Avaliação qualitativa da relação de atores sociais com a loucura em um serviço
substitutivo de saúde mental
INTRODUÇÃO
Todos nós, seres humanos, somos fruto da relação que temos com o mundo que nos
rodeia. É nele que agimos, falamos, nos posicionamos, compartilhamos, pensamos,
interagimos.
A história da humanidade nos mostra esse movimento. Desde a Grécia antiga, por
exemplo, o homem vem buscando explicações capazes de entender as transformações
ocorridas no mundo por meio das relações do homem com a natureza. E, isso se
produz por aproximações, distanciamentos, conflitos, contradições que
intensificam debates e nos desafiam com sujeito em movimento.
Foi assim nos diversos campos do conhecimento humano, entre eles, o campo da
saúde. Com os avanços tecnológicos, foi possível combater epidemias históricas,
produzir novas técnicas e entender como o organismo humano adoece, num
movimento de "fora" para "dentro". No entanto, durante séculos, parte dessas
mudanças foi se cristalizando em certas verdades absolutas, que reduziram
aspectos do processo saúde/doença a explicações causais que reproduzem
parcialmente as diferentes demandas necessárias à complexidade dessa
compreensão.
Como exemplo, citamos a participação da medicina nesse processo. Mesmo diante
do conhecimento científico acumulado desde o final dos anos de 1970, quando se
iniciam os debates em torno da necessidade do redimensionamento do processo
saúde/doença e da difusão desse conhecimento em vários estudos, ainda notamos
forte influência de um conhecimento materialmente estruturado a partir do
iluminismo francês. O período iluminista, derivado do conhecimento
renascentista, veiculava a necessidade de "explorar" o corpo para livrá-lo da
doença, tendo, para isso, que explicar os fatos, investigar as causalidades, a
conformação anatômica do sujeito, o aparecimento ou a supressão de sinais/
sintomas, o reaparecimento da condição de adoecimento, seja no contexto
individual ou coletivo(1).
Esse contexto é resultado de um processo histórico de cultivo à racionalidade
experimental do conhecimento humano, iniciado por pensadores como Francis Bacon
e René Descartes. Descartes introduziu toda uma estrutura metodológica que
ficou conhecida como o cogito cartesiano, fundando o método da dúvida,
baseando-se na certeza de que, no pensamento e no ser que pensa, pode existir
uma certeza - "penso, logo existo"(2).
O pensamento de Descartes proporcionou avanços importantes nas diversas áreas
do conhecimento. Na medicina, possibilitou a consolidação de uma medicina
clínico-positivista, responsável pela defesa da cisão do ser humano em parcelas
e pela necessidade de estudo aprofundado de suas estruturas, para determinar as
causas, os efeitos e as consequências dos agentes externos, que eram causadores
de doenças. A passagem a seguir pode sintetizar o tamanho da sua influência
teórico-filosófica na constituição moral e hegemônica da ciência médica, agora
com caráter mecanicista, experimentalista e objetivado(3):
Da descrição dos corpos inanimados e das plantas, passei à dos
animais e especificamente à dos homens [...] Porém, para que se possa
ver de que modo eu lidava com esta matéria, quero mostrar aqui a
explicação do movimento do coração e das artérias, o qual, sendo o
primeiro e o mais geral que se observa nos animais, consentirá julgar
com facilidade, a partir dele, o que se deve pensar de todos os
outros. E, para que seja mais fácil entender o que vou dizer a esse
respeito, desejaria que todos os que não são peritos em anatomia se
dessem ao trabalho, antes de ler isto, de mandar cortar diante deles
o coração de um grande animal que possua pulmões, já que é em tudo
parecido com o do homem, e que peçam para ver as duas câmaras ou
concavidades nele existentes
No campo da saúde mental, essa realidade não foi diferente, porque a evolução
do conhecimento humano foi acompanhada, paralelamente, de explicações teóricas
e práticas de intervenção no fenômeno da loucura. Passando pela doutrina
hipocrático-galênica da Grécia antiga, até a doutrina demonista da Idade Média.
