização do marido, caso fossem casadas. Um ano depois, em 21
de maio de 1941, uma ordem do Ministerio de Educación Nacional estabeleceu
normas para obtenção do título de enfermeira. Esta ordem, entre outras,
estabelecia que os estudos de enfermeira deveriam ajustar-se aos programas
aprovados pelas Faculdades de Medicina ou em centro reconhecidos por elas,
devendo ser de dois anos de duração. Além disso, o exame para a obtenção do
título se realizaria perante uma banca examinadora composta por três
examinadores da Faculdade de Medicina, sendo que um dos examinadores poderia
pertencer à instituição de origem da candidata(11). Dessa forma, evidencia-se
uma significativa dependência do médico na formação da enfermeira espanhola
àquela época.
Esse dado ganha mais expressividade quando se observa as funções das
enfermeiras e das matronas, especificadas na Ley de Sanidad Nacional de 1945, a
qual estabelecia as competências dos três grupos sanitários existentes
(praticantes, matronas e enfermeiras). A lei determinava que as matronas e
enfermeiras fossem profissões exclusivamente femininas. As matronas deveriam
atender aos partos, auxiliar aos médicos na assistência às mulheres grávidas, e
estar sob às ordens destes. No caso específico das enfermeiras, suas funções
centravam-se em um forte caráter técnico e vocacional, obediente ao médico e
com conotações exclusivamente femininas da profissão. Anos depois, o Real
Decreto de 27 de junho de 1952 viria a estabelecer a unificação de todos os
estudos de enfermagem (praticantes, matronas e enfermeiras) em um único
programa e com uma única denominação, qual seja de ajudante técnico sanitário.
Somente com o início da democracia e a incorporação à universidade, a Ordem
Ministerial de 1º de junho de 1977 origina o processo de unificação, adotando-
se o nome de enfermeira para todos os profissionais(11).
No que se refere à enfermagem brasileira, na década de 1920, no Rio de Janeiro,
então capital do Brasil, foi implantada a enfermagem moderna, mediante a
criação da Escola de Enfermagem Anna Nery, sob a égide da saúde pública, no
bojo de uma reforma sanitária liderada pelo cientista e sanitarista Carlos
Chagas, então diretor do Departamento Nacional de Saúde Pública, criado em
1920.
Em 1931, a Escola Anna Nery obteve a condição de "Escola Oficial Padrão"
através do Decreto nº 20.109, de 15 de junho, para fins de criação e
equiparação das demais escolas de enfermagem do país. Este decreto vigorou até
1949 quando tal responsabilidade foi transferida para o Ministério da Educação
e Saúde, conforme a Lei nº 775, promulgada em seis de agosto.
Alguns meses antes da implantação da ditadura, mas na vigência do governo
provisório de Vargas, tem-se a incorporação da primeira escola de enfermagem
brasileira (Escola de Enfermagem Anna Nery) à universidade através da Lei nº
452, de cinco de julho de 1937. Esta incorporação, que refletiu o
reconhecimento da formação de enfermeiras no sistema universitário, conferiu
prestígio à enfermagem na sociedade brasileira, uma vez que "o espaço habitado
ou apropriado funciona como uma espécie de simbolização espontânea do espaço
social"(18), pois sua apropriação depende do capital possuído (individual ou
coletivo) que se constituí como signo visível de poder, porque o espaço social
reproduz, por exclusão ou distinção, as posições que o constitui. Nesse
sentido, há vantagens diferenciais em ocupar esta ou aquela posição num espaço
hierarquizado(19,20).
Dessa forma, no caso brasileiro, o incentivo às profissões femininas, em
consonância com o processo de industrialização do país, favoreceu um expressivo
desenvolvimento da enfermagem, primeira profissão eminentemente feminina do
campo da saúde a ingressar no sistema universitário. Na Espanha, tal inserção
só foi possível com a implantação da democracia. Portanto, comparando as
trajetórias da profissão, no âmbito das ditaduras brasileiras e espanholas,
evidencia-se, na sociedade espanhola, especialmente no período de 1939 a 1945,
uma maior intervenção do Estado na vida das mulheres e, por conseguinte, na
profissionalização da enfermeira.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A necessidade de enfermeiras, no Brasil e na Espanha, possibilitou o exercício
em público de atividades femininas através do cuidado aos enfermos,
principalmente em situações de calamidades e de guerras, e, sob regimes
políticos autoritários, contribuindo para a visibilidade de um modelo de
enfermeira respaldado em aspectos patrióticos e religiosos.
Nesse sentido, as repercussões das ditaduras de Vargas e de Franco no
desenvolvimento da enfermagem se traduziram na exaltação da pátria e da
religião como referências para a atuação da mulher e da enfermeira nos espaços
públicos, no contexto de uma ordem social que reafirmava o caráter de
inferioridade da mulher em relação ao homem, mas pondo em destaque a
importância de suas qualidades morais.
O trabalho de reprodução das relações de poder entre homens e mulheres, no
contexto das ditaduras de Franco e Vargas, foi garantido por duas instâncias
principais: a Igreja e o Estado, que, objetivamente orquestradas, convergiam no
sentido de empreenderem estratégias que naturalizavam essas reproduções,
mediante a consagração de atributos femininos.
Vale destacar que o estudo sobre as repercussões das ditaduras instauradas por
Vargas, no Brasil, e por Franco, na Espanha, no desenvolvimento da enfermagem,
permitiu aprofundar o entendimento da conformação estrutural de cada realidade,
em suas diferentes dimensões espaço-temporais, bem como o trabalho de
reprodução das relações de poder que refletia as construções simbólicas mais
tradicionais, relativas às diferenças entre os sexos.