E, foi com o médico Philippe Pinel, em seu Traité médico-philosofique sur
l'aliénation mentale ou la manie, publicado em Paris, em 1801, que se gerou uma
nova cultura médica para investigar o fenômeno da loucura. Dizia Pinel(4;107-
108):
Os loucos com quem mais trabalho costumo conter nos hospitais,
aqueles que mais se distinguem por uma atividade tumultuosa, e os
mais sujeitos às repentinas explosões de furor maníaco [...] O grande
segredo de dominá-los em certas circunstâncias imprevistas, sem dar
golpes nem recebê-los, é fazer com que venham muito subservientes,
para inspirá-los uma espécie de medo por um aparelho que lhe cause
respeito [...] Então se intima, em poucas palavras e com um tom
imperioso, que se rendam e obedeçam [...] um o pega do braço, outro
de um músculo ou de uma perna e assim os demais. Com sorte, levam-nos
e os metem na sua jaula, frustrando todos seus esforços, e o que era
o presságio de uma cena trágica, termina de modo regular [...]
Essa visão sobre a loucura coincidiu com o nascimento da psiquiatria como
ciência médica. Com ela, nasce a concepção de loucura como desvio orgânico,
sendo necessária sua correção em ambientes organizados estruturalmente e
isolados de todo a convivência nociva com o meio social. Através de um
tratamento baseado na autoridade, no isolamento e na subserviência, foi-se
desenvolvendo todo um aparelho imaginário sobre a loucura como sentido de
doença, de desvio, de erro e de periculosidade social. O hospital psiquiátrico
não é só mais uma instituição de tratamento da loucura, mas também um recurso
que abrange medidas protetoras da sociedade, impedindo-a de conviver com a
diferença(5-6).
Essa "verdade absoluta" cultivada pela medicina sobreviveu durante mais de 200
anos. No entanto, nos últimos anos, vivenciamos mudanças expressivas na
construção do conhecimento sobre a loucura. Com o movimento da Reforma
Psiquiátrica, iniciado no final da década de 1970 em diversos países do mundo,
inclusive no Brasil, tem-se conseguido importantes avanços para a reversão de
um modelo médico-centrado e calcado numa relação de subordinação do doente ao
médico. Isso porque a loucura não se restringe mais a apenas uma dimensão
biológica da vida, mas também à compreensão ampliada dos diversos processos de
viver, levando-se em conta as relações interpessoais, as condições sociais, o
contexto político, jurídico e cultural(6-7).
Com essas mudanças, testemunham-se transformações no contexto dos serviços de
saúde mental. Os recursos terapêuticos são reestruturados, em substituição ao
hospital psiquiátrico, para possibilitarem o nascimento de serviços
comunitários, que incorporam o suporte familiar, os laços afetivos, enfim, todo
o território do sujeito no contexto do tratamento. É nesse bojo que surgem os
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), destinados ao acolhimento das
diferentes demandas e dimensões do sujeito que está vivenciando uma situação de
sofrimento mental.
Essa reestruturação traz à tona uma nova concepção de loucura e um novo modelo
de atenção em saúde mental, construídos a partir do olhar da inclusão e da
perspectiva de cuidado a indivíduos que padecem psiquicamente. Assim, a loucura
se complexifica, aparece como força ativa, como potencialidade de
transformação, como produção de novos registros de tempo e de espaço(8). Não
pretendemos definir o que seria loucura, mas demonstrar que esse conceito é
ampliado e que depende de múltiplos fatores, sem cairmos numa polaridade que
não dá suas reais dimensões existenciais(9). Nosso entendimento de loucura é
como fenômeno com o qual podemos e devemos conviver, do qual devemos nos
aproximar para descobrir o significado de sua existência.
Apesar dos avanços conquistados com a transformação do cuidado em saúde mental,
aquele imaginário excludente sobrevive até hoje. A grande maioria das pessoas
vê no manicômio uma saída para as manifestações muitas vezes exageradas da
loucura. Isso tudo fruto da inclinação do preconceito por uma sociedade injusta
e da redução do próprio conceito de loucura, a qual ainda é sentida como desvio
social.
É nesse contexto que o atual artigo se insere. Tem por objetivo avaliar
qualitativamente a relação de alguns atores sociais com a loucura a partir das
experiências produzidas em um Centro de Atenção Psicossocial no contexto
brasileiro. Procuramos apontar lacunas, potencialidades e limitações
compartilhadas pelos grupos de interesse que fazem a saúde mental no cotidiano
do serviço (usuários, familiares e profissionais).
REFERENCIAL TEÓRICO-FILOSÓFICO
Trata-se de um recorte de um estudo de avaliação qualitativa de Centros de
Atenção Psicossocial que utilizou, como referencial teórico-filosófico, a
Avaliação de Quarta Geração(10). A proposta de realizar uma avaliação de
serviço qualitativa vem da preocupação em apreender a sua dinâmica, a forma
como os atores interagem e os sentidos que são construídos pelos mesmos em
relação à sua prática. Junto com isso, uma avaliação que pudesse ser também um
dispositivo, possibilitando, através do estabelecimento de um processo
participativo, que grupos de interesse ampliem a possibilidade de intervirem
sobre a realidade do serviço, que possam ser sujeitos em um processo que, em
metodologias tradicionais, estão excluídos.
Os autores propõem, como alternativa às avaliações tradicionais, uma avaliação
responsiva, baseada em um referencial construtivista. O termo responsiva é
usado para designar uma diferente forma de focalizar a avaliação em relação aos
seus parâmetros e limites: nos modelos tradicionais os parâmetros e limites são
definidos a priori. A avaliação responsiva determina parâmetros e limites
através de um processo interativo e de negociação que envolve grupos de
interesse e que consome uma considerável porção de tempo e de recursos
disponíveis. É por esta razão que o projeto de uma avaliação responsiva é
chamado de emergente. O termo construtivista é usado para designar a
metodologia empregada para realizar a avaliação e tem as suas raízes em um
paradigma de pesquisa que é alternativo ao paradigma científico, e também é
conhecido por outros nomes (interpretativo, hermenêutico). Um modo responsivo
de focar e um modo construtivista de fazer.
A avaliação responsiva também tem seus organizadores de avanço: as
reivindicações, preocupações e questões que serão identificadas por grupos de
interesse (stakeholders), isto é, pessoas que serão potencialmente vítimas ou
beneficiários da avaliação.
Podem existir três classes de stakeholders. A primeira seriam os agentes, que
são todas pessoas envolvidas em produzir, usar e implementar o serviço. A
segunda seriam os beneficiários, ou seja, todas as pessoas que se beneficiam de
alguma forma com o uso do serviço. Já a terceira seriam as vítimas, isto é, as
pessoas que são afetadas negativamente pelo uso do objeto avaliado, como:
grupos excluídos do seu uso, grupos que sofreram efeitos negativos no seu uso,
pessoas politicamente em desvantagem, sem poder, influência ou prestígio,
pessoas que perderam oportunidades que não foram exploradas porque os recursos
necessários estão alocados para darem suporte ao objeto da avaliação(10).
Neste estudo, identificamos três grupos de interesse potenciais, protagonistas
do cotidiano do serviço de saúde mental: usuários, trabalhadores e famílias.
Entendemos que a mudança de paradigma preconizada na assistência em saúde
mental exige a invenção de formas de pensar e fazer que não estão dadas, além
da participação de pessoas diretamente envolvidas com esse processo, de forma
que a inserção de diferentes atores responda à complexidade do 'novo' objeto
construído e das práticas a eles direcionadas.
O dispositivo metodológico
Como dispositivo metodológico do processo de avaliação qualitativa, utilizamos
o Círculo Hermenêutico-Dialético(10), em sua versão adaptada(11). Ele é
utilizado na Avaliação de Quarta Geração como um caminho para alcançar o
caráter construtivista e participativo. É hermenêutico porque tem caráter
interpretativo e dialético porque implica em comparação e contraste de
diferentes pontos de vista, objetivando um alto nível de síntese.
A seguir, ilustramos o dispositivo metodológico utilizado, bem como uma breve
explicação de seu funcionamento:
![](/img/revistas/reben/v65n3/a16fig01.jpg)
Como primeiro passo, um respondente inicial (R1) de cada grupo de interesse é
selecionado pelo pesquisador, em função de sua posição estratégica em relação
ao objeto da avaliação. É realizada uma entrevista aberta para determinar uma
construção inicial em relação ao que será investigado ou avaliado - o foco da
investigação. Pede-se que o respondente descreva o foco como ele ou ela o
constrói, que o comente e descreva em termos pessoais. Em avaliações, estes
comentários incluem observações sobre as reivindicações, problemas e questões,
e sobre aspectos positivos e negativos do serviço. Ao final da entrevista, pode
ser solicitado ao respondente que indique outro respondente (R2), que
identifica como tendo construções diferentes das suas.
Os temas centrais, conceitos, idéias, valores, problemas e questões propostas
por R1 são analisadas pelo pesquisador, em uma formulação inicial da sua
construção, designada C1. Deste modo, a análise dos dados segue de perto a
coleta de dados. Caso as questões sejam de grande importância e politicamente
sensíveis, será útil checar a análise completa com R1.
De posse das informações finais de R1, R2 é entrevistado, e o círculo recomeça.
O processo é repetido através da adição de novos informantes até que a
informação recebida torne-se suficientemente redundante, ou quando duas ou mais
construções permanecerem em conflito de alguma forma (tipicamente porque os
valores que apóiam as diferentes construções estão em conflito). As informações
disponíveis aos participantes do círculo não precisam ser limitadas àquelas que
eles e o pesquisador trazem. É possível introduzir outras demandas que a
oportunidade e a necessidade originam, tais como construções que emergem de
outros grupos de interesse, dados de observação, documentos, literatura
relevante e a construção ética do pesquisador.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O estudo foi desenvolvido junto a um Centro de Atenção Psicossocial, localizado
numa cidade da região sul do Brasil. A coleta de dados baseou-se na utilização
de entrevistas semiestruturadas, conduzidas de acordo com as orientações
metodológicas do Círculo Hermenêutico-Dialético. Ela ocorreu nos meses de
novembro e dezembro de 2006. Cada entrevista foi realizada individualmente e
gravada, sendo transcritas na íntegra.
Os grupos de interesse selecionados para o estudo foram usuários, familiares e
trabalhadores do serviço estudado, por entender que se caracterizam como os
principais protagonistas das ações de saúde mental. Participaram das
entrevistas dez profissionais, onze usuários e onze familiares. Todos assinaram
o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em cumprimento dos princípios
éticos de anonimato dos sujeitos. Para isso, os trabalhadores foram
identificados com a letra "E", os familiares, com a letra "F" e os usuários com
a letra "U", seguidos da ordem na entrevista (E1, U3, F7, e assim por diante).
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina
da Universidade Federal de Pelotas, ofício nº 074/2005. Foi também solicitada a
autorização da Coordenadora de Saúde Mental do município e da Coordenadora do
CAPS para o início da investigação, informando os objetivos e os princípios
éticos do estudo.
A análise dos dados foi realizada concomitantemente à coleta, em que foi
possível identificar os eixos temáticos para posterior discussão na negociação
com os grupos de interesse. Após essa etapa, procedeu-se à organização do
material empírico em unidades temáticas centrais, sendo estabelecidos
marcadores de avaliação, ou seja, categorias oriundas da análise e reanálise
desse material. Neste artigo discutiremos os resultados do marcador "relação da
sociedade com o fenômeno da loucura".
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O CAPS estudado iniciou suas atividades em 2004, dividindo o espaço físico do
prédio alugado pela Prefeitura com o Ambulatório de Saúde Mental. O serviço tem
uma demanda diária média de 90 pessoas, estando, no momento da coleta, com 180
usuários cadastrados.
O acesso ao serviço ocorre pelo ambulatório de saúde mental, sendo agendada uma
entrevista inicial com um dos técnicos do CAPS conforme a escala de entrevista
inicial. É uma entrevista para admissão do usuário, realizada por meio de
anamnese, sendo definida pela equipe como acolhimento. Diariamente, são
realizadas três avaliações, totalizando quinze no período de uma semana. Os
encaminhamentos são feitos pelos psiquiatras do ambulatório de saúde mental.
No serviço são desenvolvidos atendimentos individuais, ainda não sistematizados
que ocorrem aleatoriamente; atividades grupais como grupos operativos,
psicoterapias, oficinas; atividades direcionadas para familiares, como reunião
de família. O projeto terapêutico individual (PTI) ainda não foi implementado,
apesar de existir um espaço específico para o mesmo na ficha de avaliação
inicial.
No decorrer do processo avaliativo, com aplicação das entrevistas aos grupos de
interesse, foram emergindo questões sobre o preconceito e o estigma da loucura.
Ficou evidente que ainda se manifestam diferentes formas de exclusão, não
apenas por parte da sociedade em geral, mas também por parte dos próprios
profissionais do serviço.
Um dos fatores atribuídos para o fortalecimento desse preconceito parece ser o
desconhecimento da comunidade sobre o trabalho que é realizado pelo CAPS, como
demonstrado a seguir:
[...] está faltando é a comunidade se envolver um pouco mais com os
serviços que a gente tem [...] conhecer [...] o que a gente faz aqui,
o que a gente oferece [...] E5
Aí fora o pessoal não entende a gente, acha que a gente é vagabundo
[...] aquele lá é um louco, não precisa falar, aquele lá é louco
[...] U10
[...] isso aí é lugar de louco, então como a gente não conhece, a
gente se engana muito [...] F4
A localidade onde vivemos representa apenas um dos muitos recortes de
territórios que habitamos. O território pode ser considerado como uma
determinada área geográfica, espacial, muito embora essa concepção de
território seja restrita, uma vez que, nesse espaço, existem pessoas,
instituições e trocas sociais. No campo da saúde, quando pensamos que a atenção
à saúde deve ir ao encontro das pessoas, é necessário desenvolver o conceito
que temos sobre o território, incluindo, no planejamento, a localização
temporal, a disposição geográfica, além de fazer interfaces com os outros
serviços da sociedade, de modo a organizar o atendimento para atender as
demandas das pessoas(12).
Nesse sentido, o território é, sim, um espaço geográfico, porém um espaço de
trocas e singularizado por natureza. Possui seus limites temporais, políticos,
administrativos e culturais, muitas vezes imprecisos, mas relativamente
homogêneos, com certa identidade social, construída pela história. Um
território contempla uma característica espacial ou demográfica específica,
mas, mais do que isso, é um espaço portador de poder - nele se exercita e se
constrói toda a rede de atuações do Estado, dos serviços e dos cidadãos que
pertencem a ele. Reconhecer que é no território que ocorrem as disputas
hegemônicas é um passo importante para avaliar a inserção dos serviços, das
ações e das pessoas(13).
Em saúde mental, quando falamos em território, estamos falando em articular
serviços com diferentes finalidades, para ajudar na construção de territórios
existenciais que possibilitem reinventar a vida em todos os seus aspectos do
cotidiano, um cotidiano no qual a loucura foi privada de conviver. É desejável
que as atividades funcionem como catalisadoras de novos territórios
existenciais, nos quais os usuários possam reconquistar espaços perdidos e
conquistar novos espaços, no decorrer de sua vida(14).
A atuação do CAPS tem o território como cenário fundamental para a reprodução e
produção de novas trocas simbólicas e perspectivas existenciais para o louco, a
loucura e suas relações sociais. Isso porque, por muito tempo a sociedade
valorizou as instituições especializadas em excluir, oprimir e estigmatizar
como o modo de tratamento e o resgate dos valores sobre a convivência com a
loucura devem ocorrer por trocas mais subjetivas da experiência humana e pelo
estímulo e inclusão de novas parcerias setoriais, Nesse sentido, entendemos que
o CAPS possui um protagonismo no estabelecimento de uma rede de conversações
entre esse território e a sociedade, um cenário capaz de ressituar o sujeito e
a própria essência do processo de reforma do cuidado psiquiátrico.
Os depoimentos dos grupos de interesse vêm apontando a necessidade de investir
mais na presença do CAPS no território onde se situa. F4 e U10, por exemplo,
têm posicionamentos semelhantes sobre a finalidade da existência do CAPS. Eles
dizem que é um "lugar para loucos", o que, entendemos, seja resquício de um
discurso mais próximo de uma tendência excludente e perigosa da loucura, que
estamos tentando superar. Mesmo assim, os próprios sujeitos manifestam que, ao
conhecer realmente como funciona o serviço, ou seja, convivendo com ele, é
possível desconstruir essa concepção.
No entanto, é interessante o depoimento de E5, em que parece que o movimento
deva ocorrer de "fora pra dentro", no momento em que é direcionado para a
comunidade o envolvimento maior com a dinâmica do serviço. Dessa forma, isso se
torna um indicador de avaliação do processo de trabalho do serviço importante,
especialmente quando falamos de um contexto de reforma que tem o território
como cenário fundamental de sua prática. Fazer com que a comunidade venha ao
CAPS (e não o contrário) pode estimular o seu isolamento, além de desenvolver
uma compreensão social equivocada de que ele é um serviço responsável por
trabalhar com demandas altamente especializadas, fora dos espaços de circulação
da vida cotidiana.
A reforma psiquiátrica nasceu como movimento contestador, mas portando
contradições importantes em seu interior, que muitas vezes favorecem o
encolhimento do serviço sobre si mesmo e dificultam a sua expansão para o
território. Uma dessas contradições se inicia na própria compreensão dos
profissionais sobre o processo saúde/doença mental, muito relacionada à
semelhança entre a normalidade como condição de ajustamento social e à
patologia como condição de desajustamento. Nesse sentido, muitos trabalhadores
se limitam- a abordar a sua prática com o lado "menos saudável" da loucura,
encerrando na sua institucionalização. Em outras palavras, a "inclusão na
comunidade" - defendida como premissa ideológica de reabilitação psicossocial -
parece se transformar em "inclusão no serviço", fato esse que esvazia o serviço
e estimula a cronificação do louco e da loucura(15).
Vale ressaltar que perceber o papel de libertar sujeitos em meio a um
território vasto e que, durante séculos, foi controlado pelo poder médico-
hegemônico, é complexo. No entanto, parece mais simples fazer com que o
território se adapte às regras e rotinas dos serviços de saúde do que o
contrário. Isso nos aponta para uma tendência de que ainda há, no discurso do
profissional de saúde mental, vieses fortemente tradicionais, de origem
manicomial, que, no contexto da reforma psiquiátrica, precisam ser suplantados.
Portanto, talvez resida aí o maior nó da reforma, que é transformar o olhar que
construímos durante séculos sobre a loucura. Trata-se não apenas de
reestruturar serviços de saúde, mas de ressignificar a dimensão sociocultural
da reforma. Deve-se investir na desmistificação do aparelho psiquiátrico e da
ideologia psiquiátrica do senso comum, com o objetivo de restabelecer as trocas
simbólicas entre loucura, sujeito, comunidade e sociedade(16).
Defendemos, portanto, a necessidade de se exteriorizar o trabalho que é
desenvolvido no CAPS, utilizando recursos da própria comunidade para cuidar dos
indivíduos que sofrem psiquicamente. O CAPS saindo de dentro de si mesmo e se
permitindo transitar nos espaços comunitários, pode fortalecer a
desmistificação do conceito de louco e de loucura, mostrando que é possível
estar fora dos muros institucionais. O serviço deve instigar a sociedade a
conhecê-lo, bem como conhecer os anseios, as expectativas, os recursos e as
demandas dessa sociedade.
No entanto, apesar de ainda muito circunscrito sobre si mesmo, o próprio
serviço vem lutando para exercer seu papel de desmistificador do ideário
tradicional sobre a loucura, proporcionando a geração de novos sentidos sobre
ela. Segundo os depoimentos a seguir, é possível notar que o CAPS tem ajudado
os usuários a enfrentarem o preconceito, proporcionando apoio e acolhimento:
[...] quando você chega aqui eles não olham se você está bem vestido
[...] se você está a pé ou de bicicleta ou se você está de carro,
eles te recebem da mesma maneira [...] as pessoas vão ver isso com
outros olhos, não com aqueles olhos e vão dizer assim 'lá só tem
louco'. Eles vão dizer 'lá tem pessoas capazes' [...] 'competentes'
[...] U5
[...] porque eles não têm preconceito de paciente nenhum [...] eles
atendem todo mundo igual [...] o tratamento é igual [...] F5
[...] vai perdendo o preconceito [...] vai vendo como que é tratado
aquele paciente [...] vai passar a dar mais amor [...] vai aprender a
se relacionar muito mais com a família [...] F4
A psiquiatria, durante séculos, sustentou-se na premissa de que a instituição
psiquiátrica (o manicômio), sob a aparência do modelo médico-hegemônico,
destina-se a administrar o aspecto social da doença mental, e não a doença
propriamente dita. Em medicina, estamos lidando com corpos doentes, que exigem
certa intervenção técnica que o restabeleça. Mas no hospital psiquiátrico, é
necessário administrar um doente que não é mais aceito no mundo e que
ultrapassou todos os limites da norma fixada por ele, o que mostra o poder do
manicômio não como terapêutico, mas como instituição opressiva e mortificante
(17).
A ciência psiquiátrica moderna trouxe ao mundo uma nova explicação sobre a
doença, a saúde e a natureza, bem como suas interlocuções. Se pudermos examinar
melhor, a doença mental, como condição comum, tem significados distintos
conforme o sistema que a administra e regulamenta. Esse entendimento sobre a
doença mental não está relacionado inicialmente a sua "evolução" como conceito,
mas sim com o tipo de relação que ela estabelece com o médico, e, por
consequência, com a sociedade que ele representa. Uma relação aristocrática, em
que o poder contratual do paciente é oposto ao poder contratual do médico, em
que a reciprocidade só acontece se houver concordância do técnico; uma relação
"mutualística", em que há redução drástica do poder técnico e um aumento do
poder arbitrário, desenvolvendo um novo mecanismo de tutela; e uma relação
institucional, pois essa relação de poder desigual (médico-doente) só acontece
porque há um hospital psiquiátrico que a reproduz e alimenta(18).
Os sentidos da loucura - tanto na sua vivência como na ontologia da existência
e na "não-ontologia", aprisionados por uma ciência reducionista e
corporificados num conjunto de manifestações de abandono, exclusão e
classificação, têm mostrado o quanto o homem ainda "desentende" o sentido de
sua própria vida e de seus fenômenos. No contexto da reforma psiquiátrica, no
entanto, a tendência de fragmentação e coisificação do outro vem sendo superada
pela iniciativa de reconexão entre o sujeito, suas relações, sua cultura, seus
fenômenos e seu conhecimento de mundo. Isso porque é importante, sim, reformar
serviços, mas também reformar pessoas, evitando engessamento, normalizações,
relações de tutela e de docilização. Incentivar práticas de libertação e
problematização da realidade tensionam não apenas o próprio conceito de
loucura, mas também aquilo que tememos e compreendemos dela.
O CAPS, como serviço estratégico da reforma psiquiátrica brasileira, vem sendo
percebido como um espaço de compartilhamento de vivências e de diminuição dos
sentimentos de isolamento social. F4 e F5, por exemplo, ao avaliarem as
experiências do serviço, mencionam que há dois indicadores importantes que
devem ser considerados no contexto da reforma psiquiátrica: o primeiro é a
iniciativa dos profissionais do serviço em valorizar a existência do indivíduo,
e, o segundo, o estímulo à interação com suas famílias.
Avaliamos que essas transformações, ou seja, o fato de famílias e usuários
serem valorizados pelo serviço pode ser entendido como a primeira experiência
de superação de modalidades docilizadoras e castradoras da loucura, como
aquelas restritas ao modelo proposto pelo manicômio. Nos depoimentos de
familiares e usuários, fica evidente que o serviço vem incorporando a inclusão
social como um de seus instrumentos do processo de trabalho, principalmente por
acreditar mais na potencialidade do que na limitação do louco. Um serviço que
caminha para a compreensão ampliada das diferentes histórias de vida, que vem
possibilitando o reposicionamento de relações entre atores e instituições. E,
desse modo, confrontando os modos estigmatizadores da loucura que tem limitado
a vida social da pessoa com transtorno psíquico e sua família.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Avaliamos que o território constitui-se uma premissa importante para as ações
de saúde mental propostas pelo CAPS. Em meio a ele, contradições residem entre
o que seria fruto de uma postura da libertação - o externo, a desmistificação
da loucura, o trabalho com a comunidade - e o que seria tendência de
institucionalização - o trabalho interno, o fechamento do serviço e o pouco
espaço aberto para as práticas comunitárias.
Os depoimentos perseguem a desinstitucionalização como paradigma da atenção em
saúde mental, evidenciando a necessidade de combater os vícios carregados de
condutas cristalizadas e excludentes, típicas do modelo manicomial. No entanto,
o modelo manicomial ainda convive com aquele modelo que nasceu para superá-lo,
ou seja, um modelo centrado em práticas ampliadas e inovadoras, voltadas para a
libertação e produção de novos sentidos e novas pessoas.
O estudo em questão apresentou parte do processo avaliativo das práticas em
saúde mental, apontando limitações e potencialidades do serviço estudado e das
práticas no seu interior. Além de ser uma proposta metodológica viável para a
avaliação de serviços, esperamos que ele possa problematizar o cotidiano dos
mesmos, abrindo caminhos para recompreender a loucura, o louco e suas relações.
Confrontar o preconceito exige uma ação compromissada para romper barreiras,
admitindo espaços de liberdade, valorização do sujeito cidadão e autônomo, ou
seja, o desafio que se coloca é buscar novas relações, novas práticas que
repensem as ações intervencionistas e limitantes da nossa convivência com a
loucura e o louco.
Assim, o CAPS é avaliado como um serviço potente, sinalizador na promoção de
mudanças nos campos teórico-conceitual e técnico-assistencial, na qual
singularidade e pluralidade são destaques na superação do conceito de cura, de
classificação, de desvio, de incapacidade e de periculosidade da loucura.
Romper com preconceitos que aprisionam sujeitos e histórias de vida torna-se um
desafio, e requer o reconhecimento da pessoa em sofrimento mental como tal,
valorizando-a como alguém que pode e faz. Um sujeito social, capaz de
estabelecer trocas, produzir conhecimentos e laços de afeto e solidariedade.
Hoje, torna-se necessário valorizar uma prática que tenha como objetivo
proporcionar ao louco todas as possibilidades para exercer sua subjetividade,
aumentando sua capacidade de escolha, de falar sobre si, sua história, cultura,
vida cotidiana e seu trabalho, ou seja, é um sujeito que estabelece relações na
sociedade e participa dela, sendo influenciado por ela e influenciando-a.